Quando se pode dizer que um partido está formado e não pode ser destruído por meios normais
Fala-se de capitães sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Um exército já existente é destruído se faltam capitães, mas um grupo de capitães, harmonizados, com objetivos comuns, não demora a formar um exército.
Por Antonio Gramsci
Transcrito de Cadernos do cárcere, v. 3, Civilização Brasileira, 2020, p. 320-323.
A questão de saber quando um partido está formado, isto é, tem uma missão precisa e permanente, dá lugar a muitas discussões e com frequência também gera, infelizmente, uma forma de vaidade que não é menos ridícula e perigosa do que a “vaidade das nações” de que fala Vico [1]. Na verdade, pode-se dizer que um partido jamais se completa e se forma, no sentido de que cada desenvolvimento cria novos encargos e tarefas e no sentido de que, para certos partidos, é verdadeiro o paradoxo de que só se completam e se formam quando já não existem mais, isto é, quando sua existência se tornou historicamente inútil. Assim, como cada partido é apenas uma nomenclatura de classe, é evidente que, para o partido que se propõe anular a divisão em classes, sua perfeição e seu acabamento consistem em não existir mais, porque já não existem classes e, portanto, suas expressões. Mas aqui queremos nos referir a um momento particular deste processo de desenvolvimento, ao momento subsequente àquele em que um fato pode existir e pode não existir, no sentido de que a necessidade de sua existência ainda não se tornou “peremptória”, mas depende em “grande parte” da existência de pessoas de extraordinário poder volitivo e de extraordinária vontade. Quando um partido se torna historicamente “necessário”? Quando as condições de seu “triunfo”, de seu inevitável tornar-se Estado estão pelo menos em vias de formação e deixam prever normalmente seus novos desenvolvimentos. Mas quando é possível dizer, em tais condições, que um partido não pode ser destruído por meios normais? Para responder a isto, é preciso desenvolver um raciocínio: para que um partido exista, é necessária a confluência de três elementos fundamentais (isto é, três grupos de elementos). 1) Um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criativo e altamente organizativo. Sem eles o partido não existiria, é verdade, mas também é verdade que o partido não existiria “somente” com eles. Eles constituem uma força na medida em que existe quem os centraliza, organiza e disciplina; mas, na ausência dessa força de coesão, eles se dispersariam e se anulariam numa poeira impotente. Não se nega que cada um desses elementos pode se transformar numa das forças de coesão, mas falamos deles exatamente no momento em que não o são nem estão em condições de sê-lo, e, se o são, apenas o são num círculo restrito, politicamente ineficiente e inconsequente. 2) O elemento de coesão principal, que centraliza no campo nacional, que torna eficiente e poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, representariam zero ou pouco mais; este elemento é dotado de força altamente coesiva, centralizadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isto mesmo) inventiva, se se entende inventiva numa certa direção, segundo certas linhas de força, certas perspectivas, certas premissas. Também é verdade que, por si só, este elemento não formaria o partido, mas poderia servir para formá-lo mais do que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Tanto isto é verdade que um exército já existente é destruído se faltam os capitães, ao passo que a existência de um grupo de capitães, harmonizados, de acordo entre si, com objetivos comuns, não demora a formar um exército até mesmo onde ele não existe. 3) Um elemento médio, que articule o primeiro com o segundo elemento, que os ponha em contato não só “físico”, mas moral e intelectual. Na realidade, existem para cada partido “proporções definidas” entre estes três elementos e se alcança o máximo de eficiência quando tais “proporções definidas” são realizadas [2].
Dadas estas considerações, pode-se dizer que um partido não pode ser destruído por meios normais quando, existindo necessariamente o segundo elemento, cujo nascimento está ligado à existência das condições materiais objetivas (e, se este segundo elemento não existe, qualquer raciocínio é vazio), ainda que em estado disperso e errante, não podem deixar de se formar os outros dois, isto é, o primeiro que necessariamente forma o terceiro como sua continuação e seu meio de expressão. Para que isto ocorra, é preciso que se tenha criado a convicção férrea de que uma determinada solução dos problemas vitais seja necessária. Sem esta convicção não se formará o segundo elemento, cuja destruição é mais fácil em virtude de seu número restrito, mas é necessário que este segundo elemento, se destruído, deixe como herança um fermento a partir do qual volte a se formar. E onde este fermento subsistirá melhor e poderá se formar melhor do que no primeiro e no terceiro elementos, que, evidentemente, são os mais homogêneos em relação ao segundo? Por isso, a atividade do segundo elemento para constituir este elemento é fundamental. O critério para julgar este segundo elemento deve ser procurado: 1) naquilo que realmente faz; 2) naquilo que prepara na hipótese de sua destruição. É difícil dizer qual dos dois fatos é o mais importante. Como na luta deve-se sempre prever a derrota, a preparação dos próprios sucessores é um elemento tão importante quanto tudo o que se faz para vencer.
