'Que Lenin?' (Zenem Sanchez)

Ler Lenin é introduzir-se no processo da consciência desse grande revolucionário que está sempre buscando pensar concretamente o movimento contraditório do real, na identidade entre teoria e prática, e pensando as possibilidades de intervenção para a transformação desse real em cada momento.

'Que Lenin?' (Zenem Sanchez)
"O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta".

Por Zenem Sanchez* para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Em uma certa conversa com certo camarada, este me disse algo como: “não entendo esse empreendimento que os camaradas Landi e Lazzari estão tentando fazer de revitalizar um verdadeiro Lenin de textos esquecidos”1. Naquele momento, achei absurdo um incômodo com uma re-descoberta de textos que eu estava tendo acesso com tanto ânimo. Porém, buscando adentrar nas preocupações desse camarada, indaguei-me: nos é necessária essa revitalização? Existiria um Lenin que não estávamos conseguindo compreender? Já não teríamos absorvido no PCB o que é essencial de Lenin, nos poupando de infinitas leituras e confusões?

Essas indagações não ocuparam muito tempo em minha mente. Primeiro, porque de fato comecei a perceber a existência de vários Lenin's. Por um lado, os vários Lenin’s-meus, aqueles Lenin’s que eu compreendia em cada leitura de cada obra, em cada reflexão e cada conversa, em cada re-leitura. Por outro lado, os vários Lenin’s dos diferentes momentos da obra leniniana. Segundo, porque fui obrigado a admitir que, como já podia imaginar, eu ainda não sabia quase nada de Lenin.

Acontece que um evento recente me fez relembrar a fala do dito camarada e todas as indagações que acompanharam-na. Tal acontecimento foi um trecho específico da circular do CC do PCB (ou melhor, da fração de direita que se aparelhou do CC) do dia 31 de julho:

"Estes militantes promovem interpretações de textos de Lênin produzidos no contexto na luta dos bolcheviques contra os mencheviques no interior do Partido Operário Social Democrata Russo, um partido não comunista, para justificar a defesa da prática de exposição pública de debates internos aos partidos comunistas. Esquecem de citar que, após a configuração dos partidos comunistas e da fundação da Internacional Comunista, a cultura política do PCs sempre foi a de preservar internamente a disputa das ideias, garantindo a ampla democracia no trato das discussões políticas para que as resoluções tomadas de forma coletiva pelas organizações comunistas, após as deliberações aprovadas pela maioria, fossem assumidas de forma unitária pelo conjunto da militância.

A prova cabal do que acabamos de afirmar acima pode ser encontrada em uma leitura atenta do livro "O centralismo democrático de Lenin", editado pela Editora LavraPalavra, coletânea de textos e fragmentos de textos de Lenin organizada por Gabriel Landi e Gabriel Lazzari, líderes do grupo fracionista. Nas 350 páginas de textos e trechos de Lenin, 328 são anteriores à Revolução Russa e a imensa maioria acerca de polêmicas com os mencheviques. Mais significativo ainda é o fato de que, em relação às Resoluções do X Congresso do PC da Rússia (no qual se decidiu a proibição das frações), o único excerto de meia página incluído trata da Tribuna Interna permanente de debates. Ou seja, o grupo fracionista apaga da memória da produção textual de Lenin sua proposta de proibição das frações no Partido. Fica evidente que tal apagamento não foi casual. Demonstra-se claramente que a concepção de partido defendido pelo grupo fracionista nada tem de marxista-leninista e claramente se identifica com os modelos da social-democracia."

Vamos refletir sobre o trecho anterior. O primeiro entendimento é que Lazzari e Landi estão se utilizando de textos de Lenin em um partido social-democrata (POSDR) para falar sobre disputa dentro de um partido comunista, o que seria um erro lógico. Junto disso podemos supor que o potencial crítico da luta de Lenin contra os mencheviques que Lazzari e Landi estão se utilizando não pode atingir o CC do PCB porque, ora bolas, “nós não somos mencheviques, né”. O segundo entendimento é de que a verdade verdadeira sobre a luta ideológica no movimento comunista pode ser encontrada na cultura dos Partidos Comunista da Terceira Internacional e nas Resoluções do X Congresso do PC da Rússia.

