Por onde recomeçar?
Um jornal, regular, opinativo, com presença em todas as mídias, impresso e distribuído nacionalmente, em uma linguagem popular, comprometido com todas as lutas da classe trabalhadora que expressam sua autonomia de classe, e sem medo de dizer seu nome.
Editorial – A crise de nosso partido parece não deixar pedra sobre pedra. Para o bem e para o mal, antigas relações são desfeitas, organismos redefinidos, práticas políticas questionadas e novos rumos começam a ser desenhados. Em um mosaico de situações as mais distintas, podemos dizer que um dos traços de identificação entre os vários organismos que aderiram à reconstrução revolucionária é uma situação de rápidas mudanças.
É inquestionável que esse processo se inicia na questão internacional, tendo por plano de fundo o acirramento da guerra inter-imperialista na Ucrânia. A posição dos comunistas acerca da guerra pela partilha do mundo é, mais uma vez na história, um divisor de águas entre os defensores do socialismo-comunismo e diferentes matizes de nacionalismos e chauvinismos pintados de socialistas. A suposta busca por um meio do caminho entre aqueles que se opõem à guerra, e os que querem defender um lado dela, se mostrou ser, na verdade, uma tomada de posição pelos segundos. Ao participar da Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI) como “observador”, o PCB contribuiu objetivamente para articulação do campo que viria a dividir o movimento comunista internacional com base em posições ligadas aos interesses de um dos lados dessa partilha.
Mas não foi somente uma guerra do outro lado do Atlântico. Vivemos, no mesmo período, uma nova rodada de ilusões com o progressismo na América Latina. A vitória de Lula sobre Bolsonaro deu sobrevida ao projeto de conciliação dos interesses da classe trabalhadora com uma burguesia “nacional” e “democrática”, que estaria interessada em um novo desenvolvimentismo, em suposta oposição aos rentistas e especuladores. Esse fortalecimento das posições pequeno-burguesas, que até hoje se agarram ao sonho, recalcado ou não, do desenvolvimento capitalista autônomo, tomaria de assalto todas as organizações marxistas que não foram capazes de praticar a hegemonia proletária, nem nas entidades de massa nas quais atuavam, nem mesmo nas suas próprias direções.
Era o caso de nosso partido. E de tantos outros que atualmente acreditam que é possível defender a autonomia da classe trabalhadora em relação às classes dominantes enquanto assumem uma posição de independência em relação ao governo Lula. A autonomia da classe trabalhadora é, antes de tudo, a autonomia para não ter medo de falar sua opinião alto demais e machucar os sentimentos dos seus polidos "aliados"! Autonomia é se declarar, por princípio, oposição a todos os governos que defendem a política econômica da burguesia, que defendem os aparelhos de repressão do Estado e que se prestam à função de gestores da máquina estatal a serviço dos donos do capital.
Com isso em vista, nossa preocupação agora não poderia deixar de ser a questão da hegemonia proletária e seu significado para nós. De que forma um partido comunista deve organizar sua agitação e propaganda visando a hegemonia proletária, dentro do partido e na sociedade?
Cada aspecto da pergunta pode ser desdobrado em novas dúvidas. O que é um partido? Para a burguesia, dado conjunto de organizações registradas em um dado tribunal, que seguindo determinadas regras, podem disputar eleições em dadas condições. Para o marxismo, por sua vez, os partidos são condensação política de interesses de classes, momento particular do movimento da luta de classes concreta. Todo grande partido tem por trás de si interesses objetivos de frações e classes sociais, únicas forças capazes de garantir a coesão necessária para um partido político nacional.
E o que é hegemonia proletária? Esquecida no fundo de um baú de velharias onde certas facções do PCB guardaram sem muito carinho esta e outras categorias de grande valia para os comunistas, hegemonia proletária não é um conceito que fez parte da formação da maioria de nossos camaradas. Recebeu o mesmo tratamento que a categoria de imperialismo, substituída em nossa análise de conjuntura por ferramentas mais modernas, como a ideia de uma nova multipolaridade mundial, patrocinada pela intelectualidade burguesa “crítica”.
