'Precisamos falar sobre essa dor' (Natascha Cohan)

A circulação livre e organizada de ideias sem a lógica de competitividade/produtividade pode ser um grande auxílio na manutenção da saúde mental dos militantes. Nada melhor do que poder falar sem medo.

'Precisamos falar sobre essa dor' (Natascha Cohan)
"A negação do debate é, de alguma forma, a invisibilização do sujeito."

Por Natascha Cohan para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Sobre Dores de Cabeça

É belo ser comunista,
ainda que cause muitas dores de cabeça.
E é que a dor de cabeça dos comunistas
se supõe histórica, melhor dizendo,
que não cede ante as pílulas analgésicas
senão somente quando da realização do Paraíso na terra.
Assim é a coisa.

Sob o capitalismo nos dói a cabeça
e nos arrancam a cabeça.
Na luta pela Revolução a cabeça é uma bomba de retardo.
Na construção socialista planificamos a dor de cabeça
a qual não diminui, muito pelo contrário.

O comunismo será, entre outras coisas,
uma aspirina do tamanho do sol.

ROQUE DALTON

Nesse texto, tentarei me debruçar um pouco sobre uma temática que para muitos pode ser adjacente a luta por uma outra sociedade, mas que, na verdade, está diretamente atrelada a ela.

Falar sobre saúde mental na sociedade capitalista é talvez chover no molhado. Ao invés de efeito colateral de uma materialidade e ideologia destruidora, o sofrimento psíquico hoje faz parte da lógica empreendedora neoliberal. Mas não tenho a intenção de aprofundar a temática em questão, apesar de ao longo do texto ser impossível não abordá-la.

Precisamos falar sobre saúde mental na militância. Quantos militantes de sua célula, comitê ou núcleo foram já afastados para cuidarem melhor de sua saúde mental? Quantos entraves práticos ocorreram na atuação politica de cada organismo partidário, fruto do adoecimento mental de seus militantes? A verdade é que inúmeros militantes adoecem psiquicamente em nossas fileiras e não sabemos ainda como lidar com esse sintoma.

Somos trabalhadores e trabalhadoras, com toda a heterogeneidade da nossa classe, que sofrem diversas formas de opressão além da exploração característica desse modo de produção. Portanto, quando adentramos as portas de uma organização revolucionaria, é porque não “aceitamos” facilmente a vida como ela se mostrou nessa sociedade. Querer construir a mudança escancara um sofrimento de não adequação (legitimo) a essa forma de mundo.

Organizando o ódio, a indignação, o sofrimento, em motor propulsor para revolução, nos enfileiramos dentro de uma organização revolucionaria que nos guiará a um sentido comum.

O sentimento de pertencimento, dividir os anseios por um novo mundo ou a prática de se estar em coletivo têm um grande potencial para amenizar os sofrimentos psíquicos que essa sociedade gera. Ao mesmo tempo, também pode reproduzir uma lógica perversa que aprofundará o sofrimento psíquico a tal ponto em que o sujeito não consiga mais ser parte desse instrumento politico que balizará os trabalhadores na transformação radical da sociedade.

Somos sujeitos de nosso tempo histórico e por isso iremos reproduzir, invariavelmente, práticas e condutas construídas na sociedade capitalista dentro da organização. Ao reconhecer como bom militante somente aquele que consegue realizar uma quantidade grande de tarefas, reproduzindo uma lógica produtivista, incitamos indiretamente a competição ao invés da solidariedade; a competição abre espaços psíquicos para o sentimento de individualidade e a visão do outro como complemento, passa a ser vista como obstáculo; isso incentivará as tais “conversas de corredor” que pode desencadear sentimentos persecutórios dentro da organização.

Numa lógica produtivista e competitiva, quanto mais “alto” se sobe em uma organização, mais louros se obterá. E é aí que a forma organizativa tem sua importância como gestor do sofrimento ou da saúde psíquica de seus militantes.

A deterioração do centralismo democrático adoece psiquicamente os sujeitos políticos. A negação do debate é, de alguma forma, a invisibilização do sujeito. Falar é uma forma de construir uma linha linear do que pensa sobre tal conteúdo, mas que leva consigo o que sente. Ser impossibilitado de debater é tornar impossível elaborar psiquicamente algumas questões.

Por isso, subir a instâncias mais altas de direção te possibilitaria uma maior circulação de suas ideias, sendo legitimadas por seu posto na organização, realizando o sujeito militante enquanto um detentor do saber (já que somente outros em postos equivalentes serviriam ao debate) e dando mais liberdade para sua elaboração psíquica.

