‘Ponderações sobre a Polícia Científica’ (Thandryus Augusto)

Mais do que o maior acesso aos dados, o trabalho de base entre forças policiais civis também serve para melhorar nosso acesso à logística das forças repressoras, o que pode ajudar na segurança de camaradas em atos, ou em períodos de maior turbilhão, até garantir a vida de pessoas do nosso lado

‘Ponderações sobre a Polícia Científica’ (Thandryus Augusto)
"Também é desnecessário dizer que camaradas policiais, embora poucas e poucos, também possuem expertise para treinamento físico e em armas de fogo necessários para o movimento comunista."

Por Thandryus Augusto para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Ainda é um tabu, no meio comunista, falar de trabalho de base e trabalho positivo entre as forças repressoras, em parte pelo foco quase exclusivo na Polícia Militar, ignorando a Polícia Civil e a Polícia Científica. Nesta presente tribuna, queremos falar especificamente desta última.

Embora ela não exista de forma independente em todos os estados, sendo muitas vezes ligada à Polícia Civil, a Polícia Científica é composta tanto por profissionais ligadas(os) à perícia criminal, tais como peritas(os), fotógrafas(os), técnicas(os) (laboratório, computadores, grafotécnica, etc.), quanto por médicas(os) e técnicas(os) ligadas(os) ao campo da medicina legal. Segundo a vigente legislação brasileira, todo crime no Brasil deve ser processado por análises forenses.

Antes de tudo, é necessário dizer que a área forense no Brasil possui um recorte de classe e raça bem delineados, uma vez que tem como requisito Ensino Superior.

Embora a análise científica de evidências, bem como a criação de procedimentos operacionais científicos de análise, sejam importantes na investigação e na solução dos crimes em territórios brasileiros, inclusive os chamados crimes de colarinho branco, nós comunistas conhecemos pouco tanto do trabalho forense quanto das reivindicações da classe profissional. Assim, em vistas de dialogar com as diversas tribunas publicadas sobre a questão de segurança no Brasil, pretendemos com mais esta trazer este elemento ao debate. Faremos isso apresentando as principais pautas e como elas dialogam com pautas que já defendemos.

  1. Independência da Polícia Científica.

Como já foi dito, nem todo estado brasileiro possui uma Polícia Científica própria, embora isso seja tema de projetos de lei como a PEC 76/2019 e o PL 2063/22, além de ter sido uma das principais demandas votadas no PPA Participativo aberto no governo Lula[1]. A importância da perícia ser independente das demais polícias é a garantia da investigação de crimes cometidos por policiais civis e, principalmente, policiais militares.

No entanto, devemos ir além de defender apenas a independência legal da Polícia Científica, e sim defender a plena independência. Por exemplo, os servidores onde se arquivam os dados da Superintendência da Polícia Técnico-Científica (SPTC) de São Paulo ainda pertencem à Polícia Militar (ou ao menos pertenciam enquanto eu ainda trabalhava ali).

Independência também se traduz em investimentos para análises forenses que sejam garantidos em qualquer governo. Vamos citar outro exemplo de São Paulo. Em casos de disparo de armas de fogo, até hoje é utilizada a análise química de vestígios residuais do disparo, análise esta que não possui um alto grau de confiança pelo alto índice de falsos positivos. Esta é uma análise especialmente importante para a produção de provas em casos de execução por parte da PM, de forma a confrontar a versão “oficial”. Através de profunda discussão e pesquisas  na literatura científica, foi sugerido um novo procedimento laboratorial através da análise por Microscopia Eletrônica de Varredura (equipamento que a SPTC já possui), mas tal procedimento foi vetado pelo então governo Alckmin por conta dos alegados “alto custos”.

2. Melhoria das condições de trabalho.

Existem pouquíssimas(os) profissionais da área forense no Brasil. Em todo o estado de São Paulo, por exemplo, o número oscila em torno de 1000 (geralmente para baixo), com um intervalo de vários anos entre um concurso e outro; para se ter uma ideia, em pesquisa encomendada na década de 90 foi averiguado naquela época a necessidade de ao menos 5000 peritos para atender a demanda do estado…

Acoplado à falta de profissionais existem outras questões, como os salários defasados especialmente para técnicos e técnicas, falta de segurança profissional (existem diversos casos de perseguição profissional dentro das instituições, por exemplo), falta de transparência nos concursos, falta de infraestrutura nas sedes (e até mesmo a pouca interiorização de sedes de análises, o que gera toda uma estrutura logística de transporte de evidências)...

3. Criação de um banco de dados de crimes no Brasil.

O Brasil não possui um banco de dados suficientemente integrado em todo território nacional acerca dos crimes cometidos. Muitas vezes, isto acarreta em uma falta de inteligência não só no combate a certos crimes (como tráfico de drogas, armas, pessoas), mas também para compreender de fato a questão da segurança pública em solo nacional e traçar planos de ação e políticas públicas melhor fundamentados.

4. Investimento em desenvolvimento tecnológico.

É necessário que tenhamos um polo de desenvolvimento tecnológico de ponta no Brasil, tanto de equipamentos científicos como microscópios eletrônicos, espectrômetros, etc, como de softwares. Por exemplo, o software utilizado para reconhecimento facial é importado dos Estados Unidos, sendo necessário pagar uma custosa licença que não permite o acesso ao código para adaptá-lo às nossas necessidades.