Hegemonia para nós tem o mesmo sentido daquele empregado por Lênin: é a capacidade da classe e de seus representantes de influenciar moral, política e ideologicamente outros setores da sociedade, demarcando suas posições e se diferenciando das demais classes, explicando pacientemente a diferença entre seus interesses, que apontam para libertação de toda a humanidade, e os interesses das demais classes, que desejam arrastar para trás o curso da história. É dessa forma que o partido proletário, como vanguarda, avança.
Representar interesses de classe não é uma tarefa que se cumpre por decreto. A oficialidade de um partido, fundada juridicamente, pode ser tão bem uma manifestação de sua irrelevância. Como ficou evidente nos últimos meses para aqueles que acompanharam a crise do PCB, um partido só existe, concretamente, em uma relação comunicativa com diferentes segmentos da classe que o constitui, diferenciáveis, idealmente, por sua posição em relação ao centro do partido, como apoiadores, recém-ingressos, quadros intermediários, dirigentes, entre outros. Ignorar a importância desses elos comunicativos ameaça implodir a própria organização.
A dimensão da publicidade aparece no âmago do problema. A expressão de interesses de classe exige a superação do predomínio dos interesses particulares. Exige a capacidade de mitigar as influências de outras classes sobre aquela, em direção a uma concepção coerente da sociedade. No mundo moderno, isso só é possível por meio de uma disputa no campo da publicidade, através de uma comunicação organizada e voltada para as massas. As antigas seitas, círculos e fraternidades clandestinas foram há muito tempo varridas pela força do jornal diário, da rádio, do telégrafo e da televisão. Agora mais do que nunca, pelas mídias digitais.
Representar os interesses da classe trabalhadora é, necessariamente, atuar como sujeito político publicamente, com independência de classe, em uma comunicação de massas, voltada para os trabalhadores e seus aliados na tarefa histórica de levar a cabo a revolução brasileira.
Observando nosso atual estado de coisas, vemos em retrospecto a defesa de Lênin da criação de um jornal regular com abrangência para todo o país como ponto-chave para organização de um partido operário na Rússia. Fala-se muito do aspecto logístico e sua ligação com a questão militar, mas ressaltamos o outro aspecto da questão, destacado no artigo As tarefas imediatas, de 1899, ainda na Rabochaya Gazete, anterior à criação do Iskra, com o perdão da longa citação:
“A necessidade de concentrar todas as forças em estabelecer um órgão regularmente presente e regularmente eficiente surge da peculiar situação da social-democracia russa quando comparada com a social-democracia em outros países europeus e com aquela dos velhos partidos revolucionários russos. Além de jornais, os operários da Alemanha, França etc., tem outros muitos meios de manifestar publicamente suas atividades, de organizar seu movimento – atividade parlamentar, agitação eleitoral, reuniões públicas, participação na administração pública local (rural e urbana), a condução não clandestina de sindicatos (profissionais, guildas) etc., etc. No lugar de tudo isso, sim, tudo isso, devemos nos servir – até que tenhamos conquistado a liberdade política – de um jornal revolucionário, sem o qual nenhuma ampla organização de todo o movimento operário é possível. Nós não acreditamos em conspirações, renunciamos empreitadas revolucionárias individuais para destruir o governo; as palavras de Liebknecht, veterano dos social-democratas alemães, servem como a máxima de nossas atividades: Studieren, propagandieren, organisieren – Estudar, propagandear, organizar – e o pivô dessa atividade pode e deve ser somente órgão do Partido.” (veja na íntegra)
A liberdade de associação criou na Europa ocidental, como afirma Lênin, um espaço de socialização do proletariado com independência de classe. No parlamento, nas eleições, nos sindicatos e nas municipalidades a classe trabalhadora alemã e francesa criou seu próprio partido, com seu próprio programa e seus próprios espaços de participação e deliberação. Naquela pequena fração de países, a democracia operária já havia aberto um terreno próprio, ainda que incipiente. Era nessa autonomia, organizativa, programática e comunicacional, que residia a capacidade de exercer influência, sobre si mesmo e sobre as demais classes. Na Rússia esse terreno não estava aberto. Era necessário que o jornal, “no lugar de tudo isso, sim, tudo isso”, cumprisse essa função — na ausência de liberdade política, era um jornal central que estimularia a consciência individual em direção à consciência de classe; que daria sentido totalizante às demandas particulares do proletariado; e que o educaria contra as tentativas da burguesia de convencê-lo a renunciar de seus interesses.