Existem vários argumentos que podem facilmente derrubar essa tese sustentada pela fração de direita. Poderíamos falar sobre como os textos do período pré-revolução tem uma importância vital para nós já que também estamos em um período pré-revolução. Poderíamos falar que no POSDR, os mencheviques eram — em algum sentido do termo — marxistas, logo, se autodenominar comunistas não basta para não ser um “menchevique”. Ou também afirmar que, como Marx nos demonstrou, não podemos só julgar as pessoas pelo que elas dizem que são, mas temos que entender o que elas de fato são nas suas práticas, no contexto de suas relações e construções, etc. Assim, não basta a fração direita ficar se auto-afirmando “marxista-leninista” — algo que, inclusive, eles nem gostam de se afirmar e só reforçam tal titulação para confundir o conjunto da militância —, já que sua prática política nos últimos anos nos deixa nítido o giro político em direção ao centrismo. Porém, quero aprofundar uma outra dimensão dessa disputa em torno de Lenin que acredito ser central para superarmos as fraseologias da crise.

A operação que a fração de direita busca realizar no trecho citado é uma tentativa ridícula e mal feita de construir um corte na obra de Lenin. Um Lenin pré-revolução, em que todas as problemáticas giram em torno da luta contra o menchevismo, e um Lenin pós-revolução, com um pensamento consolidado e com a verdade verdadeira sobre os comunistas apresentada. Até mesmo Althusser, que buscou explicitar um corte epistemológico na obra de Marx — só que com uma profundidade e refino bem superior, mesmo que ainda equivocado —, estaria remexendo-se no caixão com tal empreendimento da fração de direita. No fim, a fração de direita está querendo sacralizar o que seria um “resultado” do pensamento de Lenin excluindo o processo e o fazer desse pensamento.

Poderíamos realizar um empreendimento de mostrar como o suposto “resultado” de Lenin apresentado pela fração de direita está equivocado. Mas quero me concentrar em outro ponto: sobre como se retirarmos o processo e o fazer de um pensamento para cristalizar seus resultados, estamos longe de atingir a compreensão desse pensamento. Não considero algo irrelevante que Hegel, Marx e Lenin não tenham tido muita preocupação em escrever um “resumo das verdades verdadeiras” que teriam atingido no seu empreendimento teórico político. Diferente disso, entendo que evitaram fazer isso porque sabiam que um “resumo das verdades verdadeiras” não poderia ser outra coisa que um conjunto abstrações mortas, muito distantes da vivacidade que o marxismo exige. Não é à toa que os textos que parecem mais “simples” de Marx muitas vezes são os que geram mais confusões. Um trecho específico da Fenomenologia de Hegel me parece muito ilustrativo desse problema:

O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí (Dasein) da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor; essas formas não só se distinguem, mas também se repelem (verdrängen – mas cada uma recalca a outra) como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem (widerstreiten- longe de entrarem em conflito), todos são igualmente necessários.

Os textos do Lenin pós-revolução não refutam os textos do Lenin pré-revolução ou os textos do jovem Lenin. Mesmo que alguns momentos ou trechos específicos sejam contraditórios, todos são igualmente necessários e fazem parte de uma unidade orgânica do [processo de] pensamento de Lenin. Ter contato com a obra de Lenin é adentrar no esforço e nos caminhos que a consciência desse militante revolucionário realizou em compreender o real, as concepções teórico políticas da época, o tempo histórico em que viveu, as contradições da sociedade em que lutava e as tarefas postas para o movimento revolucionário. Como indiretamente destacou Jodi Dean em seu livro Multidões e Partido, compreender Lenin passa inclusive por compreender os erros de Lenin — que, para o absurdo de alguns, existem.

Ler Lenin não é ler um profeta e sua bíblia de dogmas. Ler Lenin é introduzir-se no processo da consciência desse grande revolucionário que está sempre buscando pensar concretamente o movimento contraditório do real, na identidade entre teoria e prática, e pensando as possibilidades de intervenção para a transformação desse real em cada momento. Ignorar as fases jovem e pré-revolucionária de Lenin não é simplesmente conhecer o Lenin maduro, mas, na verdade, matar o pensamento de Lenin. No pensamento, o resultado de Lenin sem o desenvolvimento de Lenin é, igual o sistema capitalista sem o processo de acumulação primitiva e seu desenvolvimento, só um cadáver.

Portanto, sim, é necessária uma nova empreitada — ou revitalização — sobre a obra de Lenin, no sentido de compreendê-la como uma totalidade. Não encontramos no atual PCB uma apreensão correta do marxismo-leninismo e por isso não podemos poupar esforços em estudar, praticar, refletir, reformular e combater as confusões hoje reinantes. Desejo que nossa disputa em torno do pensamento de Lenin não seja uma guerra vazia de citações, mas uma defesa da totalidade do pensamento desse revolucionário. Que o nosso XVII Congresso (Extraordinário), no espírito de Lenin, consiga debater de forma qualificada as causas da crise do PCB, a realidade internacional e brasileira e as tarefas para a revolução socialista.

[1] O contexto dessa conversa era o momento pós-abertura das Tribunas do XVI Congresso.

*Militante da célula Laura Brandão do PCB-RR em São Carlos.