'Questões fundamentais para o aprofundamento da reconstrução revolucionária' (Caio Andrade)
O crescimento do PCB, bem como de sua juventude e seus coletivos, associado a uma conjuntura nacional cada vez mais difícil impunha desafios e responsabilidades maiores ao Comitê Central do Partido. O que se viu, no entanto, foi um processo acelerado de degeneração.
Por Caio Andrade para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A reconstrução do movimento comunista no Brasil enfrenta muitos obstáculos. As dificuldades não começaram agora. O chamado processo de redemocratização da sociedade foi precedido pelo recrudescimento da repressão às vanguardas mais radicais do proletariado entre o final da década de 1960 e o início década de 1970. Pressionadas pelo fortalecimento das lutas da classe operária e dos estudantes organizados, as classes dominantes precisavam operar um processo de “abertura”. Mas não sem antes garantirem a neutralização das forças revolucionárias. Esse contexto favoreceu a afirmação de setores oportunistas no interior das direções do movimento operário em geral e do PCB em particular, sobretudo na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A derrota do socialismo no Leste Europeu na virada da década de 1980 para a década de 1990 completou o quadro de refluxo.
Após a vitória de Lula em 2002, a política social-liberal do PT no governo federal suscitou o aprofundamento da crítica à Estratégia Democrático-Popular entre as vanguardas que se colocaram na oposição de esquerda em meados dos anos 2000. A crise internacional do capital em 2008 expôs de forma mais nítida as contradições da sociedade burguesa, ampliando o espaço para as ideias marxistas e despertando o interesse de mais trabalhadores e jovens conscientes de importância de se organizar e lutar pelo socialismo. Nesse cenário, depois de ter resistido ao liquidacionismo e ter rompido com o etapismo, avançando nos debates sobre estratégia e tática da revolução socialista, o PCB voltou a atrair quadros interessados em contribuir na sua reconstrução revolucionária.
A crise da conciliação de classes no Brasil em 2013 acirrou as contradições políticas na sociedade. A radicalização de alguns setores da juventude propiciou o crescimento de organizações como a UJC – o que não ocorreria sem tensões com as direções do PCB. O estelionato eleitoral praticado pelo segundo governo Dilma abriu caminho para o fortalecimento de movimentos liberais e fascistas em 2015 e para o golpe de 2016. Com Temer, intensificaram-se os ataques às políticas sociais e a retirada de direitos dos trabalhadores. Houve muita luta, com destaque para as manifestações contra o Teto de Gastos em 2016 e a greve geral contra as reformas previdenciária e trabalhista em 2017.
O crescimento do PCB, bem como de sua juventude e seus coletivos, associado a uma conjuntura nacional cada vez mais difícil impunha desafios e responsabilidades maiores ao Comitê Central do Partido. O que se viu, no entanto, foi um processo acelerado de degeneração. Na Conferência Política de 2016, por exemplo, em meio a tantas questões importantes que precisavam ser discutidas para impulsionar a ação política do PCB, a fração academicista do CC, reunida em torno do Instituto Caio Prado Jr., preferiu agir de forma coordenada contra o marxismo-leninismo, propondo sua substituição por uma concepção de partido apenas marxista ou, no máximo, marxista e leninista.[1]
Enquanto isso, a maior parte do CC e dos CRs, incapazes de acompanhar o ritmo da UJC, demais coletivos e, mais do que isso, se colocarem à frente deles, garantindo planejamento, orientações, balanços, formação política etc., funcionavam cada vez mais como meros órgãos de fiscalização, controle, freio organizativo e até boicote em certos casos. Por fim, mesmo a linha política do Partido, um de seus maiores patrimônios no processo de reconstrução revolucionária, começou a dar sinais de hesitação, o que se aprofundou diante do governo Bolsonaro no plano nacional e da guerra na Ucrânia no plano internacional.
