'Quais setores queremos disputar e em que termos? Diálogo com F. Bezerra e C. Fernandes' (Levi G.)
Praticamente qualquer fenômeno cultural e ideológico amplamente difundido em nosso país vai encontrar uma base de sustentação considerável em uma população empobrecida. A ampla maioria do povo brasileiro vive em condições que passam longe de qualquer garantia mínima de dignidade, de conforto e etc.
Por Levi G. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas,
Escrevo a presente tribuna com o intuito de um breve diálogo com os camaradas F. Bezerra e C. Fernandes.
Em sua tribuna, o camarada F. Bezerra me parece ter feito um esforço sincero de promover uma reflexão em nossa militância sobre o espaço que as camadas evangélicas ocupam na classe trabalhadora e qual a relação que buscaremos com elas.
De um lado, entendo seu esforço e preocupação tendo em vista algumas tendências infantis na militância de esquerda que pejorativamente são denominadas como “ateísmo militante”.
Ao mesmo tempo, me parece que a citação final de Lênin que o camarada C. Fernandes trouxe em sua réplica ao camarada Bezerra resolve a polêmica sobre qual deve ser a perspectiva de um partido comunista perante militantes religiosos.
Com o perdão da repetição, citamos aqui:
“Se um sacerdote se dirige a nós para um trabalho político conjunto, e realiza conscienciosamente o trabalho partidário, não se manifestando contra o programa do partido, podemos aceitá-lo nas fileiras da socialdemocracia, porque a contradição do espírito e das bases do nosso programa com as convicções religiosas do sacerdote poderia permanecer, nessas condições, uma contradição pessoal, que só a ele diga respeito, e uma organização política não pode submeter os seus membros a provas acerca da ausência de contradição entre as suas concepções e o programa do partido. Mas, evidentemente, semelhante caso poderia ser uma rara exceção, mesmo na Europa, e na Rússia ele é pouquíssimo provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse no partido socialdemocrata e se pusesse a fazer, neste partido, como seu trabalho principal e quase único, uma ativa prédica das concepções religiosas, o partido deveria absolutamente expulsá-lo do seu seio. Nós devemos, não só admitir, como atrair sem falta para o partido socialdemocrata, todos os operários que conservam a fé em Deus, somos absolutamente contra a menor afronta às suas convicções religiosas, mas atraímo-los para se educarem no espírito do nosso programa, e não para lutarem ativamente contra ele. Nós admitimos dentro do partido a liberdade de opinião, mas em certos limites, determinados pela liberdade de agrupamento: não somos obrigados a andar de mãos dadas com pregadores ativos de concepções repudiadas pela maioria do partido.”
Não é de modo algum um problema que membros individuais do partido tenham crenças religiosas, culturais ou de qualquer outra variante ideológica digamos “estranha” ao materialismo contanto que tais disposições individuais sejam mantidas na esfera pessoal de suas atividades e não criem barreiras ao trabalho político comum.
Isso posto, há dois outros elementos que me parecem ser relevantes de serem discutidos.
De um lado o camarada Bezerra traz um argumento estatístico para consideração, a alta incidência da fé evangélica no povo pobre, e isso não me parece abordado de maneira a esgotar a questão na réplica do camarada Fernandes.
Adicionalmente, independente da questão estatística, me parece que há uma polêmica em relação a tribuna do camarada Bezerra em certa premissa que ela parece conter sobre os direcionamentos de nosso trabalho.
No que tange ao primeiro ponto, destaco: O camarada Bezerra nos aponta que mais de 67% da população evangélica sobrevive com *até* dois salários mínimos mensais. Também aponta que 31% da população brasileira é evangélica e, apesar de outros argumentos, estes dois números fornecem a principal base fática de sustentação para a centralidade do pensamento evangélico nas massas com as quais o partido comunista deveria se conectar.
Ocorre que essa lógica do camarada Bezerra me parece equivocada.
A própria tabela indicada pelo camarada aponta que cerca de 71% da população católica do país *também vive com até dois salários mínimos mensais*. Me parece estranho o camarada não retomar então que, nas mesmas métricas com as quais os evangélicos são 31% da população, os católicos representam 50% de nosso povo.
Considerando que o título da tribuna do camarada fala que a revolução deve ser evangélica, não seria então mais apropriado dizer que ela seria católica? Talvez até cristã, assim estaríamos contemplando cerca de 80% da população nacional. Já temos crucifixos espalhados por boa parte dos tribunais e repartições públicas do país, um consenso no ecletismo cristão certamente poderia unir amplos setores da população.
Não almejo desrespeito com essa digressão, mas tão somente apontar que a premissa estatística adotada pelo camarada Bezerra me parece ter consequências além do que foi colocado no texto. Afinal de contas, se o objetivo do partido comunista é acolher crenças já estabelecidas em amplas camadas empobrecidas da população, poderíamos até mesmo argumentar que a revolução brasileira seria futebolística, não?