O raciocínio remete à clássica brochura Sobre a agitação, de Arkadi Kremer e Julius Martov (1893), onde os autores deixaram uma marca profunda no pensamento revolucionário russo e no que viria a ser o Partido Social-Democrata. Nela, está em foco a relação entre a intelectualidade revolucionária e as massas trabalhadoras. Até aquele período havia prevalecido, segundo o texto, formas equivocadas dessa relação, resultando em círculos restritos onde os operários avançados eram destacados da massa, e apartados da vida cotidiana e espaços de sociabilidade da classe trabalhadora. A prática de círculos marxistas, que se aproximam dos operários apenas para melhor elaborar suas teorias científicas do socialismo, eram insuficientes, para dizer o mínimo. “Os melhores elementos [da classe trabalhadora] foram retirados dela, e [ela] foi privada daquelas pessoas que, embora sem consciência, tinham, por sua superioridade mental e moral, servido antes e ainda poderiam ter servido como líderes e como os lutadores de primeira linha em sua luta puramente espontânea pela existência”.
A tarefa dos revolucionários é “desenvolver a autoconsciência política da massa dos operários”; para isso, não basta a propaganda em pequenos círculos. É necessária a agitação entre as massas. É necessário unir o programa político cientificamente elaborado, cujo adjetivo científico pressupõe que ele apresenta com clareza os interesses das classes em luta, com a agitação desses interesses próprios da classe trabalhadora. Unir o momento político com a luta econômica, o momento econômico com a luta política, como expressão da agitação e propaganda alicerçadas em um programa revolucionário.
É nessa trama que entendemos estar o sentido do nosso jornal. Um jornal dos trabalhadores para os trabalhadores, um instrumento de agitação revolucionária em torno dos interesses mais concretos da classe trabalhadora brasileira; um jornal que, onde quer que ele se sente, sente a insatisfação. Que no seu próprio nome, diga o quer, e que não aceitará nada menos que o necessário.
Enquanto os principais acontecimentos que marcam a vida da trabalhadora e do trabalhador forem contados a eles pelos porta-vozes remunerados da burguesia, eles estarão sujeitos a ser enganados. Autonomia é poder ter independência de imprensa, de opinião e de organização. Sem isso, seremos eternamente tutelados, tratados como personagens da família Simpsons, ridicularizados cotidianamente em cadeia nacional.
As classes dominantes têm tudo porque têm dinheiro. Nós temos nossa organização. Um jornal que vá até o trabalhador deve cativá-lo, provocá-lo à leitura. Todos os dias, as pessoas procuram ou são encontradas por uma notícia para se informar sobre algo. Devemos oferecer essa notícia; responder essa demanda por informações com o mesmo comprometimento que temos com as demandas econômicas e políticas da classe trabalhadora. Nossas informações devem ser confiáveis, nosso ponto de vista, envolvido com a realidade do povo trabalhador. Em contraposição ao jornalismo de gabinete, nosso jornalismo será obra dos inúmeros camaradas em todo o país que não só escrevem, mas vivem as lutas e sofrimentos denunciados nos seus relatos.
A verdade é revolucionária. Reivindicamos o legado revolucionário de Antonio Gramsci, cuja trajetória no movimento das fábricas de Turim nos ensina que o jornalismo operário é o futuro da imprensa. Os trabalhadores, através de suas organizações, são os únicos que podem fazer por suas próprias mãos a democratização da comunicação, no Brasil e no mundo. Ela não virá nem do Estado, nem da burguesia, que preferem o analfabetismo e o memoricídio, para que ninguém questione de onde vieram suas fabulosas propriedades.
É preciso tomar os céus de assalto, mas o páramo é longo e acidentado, e estamos apenas (re)começando. A imprensa de nosso movimento expressará limitações, de uma forma ou outra. A melhor maneira de lidar com isso, nos parece, é começar pelo fundamental. Um jornal regular, opinativo, com presença em todas as mídias, impresso e distribuído nacionalmente, em uma linguagem popular, comprometido com todas as lutas da classe trabalhadora que expressam sua autonomia de classe, e sem medo de dizer seu nome.