'Qual o papel dos comunistas na luta pela terra e por território e por que nos recusamos a assumi-lo' (Veva)

Em suma, camaradas, o que to querendo dizer é que não existe poder popular sem soberania alimentar. E não se tem soberania alimentar sem a terra. A luta pela terra e, mais especificamente, criar as condições para vencê-la é, portanto, uma tarefa incontornável da Revolução Brasileira.

'Qual o papel dos comunistas na luta pela terra e por território e por que nos recusamos a assumi-lo' (Veva)
"E se é uma luta, é porque existe um inimigo. No Brasil, esse inimigo é o dono do latifúndio, mas já foi também das sesmarias. A formação histórica do nosso país esteve e segue alicerçada firmemente nessa busca incessante pela concentração das terras por parte dos colonizadores e da burguesia."

Por Veva para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Essa tribuna nasce de um problema grave.

A reflexão sobre a luta pela terra não parece ser um tema relevante para a imensa maioria do complexo partidário. Ou ao menos é a essa conclusão que chego, quando constato que das dezenas de tribunas preparatórias publicadas até o dia em que escrevo (25/09/2023), pouquíssimas trataram da questão. A reflexão sobre a luta por território, por sua vez, ainda que não tanto explorada até aqui nas tribunas, vem sendo um pouco mais trabalhada em sua dimensão urbana, como no caso das importantes contribuições do camarada Thiago Sardinha sobre a “guerra às drogas” e o conflito pelo controle das favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Ainda precisamos avançar muito em ambas as reflexões que se entrelaçam mutuamente. Afinal, o poder popular é, antes de tudo, a capacidade que um dado povo alcançou, em dado processo histórico, de organizar seus modos de vidas e de existir em coletividade a partir do bem comum, dos interesses da maioria, do bem viver, em termos usados por muitos povos indígenas do Brasil e da América Latina. E esse processo não escapa do território, antes disso, o constitui. Nessa reflexão que não é minha e me antecede em muito, territórios, mais do que áreas geográficas, são as próprias relações sociais, humanas e espirituais que se projetam no espaço.

A ausência de produção e circulação das reflexões sobre a luta pela terra e por território entre a imensa maioria da nossa militância não significa somente uma lacuna temática ou uma debilidade formativa. Trata-se de uma questão que revela um problema de fundo, ainda mais grave, que é a nossa ausência de ação em uma arena fundamental da luta de classes.

Não nego a existência de camaradas que individualmente ou em seus locais de atuação e moradia desenvolvam trabalhos na luta pela terra e por território, até porque isso seria negar a mim mesmo. Mas de tão pontuais e fragmentados entre si, esses trabalhos estão muito longe de constituírem sequer um acúmulo coletivo, que dirá um trabalho coeso e planificado.

Essa tribuna é uma provocação que se pretende faísca.

Começo pelo começo.

O papel dos comunistas

Durante a maior parte desses anos de militância, a defesa persistente da perspectiva do “Poder Popular” como horizonte tático e estratégico sempre me pareceu um grande acerto da linha política do Partido. Mas ao longo do tempo, essa convicção foi coexistindo com um incômodo crescente quanto à nossa incapacidade de traduzir essa palavra de ordem em uma prática concreta e no planejamento/estabelecimento de um trabalho centralizado e planificado que de fato pudesse nos levar à construção efetiva do poder popular. Essa sempre era apresentada como algo para depois ou mesmo algo que já existia ali, naquelas “sementes” que estavam sendo plantadas em assembleias do movimento estudantil ou sindical, sempre parciais, sempre um vir a ser.

Esse incômodo foi tomando corpo na medida que eu me inseria concretamente na luta pela terra, em um processo que não foi acompanhado pelo partido (ainda que eu buscasse muito isso). Ao longo dessa inserção, pude perceber que outras organizações e movimentos de massa, alguns das quais com uma linha política muito mais rebaixada que a nossa, eram capazes de mobilizar ocupações e acampamentos, enquanto em nossa imensa maioria, seguíamos no máximo comentando sobre aquelas lutas, quando muito.

Eu percebia que organizando acampamentos, esses movimentos conseguiam produzir alimento. O alimento que dava as condições de vida e de existir para famílias que antes viviam na miséria das periferias e ruas das grandes cidades ou mesmo de cidades pequenas do interior, na condição de margem da margem da margem. E comiam tanto as famílias acampadas, quanto àquelas que, ainda nas cidades, se nutriam da solidariedade de classe e do alimento que foi produzido a partir dela.