O camarada cita o quão expansiva é a fé evangélica (e eu trago aqui a católica) entre a população brasileira, mas por qual razão a fé seria a única baliza ideológica entre trabalhadores que um partido comunista deveria acolher? Alguém diria que o futebol é um fator pouco expressivo na população brasileira? Que não tem relevância política? Conexões com a burguesia, escândalos criminosos, violência e mobilizações populares não se fazem presentes no futebol?
Na torcida do Flamengo temos 46 milhões de adeptos, na do Corinthians cerca de 30, São Paulo e Palmeiras nos trazem mais cerca de 21 e 16 respectivamente. Com essa adesão estamos falando de mais de 100 milhões de brasileiros e em todos os casos temos parcelas expressivas das torcidas que vivem na pobreza já que mais de 60% da população brasileira subsiste com *até* um único salário mínimo.
O que pretendo ilustrar é que praticamente qualquer fenômeno cultural e ideológico amplamente difundido em nosso país vai encontrar uma base de sustentação considerável em uma população empobrecida. A ampla maioria do povo brasileiro vive em condições que passam longe de qualquer garantia mínima de dignidade, de conforto e etc. Seja no futebol, na música, na fé ou em mil outros fenômenos da vida cotidiana é possível escolhermos um recorte ao nosso gosto e bradar que “tal aspecto da vida cotidiana de hoje será central à revolução”.
O que me leva ao segundo ponto que gostaria de abordar e que me pareceu ausente (ou ao menos mais omisso do que deveria) no debate promovido entre os camaradas Bezerra e Fernandes, embora os tenha permeado e ainda permeia mil outras de nossas tribunas, o ponto sobre “qual o caráter e o critério de nossa intervenção política na classe trabalhadora”.
Em diversas tribunas há camaradas buscado propor intervenções políticas para nosso partido argumentando a frequência de dado fenômeno, a precariedade de dadas condições de vida para certos setores e etc, mas de modo algum colocando de modo claro as formas com as quais tais propostas se conectam com as tarefas de uma organização revolucionária rumo à tomada do poder.
Há muitos evangélicos e católicos no país? Certamente. De que modo o trabalho entre eles avança na luta pela tomada do poder? Veja, não estou dizendo que não avançaria! Digo tão somente que isso não está posto. Há muitos trabalhadores profundamente empobrecidos em nosso país, das mais diversas matizes religiosas e das mais diversas preferências culturais. Todos eles estão em *iguais condições* de promover uma luta política rumo à tomada do poder?
Sei por fato que os vendedores ambulantes da cidade de São Paulo têm vidas mais duras e recheadas de injustiças do que servidores públicos concursados do transporte metroviário da cidade. Mas me parece que uma “greve” de vendedores ambulantes não promoveria o mesmo impacto à burguesia paulistana, paralisando distintas cadeias de produção e circulação de mercadorias, que a greve dos metroviários tende a promover.
E não digo isso como se “a greve” fosse o único meio de luta existente aos trabalhadores. Há diversos meios de luta, nunca vi metroviários promoverem “ações diretas” com a mesma frequência tal qual já vi entregadores de aplicativo. Contudo, há de se ponderar a pertinência, aplicabilidade, força e capacidade de impacto dos distintos meios de luta a cada dado momento.
Justamente com base nisso, na capacidade de intervenção política e impacto perante a produção e reprodução do Capital, é que podemos discutir quais setores da classe trabalhadora são estratégicos e centrais para a tomada do poder. Sem isso, qualquer debate sobre as necessidades de “diálogo” ou inserção fica limitado a abstrações que são estranhas ao leninismo. O rigor científico de direcionar nosso trabalho político em torno de determinada religião pelo simples fato de ter adeptos entre camadas empobrecidas do povo trabalhador não me parece ter mais pertinência do que essa mesma análise quanto à preferência entre times de futebol: Ambos são elementos centrais da vida íntima e até política de inúmeros trabalhadores, são temas que devemos saber abordar de modo qualificado, mas que nem por isso devem ser superdimensionados no que diz respeito a nossos critérios de intervenção política.
Aqui não digo como se o camarada Bezerra fosse alguém que reivindica intencionalmente uma perspectiva estranha ao leninismo, eu francamente não o conheço bem o bastante para fazer essa avaliação de modo honesto. Dito isso, me parece que em maior ou menor medida a tese em sua tribuna sobre a expressividade do evangelismo no povo trabalhador incorre na tendência de colocar a tarefa do partido como uma “aproximação com o povo” em abstrato, tendência que me parece equivocada pelas razões apontadas anteriormente.
[2] https://placar.com.br/placar/qual-e-a-maior-torcida-do-pais-em-2024-veja-o-que-diz-nova-pesquisa/
[4] Vide o debate de Lênin sobre multiplas formas de luta no texto “A Guerra de Guerrilhas”.