'Por um PCB jovem, diverso e contemporâneo' (Golberry Lessa)
Ser revolucionário significa, entre outras coisas, lutar pelo desenvolvimento não alienado dos seres humanos em todas as áreas. Seja na moralidade, na economia, na política, na arte ou na tecnologia, entre outras dimensões.
Por Golbery Lessa para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
1. A tendência de oligarquização dos partidos como desafio aos leninistas
Em 1914, Robert Michel, no livro Sociologia dos Partidos Políticos, sustentou a tese de que todos os partidos (além de sindicatos, associações e cooperativas), mesmo os entusiastas da democracia proletária e com significativa inserção nas classes trabalhadoras, vivenciariam inevitavelmente processo de oligarquização. Pode-se apontar os problemas metodológicos e até o reacionarismo de algumas referências usadas pelo autor, mas não é possível negar que, ao longo do século XX, muitos partidos, inclusive aqueles com programas revolucionários, foram liderados de modo autoritário por pequenos grupos de militantes históricos e intelectuais cooptados pelas direções. O fenômeno adentrou o século XXI. O leninismo sempre se colocou a tarefa de enfrentar essa perniciosa tendência. Principalmente pelo fato de que nós, marxista-leninistas, acreditamos na possibilidade e na necessidade da democracia proletária, a melhor forma de igualdade política antes da sociedade plenamente comunista, e valorizamos o princípio do centralismo democrático (adaptado a cada conjuntura e situação).
O enfrentamento desse desafio é incontornável porque a oligarquização das organizações políticas questiona dois pilares do leninismo: 1) a ideia de que a democracia proletária é viável e imprescindível para uma transição socialista bem-sucedida, e 2) a ideia de que o centralismo democrático deve e pode ser, de fato, democrático. A atual crise do Partido Comunista Brasileiro (PCB) é resultado de um processo de oligarquização, que provocou o colapso da legitimidade das instâncias dirigentes e a divisão do partido em dois campos: o PCB-RR, que se mobiliza para reconstruir a democracia interna e rediscutir a tática partidária, e o Comitê Central, disposto a queimar os próprios navios para não retroagir um milímetro no expurgo dos divergentes e destruir as pontes, internas e externas, visando manter a ultra concentração do poder. Para enfrentar essa crise política e organizacional, nós leninistas precisamos, como sempre, responder à nossa pergunta guia: O que fazer?
Antes de apresentarmos sugestões práticas para o enfrentamento do problema no Partido Comunista Brasileiro (PCB), vamos recuar um pouco no tempo e referir-nos a alguns conceitos imprescindíveis.
Apesar dos seus problemas teóricos, Robert Michel estava correto ao sublinhar que a divisão entre trabalho intelectual e tarefas mais práticas nos partidos é uma das principais origens da tendência à ultra concentração de poder. De fato, a divisão de trabalho na sociedade capitalista cria algumas das condições objetivas e subjetivas para tornar exitosa uma estratégia interna de monopolização dos principais postos. Por exemplo, os dirigentes possuem mais condições de criar artificialmente assimetria de acesso a informações e de ocultar, quando lhes interessa, as próprias ações e posicionamentos nas instâncias. Procuram legitimar o processo por intermédio de narrativa deformadora do conceito de centralismo democrático, transmutado em instrumento autoritário e justificador de curiosa monarquia de “eleitos” pelo destino ou por um “grau científico superior”. Pode-se constatar esse expediente na deliberação do atual CC de que os/as assistentes participassem dos grupos de mensagens e de todas as reuniões, presenciais ou digitais, das instâncias assistidas. Na prática, as assistências passaram a monitorar as opiniões e restringir a autonomia relativa dos outros elos do complexo partidário (células, frações, corrente sindical, juventude, CRs e coletivos). Um das consequências foi a limitação dos contatos horizontais, contribuindo para o partido tender a se transformar em pequenas ilhas monitoradas pelo CC, os CRs e as direções da corrente sindical, da juventude e dos coletivos. Ao mesmo tempo que atuavam para fragmentar o complexo partidário, os dirigentes restringiam a comunicação interna saída do topo para a base, criando situação na qual era impossível monitorá-los nas tarefas concretas ou responsabilizá-los por equívocos práticos e teóricos.
Apesar de ser inegável a tendência à oligarquização dos partidos, ela pode ser superada em organizações revolucionárias por meio dos instrumentos do leninismo. O autor de Sociologia dos Partidos Políticos minimiza decisivas tendências contrárias existentes nos processos analisados, construindo artificialmente uma lei de ferro incontornável. Equivoca-se na abordagem do relacionamento entre dirigentes e o que chama de “massa” (entendida pelo autor como uma totalidade amorfa, não constituída por classes sociais e outros grupos), advogando supostas apatia e subserviência insuperáveis do proletariado em relação aos líderes. Na verdade, as classes oprimidas (gêneros, etnias e nações) podem permanecer, em dado intervalo de tempo e sob determinadas circunstâncias, vulneráveis à perpetuação ilegítima, no entanto, não é verdade que, no médio e longo prazo, o/as oprimidos/as sejam incapazes de livrar-se de dadas lideranças por meio da recusa de participação em tarefas políticas, eventos e contribuições financeiras.