Esta demanda conversa diretamente sobre qual tipo de desenvolvimento queremos no Brasil. Dentro de um cenário de catástrofe ambiental, a discussão de qual indústria queremos de fato desenvolver é fundamental para o movimento comunista, e dentro desta discussão a indústria de tecnologia científica parece ser uma escolha acertada.

5. Parcerias com universidades.

Esta demanda dialoga muito com a última. Uma vez que a perícia criminal parte da análise científica das evidências relacionadas a crimes, é necessário que as parcerias com as universidades públicas sejam criadas e fortalecidas para o desenvolvimento de novas análises (através do uso de novos resultados de pesquisas), para o uso de equipamentos, como para que peritas(os) também possam desenvolver pesquisas científicas em sua área de origem se assim desejarem.

No entanto, para que tais parcerias gerem os frutos necessários é fundamental que também seja feita a defesa firme das universidades públicas (especialmente contra o lobby dos chamados tubarões da Educação surgidos na década de 2000), com maior investimento para a compra de novos equipamentos e pagamento de pesquisadoras e pesquisadores e aumento de seu contingente, e maior democratização do ensino superior no Brasil (em última instância, com o fim do vestibular).

6. Maior controle da indústria de armas no Brasil.

A Taurus é uma das maiores indústrias de armas do mundo, sendo a principal exportadora para o mercado estadunidense. É urgente que ela tenha maior controle governamental e que esta indústria seja altamente regulamentada. Além disso, existe a demanda de que suas munições contenham diferentes terras raras para diferentes calibres a fim de facilitar a identificação em projéteis relacionados a crimes, algo que poderia muito bem ser alvo de uma política regulatória.

7. Maior investimento na investigação e não na repressão.

É fácil de constatar que existe um maior investimento na Polícia Militar, especialmente em períodos eleitorais, como medida eleitoreira. A Polícia Militar, no entanto, não investiga, e nem mesmo auxilia na resolução de crimes no Brasil, uma vez que suas funções são principalmente a proteção do patrimônio e a repressão. Cabe à Polícia Civil a investigação, e à Polícia Científica a análise forense fundamental para a solução de crimes, cujo índice permanece baixíssimo no Brasil (a média nacional de solução de homicídios é de 37%, com a taxa mais baixa, do Rio de Janeiro, sendo de 16%)[2].

A taxa de crimes contra a pessoa será reduzida na medida em que os casos sejam, de fato, investigados; nos casos em que policiais (militares) estão envolvidos, é necessário que a investigação seja conduzida de maneira independente, como já foi apontado anteriormente. Para isso, é necessário que se inverta a lógica de investimento na polícia, reduzindo e muito os investimentos na Polícia Militar e aumentando os investimentos na Polícia Científica, se possível aliando isso a um forte processo de desmilitarização das forças policiais.

Além destas pautas, existem outras que seriam vistas com muita simpatia pelas pessoas já mais progressistas dentro do campo profissional, pautas que poderiam servir inclusive para o devido trabalho de base dentro da área forense. Discutiremos duas delas:

  1. Tribunais civis e de júri para julgamentos de crimes cometidos por policiais.

Atualmente, crimes cometidos por policiais não são julgados por tribunais civis na grande maioria dos casos, o que acaba gerando uma tendência de inocentar PMs associados a execuções (especialmente em favelas) e uma falta de confiança generalizada que esses crimes sejam de fato solucionados.

É vital que policiais sejam julgados como qualquer outra pessoa no Brasil a fim de garantir a isonomia do julgamento. Isto também garantiria maior segurança jurídica para peritos e peritas conduzirem investigações nestes casos, sem medo de represálias por terem assinado um laudo que produziu provas que incriminavam o policial indevidamente inocentado.

2. Comissão da Verdade para a Polícia Militar.

Hoje, a Polícia Militar mata mais que na época da ditadura. A ditadura nunca saiu das favelas e das áreas mais pobres do Brasil na nossa atual “democracia de condomínios”, e todos os dias a população periférica sofre na pele com uma política de segurança pública racista e classista.

Assim como reivindicamos uma Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos na ditadura, não podemos apenas querer a desmilitarização da Polícia sem fazer uma profunda análise das violações cometidas e sem anistia para os envolvidos, análise esta que deve servir para fechar a ferida que a PM representa. Uma Comissão da Verdade da PM deve ser vista como uma pauta mínima dentro de qualquer discussão acerca da segurança pública no Brasil.

O conhecimento sobre os problemas da Polícia Científica, como a defesa do trabalho de base neste campo profissional, deve servir também para nós termos mais dados para pensar na questão de segurança do Brasil, uma vez que vamos ter acesso também aos dados, às discussões e aos debates produzidos na área da perícia. É fundamental que estejamos a par destas questões.

Como já foi mencionado anteriormente, todas as evidências devem passar por análises forenses, desde relógios de água adulterados como armas de fogo. Inclusive, a falta de investimentos e uma logística muitas vezes falha acaba acarretando no extravio destas últimas…

Mais do que o maior acesso aos dados, o trabalho de base entre forças policiais civis também serve para melhorar nosso acesso à logística das forças repressoras, o que pode ajudar na segurança de camaradas em atos, por exemplo, ou, em períodos de maior turbilhão, até garantir a vida de pessoas do nosso lado. Também é desnecessário dizer que camaradas policiais, embora poucas e poucos, também possuem expertise para treinamento físico e em armas de fogo necessários para o movimento comunista.


[1] As diversas críticas ao PPA cabem a outro texto.

[2] https://soudapaz.org/noticias/estados-brasileiros-perdem-capacidade-de-esclarecer-homicidios-revela-estudo-do-instituto-sou-da-paz/