Problemas econômicos do socialismo: como aplicar o programa do PCBR?
Se trata de uma tarefa de suma importância, uma vez que devemos ter a capacidade de formular como exatamente a ampla legislação social incluída no programa do partido será aplicada.

Por Gabriel Xavier | Tribuna de Debates
Desde a dissolução da União Soviética e das economias planificadas no Leste Europeu a partir de 1989, o discurso que ecoa o “fim da história”, sobre a superioridade da democracia liberal e do capitalismo ocidental – particularmente na década de 1990 – permanece vigente, mesmo que tenha ocorrido certo recuo após a crise financeira que atingiu o mundo em 2008. Em consonância a isso, permanece um discurso no movimento operário, no Brasil e mundialmente, de que todo o esforço construído ao longo do pós-guerra deve ser renegado entre aqueles que reivindicam as bandeiras do socialismo.
Uma ideia de que o socialismo soviético, por exemplo, foi um desastre desde o princípio (ou então desde a ascensão de Stálin), que mesmo sob as melhores intenções dos dirigentes do PC da União Soviética, havia algo inerente no sistema que o tornava uma aberração, fadada a desmoronar em 1991. Nesse sentido, são muito interessantes as reflexões que o camarada Jones Manoel faz em seu livro A batalha pela memória: reflexões sobre socialismo e revolução no século XX (2024), em especial na apresentação da obra, onde o autor recusa esse tipo de abordagem derrotista que tomou conta de diversos partidos políticos de esquerda.
E com esse sentido que tenho acordo com o camarada ao afirmar que “Não precisamos de mais autocrítica. Precisamos de uma outra autocrítica” que escrevo essa tribuna. Assim, procuro contribuir para o partido na minha área de maior profundidade, economia política, e suplico aos camaradas (inclusive o próprio Jones) que consigam contribuir com outros conhecimentos e escrevam para as tribunas do partido, essa é uma das formas de manter o PCBR vivo.
Se trata de uma tarefa de suma importância, uma vez que devemos ter a capacidade de formular como exatamente a ampla legislação social incluída no programa do partido será aplicada. Durante a eleição para os delegados do congresso da UNE, fiquei muito feliz de ver propostas concretas de melhoria da vida universitária em várias chapas que o partido compunha, indo além da simples agitação de um programa máximo em abstrato que não apresenta medidas concretas.
Ao realizar uma leitura rápida do programa do PCBR no XVII Congresso, é perceptível a enorme expansão proposta de diversos direitos sociais, como a redução da jornada de trabalho e da idade de aposentadoria, elevação da generosidade da previdência social, criação de um sistema integralmente público de saúde e educação, gratuidade do transporte público, entre outros. Algumas dessas medidas, como consta no próprio documento congressual, são possíveis através de reformas no capitalismo, outras apenas serão realizáveis em uma futura revolução socialista.
Nesse sentido, um dos objetivos desta tribuna é apontar o problema de tentar equacionar o enorme aumento da legislação social proposta com a atual capacidade da economia de conseguir, efetivamente, concretizar esses direitos.
Portanto, procuro fazer um balanço – breve e ainda em formulação – sobre a experiência econômica no Leste Europeu no pós-guerra. É necessário estimular a reflexão entre camaradas, para ir além de uma defesa simples da planificação econômica ocorrida ao longo do período em análise sem compreender seus problemas e desafios.
Bem-estar e defesa da revolução
Com isso em vista, é mais interessante o período após a Segunda Guerra Mundial, uma vez que, dos anos que vão desde o início da Revolução Russa, em 1917, até a destruição do Terceiro Reich, em 1945, os bolcheviques enfrentam dois conflitos mundiais e uma guerra civil com intervenção de praticamente todas as potências imperialistas, além de uma intensa luta interna no partido comunista. Assim, ao menos após essa luta por simplesmente existir, o país estava pronto para finalmente edificar um projeto de transformação socialista, pelo menos sem ameaças diretas à sua integridade territorial, como uma invasão militar.
Não estamos mais nas primeiras décadas do século passado, não é um exercício de futurologia imaginar como seria um país socialista (ou, para uma definição mais precisa, em transição ao socialismo). A União Soviética cumpriu esse papel de ser a primeira experiência histórica a aplicar na prática a planificação da economia e a edificação de um projeto de construção socialista.
No livro Socialismo traído: por trás do colapso da União Soviética (2004), de Roger Keeran e Thomas Kenny, fiquei decepcionado ao não encontrar uma análise mais profunda sobre os problemas econômicos da URSS. A abordagem dos autores apenas se resigna a considerar os fracassos das reformas econômicas implementadas após a morte de Stálin, em 1953, como desvios do sistema de planificação econômica e promotores da “segunda economia” (a produção privada ilegal e legal), ou seja, não aponta defeitos ou erros ocorridos na “primeira economia” (produção estatal e planificada).