Essa relação conflituosa entre trabalhadores/as e partidos torna-se inevitável devido ao permanente conflito entre o materialismo espontâneo do senso comum e a narrativa elaborada pelas lideranças, geralmente inspirada em referências acadêmicas. É importante observar que o senso comum não é estrutura vazia ou caos subjetivo, possui características próprias e pode absorver os resultados da ciência e as dimensões mais sofisticadas da cultura popular. Apesar de ser vulnerável a mistificações, à inércia, às generalizações irrazoáveis e ao abandono de noções científicas ou tradicionais adquiridas, o núcleo pragmático e materialista do pensamento cotidiano sempre permite que as classes (e outras identidades) oprimidas percebam as traições e neguem legitimidade às lideranças, buscando alternativas ideológicas e organizacionais.
Em resumo: devido à divisão social do trabalho, que se impõe no interior dos partidos pela convergência entre motivos práticos e a influência das assimetrias objetivas e subjetivas do capitalismo, os/as trabalhadores/as são vulneráveis à ultra concentração de poder e à traição, mas apenas por dado intervalo de tempo e em determinadas circunstâncias. As classes trabalhadoras não são passivas diante das lideranças. Por exemplo, na Revolução Francesa e na Revolução Russa, para destacar dois paradigmas revolucionários diferentes, as classes populares impuseram sua vontade revolucionária às direções, democratizaram os grupos políticos e impuseram seus interesses. O campesinato francês realizou a revolução agrária sem nada articular com os políticos burgueses. O proletariado jacobino impôs à Convenção Nacional a execução dos monarcas. Similares foram as atitudes dos camponeses e dos operários das grandes cidades da Rússia. Para ocupar o Palácio de Inverno, os bolcheviques precisaram esperar que as classes trabalhadoras lhes dessem a maioria dos delegados nos principais sovietes.
A tendência à oligarquização não inviabiliza revoluções e os consequentes processos de democratização no interior dos partidos revolucionários e em outras instituições políticas.
2. Origem, especificidades e adaptações nacionais do leninismo
O que se pode fazer para evitar a oligarquização dos partidos revolucionários?
Primeiro, precisamos seguir o conselho metodológico de Lenin: refletir concretamente sobre questões e situações concretas. Isso não significa pensar de maneira pragmática ou privilegiar o empírico. Buscar o concreto implica no uso de abstrações bem articuladas e desenhadas em níveis adequados para a compreensão das singularidades e das universalidades da real ou da questão analisada. Na linha de Marx e Engels, o leninismo se interessa pelo particular, isto é, pela síntese entre o singular e o universal. Não visa fixar-se nas generalidades ou em constatações empíricas isoladas. Deplora a aplicação de fórmulas teóricas, organizacionais, táticas e estratégicas. Rejeita as generalizações não razoáveis (por exemplo: “Só existe um modelo de partido revolucionário para qualquer lugar, tempo e circunstância.”), as transposições mecânicas de conclusões relativas à dada formação social para outras (do tipo: “A estratégia vitoriosa para a Rússia será vitoriosa no Brasil.”) e os anacronismos (tais como: “As soluções organizacionais para o Brasil o século XXI podem ser as mesmas elaboradas para o país na década de 1930”).
Segundo, necessitamos cultivar uma visão complexa e historicizada do legado de Lênin e seus continuadores. O leninismo é um desenvolvimento do marxismo, principalmente nas teorias da consciência de classe, da organização e do processo revolucionário. Agrega mediações à teoria política de Marx e Engels. O contínuo desdobramento teórico por meio de novos acúmulos é uma das principais características do socialismo científico. Não existe antagonismo entre verdade objetiva e progressivo aprofundamento da teoria. Lênin também trouxe ao marxismo contribuições decisivas referentes à trajetória econômica capitalista em países de via não clássica, ao imperialismo e à questão nacional, tendo sido o primeiro radical defensor da autodeterminação dos povos. São temas centrais no entendimento dos processos revolucionários. O leninismo é também uma reafirmação exemplar da atitude pós-maquiavélica de Marx e Engels no que se refere à articulação entre o realismo político mais radical e a defesa, durante o processo revolucionário, dos valores éticos emanados da condição social e das possibilidades de consciência dos oprimidos.