Talvez esse seja um momento bom para relembrar que o MST, que tantos camaradas insistem em criticar de forma tão arrogante e imbecil, doou mais de 7 mil toneladas de alimento durante a pandemia, distribuindo mais de 10 mil cestas básicas e ultrapassando a marca de 2 milhões de marmitas produzidas. E antes que algume cosplay de bolchevique me acuse de petista, já alerto que reconhecer a importância histórica do MST não significa ter acordo com sua linha política, mas somente o óbvio: trata-se do maior movimento de massas da América Latina e a sua experiência tem muito mais a nos ensinar do que essa insistência purista e sectária de achar que revolução se faz só com uma ideia mais bonita.

Em suma, camaradas, o que to querendo dizer é que não existe poder popular sem soberania alimentar. E não se tem soberania alimentar sem a terra. A luta pela terra e, mais especificamente, criar as condições para vencê-la é, portanto, uma tarefa incontornável da Revolução Brasileira.

E se é uma luta, é porque existe um inimigo. No Brasil, esse inimigo é o dono do latifúndio, mas já foi também das sesmarias. A formação histórica do nosso país esteve e segue alicerçada firmemente nessa busca incessante pela concentração das terras por parte dos colonizadores e da burguesia. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, 1% dos proprietários controlam quase 50% da área rural do Brasil, enquanto os estabelecimentos com áreas menores a 10 hectares, que representam metade dos imóveis rurais, controlam apenas 2% da área total.

A luta pela terra e o combate ao agronegócio e aos grandes empreendimentos econômicos é a continuidade da luta histórica e ancestral contra o nosso inimigo. É o combate à burguesia e ao seu modo de sociabilidade e existência que implica a crise climática, a destruição dos nossos biomas e estrutura toda uma perversa rede de violência contra camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais.

Falamos de um país que em 2022, segundo dados do Caderno Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) teve:

- 2.218 pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão no meio rural, representando 88% do total de pessoas libertas dessa condição.

- 47 pessoas assassinadas por conflitos no campo, das quais 18 eram indígenas. 34 desses assassinatos ocorreram na região da Amazônia Legal.

- 181.304 famílias atingidas por conflitos por terra, das quais 24.258 estão ameaçadas de despejo e 6.831 foram atingidas pela aplicação de agrotóxicos como arma química.

- 1 conflito por terra a cada 4 minutos e mais de 80 milhões de hectares em disputa.

Por que nos recusamos a assumi-lo?

A essa altura, imagino que seja consenso a nossa recusa em assumir como sujeito coletivo a responsabilidade de organizar e desenvolver um trabalho concreto na luta pela terra e por território. Resta pensar nas possíveis razões para esse desvio. Não tenho nenhuma pretensão de já ter essas respostas, até mesmo porque considero que é uma reflexão ainda incipiente que se inicia, mas já visualizo alguns rastros que podemos perseguir.

Um deles está na própria história do PCB nas últimas décadas. Todo o acúmulo que um dia tivemos na construção de importantes lutas históricas, como a revolta armada de Formoso e Trombas, a organização das ligas camponesas e dos trabalhadores das usinas de açúcar e álcool do Nordeste, praticamente se perdeu ao longo de décadas de perseguição política e repressão. E do racha de 1992 para cá, não tenho ciência de qualquer trabalho contínuo, consistente e massificado do Partido seja na luta pela terra e por território ou mesmo no resgate sistemático dessas experiências passadas.

Outro rastro diz respeito à nossa presença militante ainda muito centrada nos grandes centros urbanos e pouco espraiada nos interiores. Quando penso nisso, penso na velha explanação do Secretário Geral do velho PCB-CC, Edmilson Costa, quando traça o perfil da classe trabalhadora brasileira e alegremente constata que o proletariado brasileiro é majoritariamente urbano e está concentrado nas grandes cidades do sul/sudeste. Para este antigo camarada, só posso desejar boa sorte em sua tentativa de construção de uma revolução BRASILEIRA à partir do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Ao menos não terá que viajar tanto.

Para nós, cabe mais do que nunca superar essa concepção mecânica que serve como obstáculo ao avanço dos nossos trabalhos nos interiores, tanto com os moradores das cidades, como com camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, dentre tantos povos tradicionais que em sua maioria experimentam mais o poder popular do que o PCB o fez em suas últimas duas décadas de história. Nesse sentido, vale mais do que nunca ouvir o que nos dizem os ventos do Norte e também do Nordeste. Contribuições importantes vem sendo escritas, a exemplo das notas de adesão à Reconstrução Revolucionária des camaradas do Pará, Amapá e Rondônia; ou mesmo das tribunas des camaradas João Thiago (PE)[1], L. Gonçalves(PE)[2] e Matheus Leal (PA)[3].

Não concordo integralmente com todos os textos, mas entendo que trazem provocações fundamentais para o acúmulo coletivo da organização.