“Mesmo os proponentes cautelosos de mercados dentro do contexto de um planejamento central dominante, têm que explicar os seguintes fatos desconfortáveis. Nas últimas três décadas e meio de existência da URSS, quanto mais relações de mercado e outras reformas eram introduzidas – oficialmente e legalmente em várias ondas de reforma (Khrushchov, Kosygin e Gorbachev), e silenciosamente, de forma constante e muitas vezes ilegal através da disseminação da segunda economia – mais as taxas de crescimento econômico a longo prazo caíam. Até mesmo alguns economistas burgueses admitem o impacto negativo da segunda economia. As taxas de crescimento soviéticas mais rápidas já alcançadas ocorreram entre 1929-53, quando a liderança soviética sustentava firmemente o planejamento central e reprimia as relações de mercado anteriormente toleradas na NEP de 1921-29.” (KEERAN, Roger. KENNY, Thomas. Socialismo Traído: por trás do colapso da União Soviética, iUniverse, p. 240, 2010, tradução livre do inglês).
Aqui não se considera a possibilidade de que as deficiências da planificação econômica em prover bens e serviços era um enorme incentivo à produção privada clandestina. Não se trata de apenas tornar ilegal a segunda economia, mas tornar a parcela planejada da economia mais eficaz, moderna e superior aos mecanismos de mercado na alocação de recursos. Caso isso não seja possível, utilizar uma simples medida administrativa (um código penal que criminaliza atividades econômicas da segunda economia) para conter o setor privado serão inúteis.
Deve-se se explicar, então, as razões da perda de eficiência no desenvolvimento das forças produtivas sob o planejamento central e não apenas, segundo o livro, afirmar que o caminho traçado até 1953 estava correto e apenas com seu posterior desvio é que a URSS apresenta sinais de estagnação.
Utilizando dados do Maddison Project Database, é perceptível a ameaça ideológica ao mundo capitalista, sob liderança dos Estados Unidos, que a União Soviética ofereceu nas primeiras décadas do pós-guerra, por simplesmente existir. O crescimento do PIB per capita da URSS é significativamente superior até o final da década de 1960. Todavia, tal cenário se estabiliza ao longo da década de 1970 e nos anos oitenta o resultado é invertido, com um crescimento pífio por parte da URSS enquanto os Estados Unidos e Reino Unido apresentam manutenção na expansão do PIB per capita.

Entretanto, essas estatísticas não demonstram como a produção estava organizada. São dados puramente absolutos, o PIB per capita apenas divide o produto total pela quantidade da população, não apresenta qual parte da economia de cada país era destinada à defesa nacional e qual era utilizada para a elevação do padrão de vida da população. Esse ponto é importante uma vez que, para realizar a ampla legislação social exigida no programa do partido, é necessário ter em mente a garantia de nossa soberania, algo que em uma revolução socialista certamente será ameaçada, seja militarmente ou via sanções econômicas.
Ainda na apresentação do seu livro, o camarada Jones ressalta um ponto semelhante: “como reprimir a contrarrevolução sem ferir de morte a democracia socialista que tenta nascer? Desde sempre, guerras e conflitos militares não estimulam democracia e liberdade, antes o contrário.”
O programa do partido também aponta a necessidade de um programa nuclear brasileiro, ou seja, recursos econômicos que poderiam ser utilizados para a construção de moradias e hospitais serão destinados para fins de defesa nacional, um quadro semelhante ao que enfrenta a Coreia Popular. Portanto, o desafio é imenso, como garantir a continuidade do processo de construção socialista, impedindo mudanças de regime via golpes e intervenções externas e – ao mesmo tempo – cumprir com objetivos de elevar o padrão de vida da população?
Nesse aspecto, o livro de Keeran e Kenny chega a afirmar que “menos investimento na indústria pesada, mais ênfase em bens de consumo, mais nivelamento de salários, tudo isso tenderia a reduzir o crescimento.” Assim, podemos chegar à conclusão – péssima – de que a construção do socialismo deve restringir a renda da população para garantir o crescimento econômico e a defesa da revolução, com menos recursos destinados para bens de consumo e mais para indústria pesada e o setor militar.
Sob esse aspecto, é relevante entender as diferenças na qualidade de vida da população no Leste Europeu, uma vez que são significativas. No gráfico 2, é evidente a discrepância entre os países, com a Alemanha Oriental registrando um PIB per capita 3,4 vezes maior que a Albânia.