É equívoco transformar o leninismo em simples técnica de organização política e, pior ainda, reduzir Lênin a pretenso pioneiro da defesa do centralismo democrático, da função organizativa dos jornais políticos e da profissionalização dos revolucionários. Esses três pontos já existiam, por exemplo, nos partidos e outras organizações ligadas às duas primeiras Internacionais. A rigor, formas intuitivas de centralismo democrático foram usadas desde a Antiguidade e nas revoluções inglesa, norte-americana, francesa e de São Domingos, bem como nos movimentos de independência nacional da América Latina. Em meados do século XIX, os cartistas se mobilizaram a partir de jornal concebido para ser organizador de movimento operário de massa. Lênin apenas explicou melhor e articulou de maneira mais consciente essas três dimensões.
O leninismo não é produto de uma individualidade. O líder bolchevique apenas recolheu e lapidou de maneira coerente e inovadora o acúmulo teórico e prático do movimento revolucionário internacional e das classes trabalhadoras submetidas ao poder absolutista do czar. A particularidade do capitalismo no Império russo, principalmente a contradição entre o desenvolvimento industrial e o absolutismo/as relações feudais (a propriedade comunitária da terra nas aldeias convivia com o mercado e a corveia), criou desafios científicos, literários e políticos que obrigaram a intelectualidade e as classes sociais a um árduo e acidentado processo de aprendizagem.
Ao final, após idas e vindas, diversas tentativas e trágicos fracassos, surgiram inovadoras propostas teóricas, literárias e organizacionais, expressas, por exemplo, na grande literatura, nas artes plásticas, nas ciências sociais e no pensamento revolucionário. O resultado da resposta teórica e prática dos intelectuais e do povo se consubstanciou em vários agrupamentos políticos e facilitou revolução socialista feita, ao contra o capitalismo industrial nas grandes cidades, as relações feudais sobreviventes em dimensões do campo e o Estado dirigido pela nobreza. Surpreendentemente, a primeira revolução socialista inspirada no marxismo e de alcance nacional ocorreria contra Estado absolutista e não contra Estado dirigido pela burguesia. Como perceberia Gramsci (a referência não implica na concordância com todas as dimensões da reflexão política do comunista italiano), esta singularidade terá decisivas implicações na adaptação em outras formações sociais de táticas usadas no caso russo.
O leninismo se originou do uso do marxismo e do acúmulo político e organizacional das classes trabalhadoras no entendimento e na resolução revolucionária do caso russo. Mas, ao mesmo tempo, essa experiência particular, como ocorreu em todas as revoluções, produziu avanços teóricos e organizativos gerais, aplicáveis, nas suas dimensões mais abstratas, em outros casos, desde que devidamente adaptados às particularidades das outras formações sociais. Essa adaptação se constatou nas formas pela qual o leninismo foi aplicado em revoluções tão importantes como a chinesa e a cubana, entre outras. Mao Tsé-Tung e Che/Fidel não negaram Lênin, afirmaram-no em patamar superior, agregando ao leninismo mediações próprias da China e de Cuba.
3. Os equívocos atuais do PCB na adequação do leninismo ao Brasil
Evidentemente, a agregação de novas mediações (teóricas e organizacionais) ao leninismo também ocorreu no caso brasileiro. Nos últimos 101 anos, os/as comunistas, dentro e fora do PCB, contribuíram muito para a compreensão da particularidade do capitalismo no Brasil e o avanço organizacional das lutas populares, tais como as realizadas pelas ligas camponesas, o movimento sindical, o movimento estudantil e os grupos de combate à discriminação racial e de gênero. A superação da perspectiva dualista da sociedade brasileira teve relação direta com os testes de suas consequências políticas efetivados pelos comunistas e nacionalistas. O dualismo/etapismo não seria desacreditado apenas por críticas lançadas desde os gabinetes de estudo, por mais artigos e livros publicados. Foi imprescindível que a própria prática política tivesse demonstrado a impropriedade da ideia de revolução “democrática, contra o latifúndio e anti-imperialista”. A própria teoria superadora da abordagem dualista foi desenvolvida por autores/as ligados/as à tradição leninista trazida para o país pelo PCB.
Na presente conjuntura, há verdadeiro abismo entre a forma de organização e atuação (principalmente na tática, mas também em dimensões da estratégia) do PCB e várias dimensões objetivas e subjetivas da realidade nacional. O partido continua organizado para um Brasil do passado, principalmente para aquele dos períodos ditatoriais, como foram os marcados pelo Estado Novo e a ditadura empresarial-militar iniciada em março de 1964. Aparentemente, essa fixação no passado faria algum sentido, pois o partido se pensa como organização revolucionária, o que justificaria o pensar-se sempre na iminência da clandestinidade, e faz apenas 47 anos que um terço do Comitê Central foi covardemente assassinado pelos órgãos de repressão.