Pretendo desenvolver, em outro momento no qual tenha melhores condições de tempo pra isso, uma crítica um pouco mais densa em relação à tribuna do camarada L. Gonçalves. No entanto, como não sei sequer se isso será possível já adianto alguns apontamentos em relação a dois aspectos do texto com os quais tenho profundo desacordo:

  • A defesa que o camarada faz da LCP me soa muito romântica e pouco científica, inclusive porque não debate à concepção estratégica da revolução agrária defendida por essa organização, tampouco elabora sobre quais são as condições concretas nas quais esse movimento estrutura sua resistência armada especialmente em Rondônia, realidade que não pode ser transposta mecanicamente para o resto do país;
  • A crítica que o camarada faz à caracterização do Brasil enquanto um país de capitalismo dependente, com base na permanência de relações de trabalho que o camarada nomeia como “semifeudais” me parece muito equivocada e inclusive já superada pelos debates da Teoria Marxista da Dependência, particularmente da categoria da superexploração da força de trabalho de Ruy Mauro Marini em conjunto com as contribuições de Clóvis Moura e Lélia Gonzales sobre a situação do povo negro no Brasil pós-abolição. Ora, não se trata da permanência de uma formação social “semifeudal”, mas da própria forma mediante a qual o capitalismo se estruturou historicamente no Brasil: uma modernização conservadora que se sustenta na exploração intensa da classe trabalhadora e da própria terra, amalgamada pela intensa violência praticada pelas forças do Estado e por jagunços à serviço da burguesia.

Ainda assim, saúdo a iniciativa do camarada e entendo que é uma contribuição que precisa ser lida especialmente porque coloca para nós uma questão fundamental: precisamos estudar sobre a questão agrária, sobre as experiências históricas de luta pela terra e por território e sobre os movimentos sociais e organizações que tocam essa luta, suas concepções estratégicas e mediações táticas. Tudo isso para que possamos de fato construir sínteses que nortearão a nossa forma de atuação nessa arena da luta de classes.

Por fim, um último rastro que visualizo como o mais nefasto é uma certa linha que reduz toda à luta pela terra a um “desvio maoísta” em um raciocínio que ao mesmo tempo que revela uma gigantesca incompreensão da potencialidade do pensamento legado pelo camarada Mao Zedong, expressa uma  postura arrogante e infantil frente a realidade brasileira, que, por si só, já nos impõe desafios suficientes, lidar com fã-clube de revolucionário não deve ser um deles. Espero verdadeiramente que esse tipo de postura não esteja presente nas fileiras da Reconstrução Revolucionária, mas se estiver, não terei qualquer problema em combatê-la, porque precisamos de militantes que se munam do melhor que pode existir da teoria revolucionária para melhor compreender seu tempo-espaço histórico e transformá-lo.

E o que fazer?

O primeiro passo, camaradas, é tratar a questão com a seriedade devida.

Fico genuinamente feliz de ver que estamos buscando entender melhor as questões que concernem à luta pela terra e por território no Brasil. Exemplo disso são as notas publicadas pelo PCB-RR sobre o assassinato de Mãe Bernadete e a necessidade de titulação de todas as terras quilombolas, bem como a nota sobre o Marco Temporal (ainda que nesse caso, eu me some integralmente às críticas apontadas pelo camarada João Thiago em sua tribuna).

No entanto, esse avanço ainda está muito aquém do que precisamos. Prova disso é a ausência gritante da questão da luta pela terra e por território na lista de temas previstos para serem trabalhados e discutidos no Congresso Extraordinário. Camaradas, essa é uma ausência absurda que precisa ser revista com urgência! Nenhum dos outros temas listados dá conta de discutir com a profundidade necessária o debate que deve ser feito sobre o papel des comunistas que defendem o aprofundamento da Reconstrução Revolucionária do Partido na luta pela terra e por território no Brasil.

O segundo passo é a superação do estágio atual de fragmentação absoluta dos trabalhos. Nesse sentido, para além do debate e da discussão coletiva, também é importante que possamos mapear todes camaradas e organismos que desenvolvem algum nível de trabalho na luta pela terra e por território (rural e urbano) no Brasil, a fim de construirmos espaços coletivos para socialização e sistematização de experiências que servirão como ponto de partida para uma futura planificação dos trabalhos a nível regional e nacional.

A faísca foi lançada. Se virará incêndio, depende de nós.

“revolta de caboco é fogo no canavial”
(Poeta de Malunguinho - @poeta.de.malunguinho)

https://www.youtube.com/watch?v=Kt4sgb471V0


Referências

https://censoagro2017.ibge.gov.br/

https://mst.org.br/2022/09/12/mst-ja-doou-mais-de-7-mil-toneladas-de-alimentos-desde-o-inicio-da-pandemia/

Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, produzido pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC – CPT). Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/6354-conflitos-no-campo-brasil-2022