A circulação livre e organizada de ideias sem a lógica de competitividade/produtividade pode ser um grande auxílio na manutenção da saúde mental dos militantes. Nada melhor do que poder falar sem medo. Sem medo de ser perseguido, diminuído, isolado politicamente.

Falar é mostrar-se vulnerável. É saber que poderão lhe refutar, que talvez você não saiba tanto assim sobre algo como julgava saber, mas sobretudo, falar é saber que tem outros que te escutam. Isso pode ser muito libertador psiquicamente, num ambiente que acolhe e que não hierarquiza o conhecimento, mas também pode ser um operador do sofrimento em um ambiente competitivo.

Retomando a questão da lógica de competitividade e sofrimento psíquico do neoliberalismo, não temos mais um sujeito que adoece fruto da precarização do trabalho e da vida. É o trabalho que apesar de ser precarizado, é visto como esforço recompensador e o sofrimento psíquico antes visto como consequência, agora é visto como parte intrínseca da vida. Essa lógica se aplica a militância. A banalização do sofrimento psíquico nas nossas fileiras é tão grande que se utilizam da expressão “quebrou” quando se quer falar sobre um militante que adoeceu tanto psiquicamente que teve que se distanciar do agente adoecedor.

E isso é outro ponto. A forma como a organização politica lida com uma questão social (adoecimento mental) é individualizando o tratamento. O afastamento de um militante é o sintoma de um despreparo em lidar coletivamente com uma causa que também é social. E o pior, é mostrar que o sujeito de uma forma ou outra terá que conviver com seu sofrimento psíquico militando, pois quando retornar a militância, o formato da organização que o adoeceu, continua ali. Mais uma vez, o sofrimento psíquico como parte intrínseca da militância.

Ainda na questão da competitividade dentro da militância revolucionaria, a disciplina é um ponto importante. Um ou uma camarada disciplinada(o) é geralmente bem quisto entre os seus. Na deterioração da forma organizativa, disciplinado pode significar aquele que segue às cegas os direcionamentos de seus dirigentes com a intenção de construir um apadrinhamento, como também, ser disciplinado, nessas condições, pode ser um véu que cobre uma forma autoritária de se relacionar com outros. Essa duas formas deturpadas ou adulteradas da disciplina auxiliam no sentido de reforçar o formato de organização que está degenerado. Esses militantes se utilizam da degeneração da forma organizativa para fins pessoais e seus objetivos pessoais (ser um dirigente importante com regalias, como poder influenciar o rumo do trajeto politico de um militante dentro da organização, por exemplo) auxiliam na manutenção da degeneração da forma organizativa. Silenciamentos, ameaças, necessidade constante de ser guardião do partido fazendo com que tudo passe pelo aval dele (gerando nos outros sentimentos de insegurança, etc) são práticas frequentes de uma disciplina deformada.

A questão aqui é que a intensificação do sofrimento psíquico dos militantes de uma organização politica tem suas reverberações na limitação da atuação politica da organização. Militantes adoecidos se afastam, tarefas se acumulam e sobrecarregam outros militantes que também se afastarão. Diminui assim a possibilidade de inserção no território ou realização de certas atividades que fazem parte do plano político da organização. Temos aqui uma consequência material, de causas também materiais. Mas ainda não nos debruçamos com a devida importância sobre esse tema.

São os sujeitos, suas práticas (dentro e fora da organização) e ideias que constroem o partido. E é nessa relação de interação, que os sujeitos, em movimento, podem se construir outros, superando velhos obstáculos, fazendo nascer assim novos obstáculos para superação. Mas, para se propiciar isso é preciso que haja uma forma organizativa que impulsione o movimento com vistas a tornar a militância um espaço com potencial para amenização do sofrimento psíquico que esta forma de sociedade gera. Militantes com melhor saúde mental, lidam melhor com as adversidades, constroem vínculos afetivos mais saudáveis, propiciando uma maior estabilidade na atividade militante e assim a possibilidade de construção de excelentes quadros ao longo do tempo.

Espero ter contribuído um pouco com esse debate tão importante e tão caro a nossa militância. Na verdade, ainda não temos respostas (o que temos são muitos questionamentos) e por isso penso que o debate é urgente. Como reconstruiremos um partido se não entendermos a relação entre sujeito, organização e saúde mental?