Por outro lado, o partido, não considera que faz 37 anos que avanços organizativos e de consciência das classes trabalhadoras têm arrancado das classes dominantes concessões políticas garantidoras de liberdades civis, que o bolsonarismo tentou extirpar entre 2019 e 2022. Existe, de fato, uma autocracia burguesa no Brasil (Florestan Fernandes), isto é, democracia de proprietários, restrita, excludente. Mas, ao mesmo tempo, por imposição da luta das classes trabalhadoras, essa autocracia não é uma ditadura plena porque concede algumas liberdades democráticas para segmentos sociais proletários e médios. São espaços institucionais que facilitam avanços não negligenciáveis na organização popular (por exemplo, a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra — MST). Esta situação autocrática não é singularidade brasileira, todas as “democracias liberais” são autocracias, não são democracias formais para todos, como propagandeia a ideologia dominante. No caso do Brasil contemporâneo, as liberdades civis existem de modo muito limita e em graus diferentes conforme a classe, a cor, o gênero, a região e a orientação sexual. Os homens brancos burgueses ou de classe média têm, na prática, muito mais direitos do que os/as trabalhadores/as, as mulheres e as populações negra, indígena, campesina e LGBTQIA+, entre outras identidades oprimidas. Configura-se uma situação de privilégio. Ou seja, quando os direitos civis são limitados a dados grupos, quando não são acessíveis a todos, na prática, transformam-se em privilégios.
Essa situação prática e derivações ideológicas cria a necessidade de estratégia flexível e complexa para o enfrentamento da questão democrática. A negação de direitos básicos (educação, saúde, vida, entre outros) para a maioria da população produz demanda massiva e potencialmente explosiva por democracia formal, aquele tipo de liberdade que o jovem Marx chamou de “emancipação política”. Ao contrário do que às vezes se pensa, os/as trabalhadores estão sempre preocupados/as com os direitos civis e sociais (mesmo que, de fato, não se fixem em abstrações do tipo “Estado de Direito” ou “harmonia entre os poderes da República”), suas principais aspirações não são apenas econômicas. Os problemas econômicos não são os únicos capazes de mobilizar as classes trabalhadoras. Por exemplo: há vários direitos fundamentais para a vida cotidiana, como o direito a não ser morto pela polícia, de poder interromper a gravidez, de ter uma escola pública de qualidade e o de ser bem atendido no posto de saúde.
Essa demanda por direitos, ao mesmo tempo que facilita a mobilização contra o poder das classes dominantes, tem o potencial de, se mal dirigida, produzir uma apologia da “emancipação política” em detrimento da superação das relações sociais capitalistas, que são a base efetiva da autocracia. No campo do democrático-popular, ou seja, entre o petismo e seus principais aliados, a compreensível e justa demanda por democracia formal é privilegiada ao ponto de soterrar a aspiração, efetiva e potencial, por superação do capitalismo. O PCB comete o erro oposto: a preocupação de sempre esclarecer os limites da democracia formal e, por essa via, garantir a robustez e a centralidade da crítica ao capitalismo é exagerada ao ponto de provocar a negligência da luta por direitos, um dos anseios imediatos e mais mobilizadores das classes trabalhadoras.
O partido, em decorrência, inventa artificialmente antinomia que, de fato, não existe. Há contradição e diferença profunda de natureza entre demanda democrática e demanda socialista, mas não é preciso criar, na prática partidária e das classes oprimidas, uma impossibilidade de convivência entre as duas dimensões. O PCB-CC opõe, de maneira rígida, não dialética, a luta por direitos (“emancipação política”) e a luta pela superação das relações capitalistas (transição ao socialismo). Essa postura se expressa, por exemplo, na inexistência de significativo número de núcleos focados em políticas públicas. Temos relativamente poucos/as militantes especializados/as em políticas particulares, o que nos fragiliza na disputa por hegemonia nos vários espaços de debate e construção de lutas específicas (reforma agrária, reforma urbana, questão ambiental, etc.). A subjetividade popular, como qualquer outra, sempre partirá da aparência da realidade (para o marxismo, a aparência é uma parte efetiva do próprio ente, não é mera ilusão criada pelo sujeito) para chegar ao cerne da realidade (faz isso agregando os resultados da ciência marxista ao senso comum, pois a maioria dos/as trabalhadores/as não terá tempo livre suficiente para assimilar o método científico antes da revolução), precisará enfrentar processo complexo no qual partirá do erro para, após várias experiências, recuos e avanços, chegará à compreensão adequada do real. Então, a luta por direitos, mesmo sendo pugna majoritariamente inglória por uma liberdade extremamente limitada e contraditória, já que eles não são plenamente alcançáveis para a maioria da população no capitalismo e não conseguem destruir a propriedade privada dos meios de produção (na verdade, a pressupõem), é um momento necessário e incontornável para o avanço da consciência das classes trabalhadoras.