Como afirmamos no Manifesto por um partido da nossa classe e a seu serviço, “o esforço de unidade realizado no XVI Congresso, mesmo que compreensível diante da situação política, econômica e sanitária do país, revelou-se, com efeito, uma grande armadilha. Apesar do risco da mais alta instância do partido ser implodida por uma mudança abrupta na forma de condução das divergências políticas, foi um erro acreditar que o ‘novo’ CC seria capaz de cumprir as resoluções aprovadas, organizar as polêmicas e promover, de cima para baixo, a ampliação da democracia interna.”[2]
A atual crise do PCB, que alguns preferem tratar de maneira superficial e despolitizada, expõe, na verdade, pelo menos quatro questões fundamentais para os comunistas no Brasil: a necessidade de superar incompreensões e posições oportunistas diante do marxismo-leninismo; a importância de se recuperar o centralismo democrático de Lenin, combatendo as deformações operadas a partir de interpretações enganosas de sua obra; o desafio de fortalecer o bloco revolucionário do movimento comunista internacional, rechaçando tento as ilusões com o assim chamado multilateralismo quanto qualquer tipo de apoio às guerras promovidas pelos capitalistas e seus governos; a imprescindibilidade do esforço coletivo pelo fortalecimento da organização e da luta política independente do proletariado brasileiro frente às demais classes, fazendo firme oposição a qualquer governo da ordem – portanto, sem ficar a reboque de partidos reformistas, sem dissociar a luta antifascista da luta contra o capitalismo e pelo socialismo em nome de um suposto combate ao fascismo que apresenta como alternativa o fortalecimento da democracia burguesa.
[1] Coincidentemente, no ano anterior o ICP havia publicado uma nova edição do livro “Capitalismo e Reificação”, do professor José Paulo Netto, no qual o marxismo-leninismo é apresentado como ideologia oficial do Estado soviético, isto é, uma versão positivista e vulgar do marxismo moldada de acordo com as necessidades políticas e ideológicas daquilo que o autor considera a “autocracia stalinista”.
De acordo com J. P. Netto, no início do século XX a II Internacional foi assumindo uma concepção positivista de marxismo, bem adequada às práticas políticas da organização mais influente entre suas fileiras, o Partido Social Democrata Alemão. Segundo o autor, “essa concepção compreendia a obra de Marx como uma sociologia científica que desvenda o mecanismo da evolução social a partir da situação econômica.” (p. 33) Porém, a capitulação da II Internacional diante da guerra em 1914 anunciava a sua falência. Sua desmoralização se completou com a revolução bolchevique de 1917, abrindo o terreno para a crítica contundente daquele tipo de marxismo.
Mas essa crítica teria um caráter pontual, pois estaria vinculada ao curto momento histórico situado entre o início da 1ª Grande Guerra e o isolamento da Rússia socialista na década seguinte, bem como porque estaria mais voltada para as estratégias políticas específicas do que para o arcabouço teórico geral do marxismo da II Internacional. segundo Netto “a ruptura com ele, no curto prazo, é mais uma ruptura política que a ultrapassagem do seu referencial teórico” (p. 37). Nesse ínterim surgiram reflexões críticas de maior fôlego, como a contribuição de Lukács. Entretanto, antes que os trabalhos nesse sentido pudessem se ampliar e se desenvolver, a “bolchevização” dos partidos comunistas promovida pela III Internacional a partir de 1924 teria sido responsável por constranger o debate marxista aos limites institucionais do Estado soviético.
Netto argumenta que a autocracia stalinista impôs administrativamente uma concepção de marxismo que buscava neutralizar os críticos em nome dos seus interesses político-ideológicos. Essa vulgarização do pensamento revolucionário pretenderia apoiar-se no legado de Lenin, mas, segundo o autor “a ruptura que afasta Lenin da II Internacional é sobretudo uma ruptura política” (p. 42), não abarcando a teoria como um todo. Netto afirma que “componentes filosóficos muito significativos da obra de Lenin são exemplos do molde de pensamento da Segunda Internacional” (p. 42-43), pois teriam lhe faltado condições de aprofundar suas críticas. Daí decorre a negação do marxismo-leninismo mesmo dentro fileiras do movimento comunista brasileiro. Nesse sentido, muitas vezes o que se apresenta como antistalinismo é, na verdade, antileninismo.
Referência: José Paulo Netto. Capitalismo e reificação. São Paulo: ICP, 2015.
[2] Texto publicado no dia 9 de agosto de 2023, disponível no link: https://medium.com/@o_caio_andrade/por-um-partido-da-nossa-classe-e-a-seu-servi%C3%A7o-34eecff2ed52