A propósito da “vaidade” de partido, pode-se dizer que ela é pior do que a vaidade das nações de que fala Vico. Por quê? Porque uma nação não pode deixar de existir, e, no fato de que ela existe, é sempre possível, ainda que com boa vontade e forçando os textos, achar que a existência é plena de destino e de significação. Um partido, ao contrário, pode deixar de existir por força própria. Jamais devemos esquecer que, na luta entre as nações, cada uma delas está interessada em que a outra se enfraqueça por meio das lutas internas e que os partidos são exatamente os elementos das lutas internas. Para os partidos, portanto, é sempre possível perguntar se eles existem por força própria, como necessidade intrínseca, ou se existem apenas em virtude de interesses de outros (e de fato, nas polêmicas, este ponto jamais é esquecido; aliás, é motivo de insistência, especialmente quando a resposta não é dúbia, o que significa que tem fundamento e suscita dúvidas). É claro que quem se deixasse dilacerar por essa dúvida seria um tolo. Politicamente, a questão só tem uma relevância momentânea. Na história do chamado princípio de nacionalidade, as intervenções estrangeiras a favor dos partidos nacionais que perturbavam a ordem interna dos Estados antagonistas são numerosas, tanto que, quando se fala, por exemplo, da política “oriental” de Cavour, pergunta-se se se tratava de uma “política”, isto é, de uma linha de ação permanente, ou de um estratagema momentâneo para enfraquecer a Áustria, tendo em vista 1859 e 1866. Do mesmo modo, nos movimentos mazzinianos dos primeiros anos da década de 1870 (exemplo, o episódio Barsanti) vê-se a intervenção de Bismarck, que, em vista da guerra com a França e do perigo de uma aliança ítalo-francesa, pensava em enfraquecer a Itália com conflitos internos. Também nos acontecimentos de junho de 1914 alguns veem a intervenção do Estado-Maior austríaco, preocupado com a guerra iminente [3]. Como se vê, a casuística é numerosa, e é necessário ter ideias claras a respeito. Supondo que, quando se faz alguma coisa, sempre se faz o jogo de alguém, o importante é procurar de todos os modos fazer bem o próprio jogo, isto é, vencer completamente. De qualquer forma, é preciso desprezar a “vaidade” de partido e substituí-la por fatos concretos. Quem substitui os fatos concretos pela vaidade ou faz a política da vaidade, deve ser indubitavelmente suspeito de pouca seriedade. Não é preciso acrescentar que, para os partidos, deve-se evitar também a aparência “justificada” de que se esteja fazendo o jogo de alguém, especialmente se este alguém é um Estado estrangeiro; mas ninguém pode evitar as especulações.
Notas
[1] Refere-se ao filósofo napolitano Giambattista Vico (1668-1744), que assim se expressa em sua obra A Ciência Nova, de 1725: “Da vaidade das nações ouvimos aquela áurea citação de Diodoro sículo: que as nações, ou gregas ou bárbaras, tiveram a seguinte vaidade: de terem descoberto, antes das demais, as comodidades da vida humana e conservado as memórias de suas coisas desde o princípio do mundo”. A opinião de Vico é que os homens, “sempre que das coisas remotas e desconhecidas não podem fazer nenhuma ideia, estimam-nas pelas próprias coisas conhecidas e presentes”. Esta, a fonte de “todos os erros cometidos por inteiras nações e por todos os doutos sobre os princípios da humanidade”. E acrescenta: “Nesse gênero devem ser evocadas duas espécies de vaidades, que tratamos antes: uma das nações e a outra dos doutos”.
[2] Sobre este tema, Gramsci assim se manifesta numa reunião do comitê dirigente do PCI, em 2-3 de agosto de 1926: “Em todo partido, mas especialmente nos partidos democratas e social-democratas, nos quais o aparelho organizativo é muito frouxo, existem três estratos. O estrato superior, muito restrito, que geralmente é constituído de parlamentares e intelectuais ligados com frequência às classes dominantes. O estrato inferior constituído de operários e camponeses, de pequenos-burgueses urbanos, como massa de partido ou como massa de população influenciada pelo partido. Um estrato intermediário que, na situação atual, tem uma importância ainda maior do que nos períodos normais, na medida em que muitas vezes representa o único estrato ativo e politicamente vivo desses partidos. É este estrato intermediário que mantém o vínculo entre o grupo dirigente superior e as massas do partido e da população influenciada pelo partido”.
[3] Por “fatos de junho de 1914” se deve entender a “semana vermelha” de Turim, ocorrida entre 7 e 14 de junho de 1914. Em Ancona, a detenção de um anarquista provoca choques com a polícia e rapidamente faz nascer manifestações na Romanha e nas Marcas, com a subsequente proclamação de uma greve geral revolucionária. O Partido socialista e o sindicato a ele ligado se limitam inicialmente a um papel secundário de apoio, mas logo decretam o fim da greve. Chega-se a sugerir polemicamente, na época, que alguns líderes do movimento (por exemplo, Errico Malatesta), em razão de relações pessoais com Maria Sofia, ex-Rainha de Nápoles, poderiam ter sido manobrados pelo Estado-Maior austríaco.