O PCB precisa, então, entrar sem “preciosismo revolucionário” nessa luta com os oprimidos, aproveitando as experiências das massas para demonstrar, na prática, os limites da “emancipação política” e o relacionamento dos problemas imediatos, inclusive os institucionais, com a necessidade de superação do capitalismo. Evidentemente, a democracia formal, que pressupõe a garantia da propriedade privada dos meios de produção, não é valor universal, mas os/as trabalhadores/as apenas compreenderão isso por meio da própria vivência, nos embates reais, e não se retirando da arena política, se abstendo de participar dos sindicatos e das eleições, se negando a denunciar a autocracia das classes dominantes participando da grande política, que não pode ser realizada apenas no local de trabalho ou moradia. Não será lutando apenas no “chão da fábrica” por questões somente corporativas que o proletariado ficará imune às ilusões em torno da democracia formal, inclusive porque o processo de extração da mais-valia, cuja aparência é o principal motivo prático da alienação da subjetividade, ocorre justamente no processo de trabalho. Ficar exclusivamente na fábrica e nas empresas de outros ramos não é permanecer protegido da ideologia da democracia formal como única liberdade possível, é estar sob o despotismo fabril dos capatazes, uma ditadura burguesa escancarada e permanente.
4. Insuficiente superação do etapismo e impactos organizativos da rigidez tática
A dificuldade de o PCB lidar com a questão democrática tem relação direta com problemas epistemológicos que se expressam em quase todos os temas (a questão da vanguarda operária, a questão agrária, a questão ambiental, a questão nacional, entre outras), como na forma insuficientemente dialética com a qual a perspectiva etapista foi abandonada pelo partido. As deficiências na superação do etapismo ficam evidentes quando o CC aprova textos baseados na tese de que a revolução precisa ser socialista porque o capitalismo no país já seria “completo”. Ora, por essa lógica, como alguns camaradas já sublinharam, o partido estaria certo quando advogara o caráter nacional-democrático da revolução antes da “completude” do capitalismo no Brasil (aparentemente, esse conceito de “completude” se inspira em noção tematizada no livro "O capitalismo tardio", de João Cardoso de Mello, referente ao estabelecimento de todos os setores básicos da economia industrial capitalista). Além de não ter coerência teórica, pois a negação do etapismo parte justamente do abandono do foco na “maturação das forças produtivas” e da constatação da inexistência de sujeito revolucionário burguês no capitalismo periférico e dependente, essa linha nega a autocrítica feita pelo PCB referente ao dualismo/etapismo, inventando uma história fantasiosa de partido perfeitamente lúcido, sem erros e máculas, impávido.
Antes do abandono retórico do etapismo, se faziam mediações demais, relacionando-as de maneira antinômica, ao ponto de se cair no dualismo, hoje, se fazem mediações de menos, relacionadas de maneira apenas aparentemente dialética, derivando atuação prática que não considera as singularidades das questões, portanto, que permanece desconectada dos problemas concretos e do nível de consciência real imediato dos oprimidos. Esse problema metodológico possibilitou a criação e o fortalecimento da ideia de que a estratégia socialista desobrigaria os comunistas de atuarem para valer nas grandes tarefas imediatas, como a reforma agrária, a reforma urbana e a luta por educação e saúde públicas. Esse erro se consubstancia na frase: “Não nos interessa a política institucional, mas apenas a política de massas, nas ruas, empresas e locais de estudo e moradia; essa luta de massa, fora das instituições, é que realizará a revolução”. Por essa lógica, criamos um antagonismo entre luta institucional e luta de base. Assim, não nos interessaríamos pela luta parlamentar capaz de aprovar a redução da jornada de trabalho ou medidas de combate ao racismo.
Atuaríamos como se a maioria dos trabalhadores já tivesse compreendido a natureza e os limites do Parlamento e, então, não precisassem da luta dentro e fora dele para compreendê-lo e superá-lo. Ou seja, proporíamos uma noção idealista de consciência proletária, capaz de pular as experiências reais das classes oprimidas e, mesmo assim, compreender a realidade de maneira revolucionária. Como todos sabem, Lênin já criticou suficientemente esse erro no livro "Esquerdismo, doença infantil do comunismo". As lutas particulares imediatas por melhorias nas políticas, aumentos salariais e melhores condições de trabalho precisam ser feitas nas ruas, mas também necessitam adentrar as instituições, quaisquer que sejam elas. As lutas imediatas, na sua complexidade e várias derivações, são as únicas capazes de provocar mobilizações com potencial de levar a consciência dos oprimidos a se aproximar dos partidos revolucionários. O erro não está em contribuir para organizar essas lutas, mas em fazer delas o objetivo último, negador da transição socialista. As instituições formais, estatais e outras, precisam ser concretamente superadas (superação que se dá combinando luta de massa e luta institucional, sendo a luta de massa o momento predominante, o cerne do processo revolucionário) e não contornadas.