Entretanto, utilizando-se da mesma fonte do gráfico 2, em 1973, praticamente todos os países do Oeste Europeu superavam a qualidade de vida do bloco socialista, com a Suíça liderando com US$ 18.204 e Portugal, em último lugar, com US$ 7.343. Aqui, por óbvio, é importante observar que essa região sofreu pouco com a Segunda Guerra Mundial, sequer chegando perto da devastação ocorrida durante os confrontos entre a Alemanha Nazista e a União Soviética.
Tendo essa perspectiva em vista, o esforço de reconstrução das economias no pós-guerra também apresenta enormes divergências, tanto no Oeste Europeu, como no Leste Europeu. Países com a Bulgária registram um crescimento médio do PIB per capita, de 1950 a 1973, na ordem de 5,2%, não apenas sendo destaque no Leste Europeu, mas sendo superior a países que a Alemanha Ocidental (um dos mais ricos do bloco capitalista), que apresentou variação de 5,0% no mesmo período. Entretanto, a Tchecoslováquia registra apenas 3,1% de crescimento, inferior à União Soviética (3,4%) e países vizinhos, como a Áustria, que apresentou 4,9% no período.
Ainda no livro Socialismo traído, os autores argumentam que a URSS não apresentava sinais de uma crise econômica aguda até 1985, quando Gorbachev tornou-se secretário-geral do PCUS. O que, por certo, não significa que não haviam problemas severos na economia, principalmente com o sistema de planificação econômica.
Utilizando uma série histórica sob base de preços diferentes de 1990 (agora em 2011), é possível afirmar, contudo, que após a segunda metade da década de 1970, a URSS e a maioria dos países do Leste Europeu entraram em estagnação.

Tal situação é mais aguda na Polônia, que registrou uma forte recessão no período de 1979 a 1982, sofrendo uma recuperação pífia e incapaz de recuperar o nível de renda anterior à crise econômica. A Iugoslávia, após registrar uma expansão significativa até fins da década de 1970, chegando mesmo até a atingir um nível de PIB per capita semelhante à União Soviética, entra em uma fase de estagnação a partir dos anos 1980. De forma inversa, é perceptível que a URSS e a Hungria ainda registram algum fôlego no período, apresentando certo crescimento até 1987. A Romênia, ao longo do período, apresenta comportamento semelhante à Bulgária e Iugoslávia, com estagnação já tendo início no fim da década de 1970, embora em um nível de renda significativamente inferior.
Qualquer comunista deve-se perguntar o que de fato causou a estagnação generalizada no bloco socialista na segunda metade da década de 1970. Quais deficiências econômicas levaram os países a essa situação?
Duas ressalvas importantes
Por óbvio, o argumento desta tribuna não se resume a simplesmente tentar entender como as economias planificadas poderiam reproduzir o padrão de consumo nos países do centro do capitalismo, tal abordagem seria ignorar inclusive questões relevantes de dependência entre centro-periferia.
Não apenas isso, mas o estilo de vida estadunidense é impossível de ser reproduzido globalmente, sendo um problema reconhecido há décadas. Em um texto clássico Celso Furtado sintetiza a questão magistralmente:
“O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. Temos assim a prova cabal de que o desenvolvimento econômico – a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável.” (FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Ubu Editora, 2024, p. 87).
A segunda ressalva é a mensuração da qualidade de vida do PIB per capita, que deve vir em conjunto com outras variáveis. Por exemplo, segundo dados do próprio Banco Mundial, apesar de ter um nível de renda menor que os Estados Unidos, a sociedade soviética detinha, em 1974, um médico para cada 340 pessoas, enquanto a sociedade estadunidense detinha apenas um médico para cada 610 pessoas. Em conjunto, todos os países do bloco soviético tinham um acesso melhor à médicos por pessoa que os Estados Unidos, com exceção da Albânia (que era o país mais pobre do bloco). Isso ainda sem considerar marcadores de segregação racial, uma vez que é uma hipótese plausível que o acesso nas sociedades do bloco socialista era muito mais homogêneo, com uma oferta de serviços médicos muito mais restrita às populações não brancas nos Estados Unidos.
É com essa perspectiva que Walter Rodney afirma as deficiências de análise de diversos pesquisadores burgueses ao analisar as diferenças na qualidade de vida de diferentes países.
“[...] a África do Sul orgulha-se de ter a maior renda per capita do continente, mas, como indicação de como essa renda é compartilhada, deve-se observar que, embora o regime do apartheid garanta que apenas 24 bebês brancos morram a cada mil nascidos vivos, ele também se contenta em permitir que 128 bebês africanos morram a cada mil nascidos vivos.” (RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Boitempo, 2022, p. 50)
Nesse aspecto, para além de análises puramente numéricas, os comunistas devem fazer o óbvio, partir do método da economia política. Assim, espero ter jogado um tempero na formulação dos camaradas! Utilizem o espaço das tribunas para pensar em como aplicar o programa do partido!