A rigidez no tratamento de vários temas concretos explica a maioria dos problemas táticos, organizacionais e os defeitos das soluções apresentadas. Por exemplo, se contornou a dificuldade de contato com os movimentos contra a opressão da mulher, de luta contra a discriminação racial e de defesa dos direitos da população LGBTQIA+ (o impasse começa na minimização das lutas das identidades por liberdades civis) por meio da criação de coletivos compostos por simpatizantes e aspirantes à militância. Isto é, ao invés de flexibilizar a tática sem negar a estratégia, reconhecendo criticamente a importância da luta por liberdades democráticas e relacionando-a com a estratégia socialista, se flexibilizou até à antinomia o conceito de membro do partido, criando uma condição militante ambígua nos coletivos, pois os/as camaradas dessas instâncias passaram a ter todos os deveres e quase nenhum direito. Perceba-se: se preferiu criar grande ambiguidade no partido no campo dos direitos e deveres dos militantes do que se agir de maneira concreta e flexível até receber a adesão dos setores da classe envolvidos nessas lutas. Ao invés de resolver o problema consultando as bases, solicitando sugestões, o CC aproveitou a ambiguidade estrutural dos coletivos para impedir os simpatizantes e amigos de se tornarem militantes do partido.
No que se refere a problemas organizacionais derivados da subestimação das aspirações democráticas das massas oprimidas e da insuficiente superação do etapismo, um dos mais evidentes é a brutal desconsideração do conceito de representatividade nas instâncias de direção. Nesse campo, o PCB-CC está no século XIX. Primeiro, a ideia de representatividade é básica na teoria e na prática política, não é invenção dos movimentos contemporâneos relativos a identidades oprimidas. Um dos principais esforços de qualquer partido revolucionário é o de representar a diversidade das classes trabalhadoras em suas instâncias e ações. O que implica em grande esforço para que a militância e a direção sejam diversamente compostas. Esta preocupação básica tem sido negada há vários anos no PCB a partir do recurso à ideologia da crítica ao assim chamado “federalismo”, a partir da estranha noção de que as direções do partido não devem ser escolhidas de maneira “federalista”, com base nos interesses “corporativistas”, “paroquiais”, mas a partir do simples desempenho individual dos militantes. Por esse raciocínio, apresentado como baseado no centralismo democrático e na noção de organização de quadros, o partido revolucionário desprezaria noções de representação e proporcionalidade, básicas no complexo da política, em benefício de uma espécie de meritocracia de esquerda, capaz de escolher os “melhores, mais capazes, altruístas e com interesses mais universais”. Na realidade, além de ser teoricamente insustentável e surpreendentemente se aproximar da ideologia Saquarema (centralismo autoritário e elitista vigente na Corte, no Segundo Reinado, durante parte do século XIX), a efetivação dessa linha cria casta burocrática cada vez mais distanciada da configuração da base do partido, pronta para se tornar oligarquia, como a que temos hoje no CC. Evidentemente, este processo leva à cisão entre base e dirigentes.
Até o último Congresso, não se contava mais do que seis mulheres em Comitê Central com 65 pessoas. Ou seja, menos de 10% quando 51% da população brasileira se declara do gênero feminino. Após o Congresso de 2021, as mulheres passaram a ser 12 entre 60 membros. Apenas 20%. Para piorar o diagnóstico de discriminação aberta ou velada, consciente ou inconsciente, basta destacar que o partido tem mais militantes em categorias de grande presença feminina, como o funcionalismo público federal (45%), a saúde, a educação básica e à docência universitária (45%). Algo similar ocorre quanto à composição racial. A situação é também de assimetria no que se refere ao nível de escolaridade e tipo de profissão. Existem raros camaradas sem formação superior, enquanto 34%, segundo nota do próprio CC, são docentes universitários. Curiosamente, contra todas as evidências, o CC considerou a apresentação desse dado como prova de que aos camaradas da base do ANDES (merecem nosso respeito e afeto, como quaisquer outros camaradas) não estariam super-representados. Ou seja, a direção nacional é majoritariamente masculina, branca e de nível universitário. Uma direção majoritariamente sem vivência pessoal com as várias exclusões vividas pela maior parte das classes trabalhadoras.
5. A rejeição da tecnologia e o amadorismo organizacional
A oligarquização do PCB-CC eleva exageradamente a idade média da direção nacional, que hoje deve estar por volta de 55 anos, denunciando as barreiras para a entrada das novas gerações. Essa gerontocracia (governo dos mais velhos) impõe, necessariamente, a reprodução de métodos ultrapassados, o desprezo às novas tecnologias e a alocação equivocada dos talentos organizativos. Devido à determinação social e histórica do pensamento, não existe nenhuma possibilidade de geração mais antiga conseguir liderar mudanças organizativas e tecnológicas, principalmente em um partido revolucionário, obrigado a ser vanguarda em todos os aspectos. Claro que o acúmulo de experiências das gerações passadas é elemento importante, mas somente quando ele é repassado para as novas gerações e não quando é usado para impedi-las de realizar suas potencialidades. Em 1879, Danton tinha 29 anos e Robespierre, 31. Em 1917, Lênin tinha 47 anos, Stálin, 38, e Trotsky, 37. No ano da Revolução Cubana, 1959, Fidel tinha 32 anos e Che Guevara, 30.
A reprodução da gerontocracia no PCB-CC passa pela forma de eleição do Comitê Central, durante os congressos. O debate e a concorrência pelos cargos são desestimulados e apresentados como desvios morais e políticos. Pior, são denunciados como indícios claros de faciosismo e desmedida ambição. Então, o próprio Comitê Central propõe lista para o plenário do Congresso e cada delegado fica com o ônus de propor verbalmente vetos e substituições. Esse método é, evidentemente, intimidatório e autoritário, tende a reproduzir as opiniões e escolhas do próprio Comitê Central que, dessa maneira, garante sempre a renovação dos mandatos dos seus membros, reproduzindo a oligarquia. A atitude conservadora é geralmente disfarçada com a incorporação de poucos nomes novos. Evidentemente, seria mais democrático permitir a apresentação de listas alternativas apresentadas por determinado número mínimo de delegados. Ou desenvolver método ainda mais democrático, que limitasse a reprodução indefinida do Comitê Central. Outra medida democratizante poderia ser colocar teto de idade para a participação nessa e outras instâncias, para evitar a gerontocracia. Além de estabelecer regras imediatas de proporcionalidade de gênero, raça (compreendida como construção social e pressuposta sua ressignificação pelos/as oprimidos/as), orientação sexual, etnia e regionalidades. Ou seja, evitar encaminhar o problema na linha: “vamos construindo no longo prazo, lutemos para isso, estaremos engajados, mas, veja bem…”. O Comitê Central deveria expressar imediata e compulsoriamente, a partir de artigo presente no estatuto partidário, o máximo possível e de maneira proporcional a diversidade de identidades das classes trabalhadoras.
Um marxismo-leninismo contrário ao desenvolvimento tecnológico é uma contradição lógica. Ser revolucionário significa, entre outras coisas, lutar pelo desenvolvimento não alienado dos seres humanos em todas as áreas. Seja na moralidade, na economia, na política, na arte ou na tecnologia, entre outras dimensões. É antimarxista interpretar os avanços produtivos e comunicacionais possibilitados pelas tecnologias digitais como expressão da crueldade manipulatória do capitalismo. Simplesmente porque a tecnologia não é o momento determinante da natureza das relações de produção. São as relações de produção (escravidão, corveia, feudo, assalariamento, renda da terra, capital, juros, etc.) que determinam a criação e o uso das tecnologias. Não foi a máquina a vapor que criou o capitalismo, ela apenas potencializou a industrialização a partir de tendências já existentes nas relações de produção, como a separação entre o produtor direto e os meios produtivos ou a lei do valor, que começaram, no caso da Inglaterra, séculos antes, a partir da mercantilização do campo e do cercamento das terras comunais.
No PCB-CC, a ausência da renovação geracional das direções tem provocado grave “neoludismo” nas instâncias dirigentes, acintosamente contrário às novas tecnologias e aos novos métodos de gestão. Então, o leninismo é apresentado como um conjunto de técnicas organizativas congeladas em 1917, as quais dispensariam a incorporação de novas mediações e desenvolvimentos. O leninismo é transformado em chave-geral que abre qualquer porta e resolve todos os problemas práticos particulares sem nenhuma adaptação ao tempo e ao lugar. Nessa lógica apegada ao passado e ao amadorismo, tudo poderia ser resolvido com mais assistência, compreensão adequada do centralismo democrático e reafirmação do organograma do partido (fortalecimento das células, maior conexão da base com o CC, etc.). Por seguir essa estranha noção de que o leninismo dispensaria novidades, o partido se nega a ter sistema digital criptografado, seguro, de registro de seus recursos (humanos, de bens e financeiros) e ações. Evidentemente, essa recusa impede qualquer planejamento nacional ou local sério, com prazos, indicadores e avaliações periódicas (necessários para a calibragem dos conceitos e ponderação das atividades). Com deliberado desconhecimento das técnicas modernas de criptografia (não convocam os camaradas que entendem do tema para explicá-las em seminários internos ou públicos), as direções apenas reafirmam, reproduzindo a velha cultura da época da clandestinidade, que um partido revolucionário precisa manter o sigilo e, por essa razão, não pode centralizar informações em sistema que poderia cair nas mãos dos órgãos repressivos. Para colocar um pouco de poesia nessa prosa, chamaremos esse argumento de “o fantasma das cadernetas de Prestes”.
O argumento baseado no ocorrido com as “cadernetas de Prestes” não se sustenta por motivos tecnológicos e políticos. Estamos em sociedade na qual todos os militantes são obrigados a participar de redes digitais (das operadoras de celular, dos bancos, da universidade, do SUS, da Netflix, do Twitter, do Instagram, do local de trabalho, etc.) e esse fato inviabiliza a ocultação do seu pertencimento ao PCB e até mesmo de sua localização geográfica. Mesmo se evitassem usar redes sociais, ainda assim os órgãos de repressão saberiam quais e quantos são os membros do PCB, devidamente etiquetados em instâncias, unidades da federação, bairros e instituições de atuação. Bem como saberiam seus movimentos diários no mapa das cidades e do país. Sem falar na sempre fácil e eficiente infiltração de agentes entre a militância. No que se refere às informações sobre os recursos financeiros e os bens imóveis, que estariam aparentemente ocultas pela inexistência de um sistema digital de administração, os órgãos repressivos necessitam apenas deduzir o montante de contribuições individuais a partir do número de militantes e consultar os cartórios. Portanto, com os avanços tecnológicos, principalmente a onipresença das redes digitais, os revolucionários terão que fazer a revolução sem os espaços de sigilo analógico existentes até a penúltima década do século XX.
A atual situação tecnológica requer estratégia de informação e contrainformação completamente diferente das utilizadas, por exemplo, pelos bolcheviques ou os grupos de esquerda durante a ditadura empresarial-militar instalada em 1964. Essa nova estratégia não passa pela tentativa romântica de fingir que estamos em mundo majoritariamente analógico. Assim, por exemplo, como é totalmente ineficaz para manter o sigilo das principais informações sobre o partido, a recusa a usar sistema digital de gestão apenas cria circunstância absurda na qual os órgãos de repressão conhecem mais a estrutura e os recursos do PCB do que o próprio Comitê Central, que não sabe sequer quantos militantes o partido tem, a não ser quando recebe as listas dos votantes nas conferências estaduais dos congressos nacionais.
6. Proposta para superar a oligarquização do PCB
Após essas longas, mas incontornáveis, considerações, colocaremos algumas propostas práticas:
1) Estabelecer Tribuna Livre digital permanente (como impressão periódica do conjunto das contribuições), independente da proximidade dos congressos nacionais partidários. O partido não deve e não precisa esconder nada do seu debate interno e com outras forças políticas. Essa iniciativa garantirá o direito de exposição para todo o partido e para as classes trabalhadoras das opiniões minoritárias, garantindo o direito à divergência, a responsabilização da maioria e a franqueza dos debates.
2) Todas as instâncias devem ser compostas, imediatamente, sem qualquer prazo de transição, de maneira a representar proporcionalmente à sua presença na população brasileira, os gêneros, raças, etnias, orientações sexuais, regiões e outras identidades. Isso garantirá uma representação mais próxima da pluralidade das classes trabalhadoras e do profundo anseio de participação política dos/as oprimidos/as.
3) Para garantir a renovação geracional, a participação nas instâncias dirigentes terá idade máxima definida, a ser estabelecida no XVII congresso do partido.
4) Garantir frequentes plebiscitos digitais sobre os temas relevantes, com amplo debate na Tribuna Livre digital permanente. Estes plebiscitos poderiam ser solicitados por dado número mínimo de militantes (por exemplo, 10%).
5) Limitar os mandatos em cada instância dirigente em quatro anos, com a possibilidade de apenas uma renovação.
6) Mudar a forma da eleição do Comitê Central nos congressos partidários, no sentido democratizá-la e evitar a reprodução quase automática dos mandatos dos seus membros.
7) Reafirmar a ampla e radical liberdade de divergência teórica no partido, para que todas as linhas revolucionárias no âmbito do marxismo-leninismo possam se expressar livremente (inclusive o debate Stálin x Trotsky, Lênin x Rosa Luxemburgo, Althusser x Lukács, marxismo ocidental x marxismo periférico, etc.). Quem deseja a tranquilidade do pensamento único e das zonas de conforto intelectuais não tem vocação para ser revolucionário.
8) Fim dos coletivos, que seriam transformados em frações partidárias para tratar de temas que o partido ainda não tem acúmulo suficiente. Esta iniciativa teria a intenção de acabar com o estatuto ambíguo dos militantes dos coletivos, que seriam todos incorporados imediatamente ao partido.