'Poder Popular: como é? Onde vive? O que come?' (Silco)
Como podemos usar esse termo como nome do jornal do partido, como grito de guerra em manifestações, chamar a classe trabalhadora para lutar por ele e construí-lo... se nossos próprios militantes não sabem defini-lo?
Por Camarada Silco para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Lutar! Criar! Poder Popular!
Certamente todos os camaradas já ouviram esse grito em manifestações promovidas pelo PCB. Muitos artigos e notas no site oficial do partido, inclusive, são terminados com menção ao Poder Popular.
Mas o que é o tal Poder Popular? Como é definido pela militância, pelo partido? Como ele é? Onde vive? O que come?
Fui incapaz de encontrar qualquer documento do partido que desse uma definição clara, direta, objetiva. Isso é um problema muito grave. Poder Popular é um ente metafísico? Uma vibe? Como é constituído? Só existe após a revolução? É o mesmo que o poder dual?
Vejamos os documentos dos XV e XVI Congressos. Segundo a Declaração Política do XV Congresso do PCB:
A construção do poder proletário/popular parte da afirmação revolucionária segundo a qual os meios necessários à vida não podem ser apropriados privadamente, que nenhum ser humano pode se apropriar de outro para transformá-lo em mercadoria, que os bens de primeira necessidade e os serviços necessários à produção e reprodução social da vida são patrimônio de toda a humanidade. É necessário construir, desde já, a partir da velha ordem, um duplo poder, uma ordem institucional e política própria dos trabalhadores, fundada e fundante de uma nova cultura proletária e popular, capaz de dar unidade ao bloco proletário e colocá-lo em movimento na luta contra a ordem burguesa.
A luta pelo Poder Popular se expressa nas ações independentes da classe trabalhadora em seus embates contra a ordem do capital, tais como mobilizações, greves e movimentos que colocam em marcha os diferentes segmentos do proletariado e da classe trabalhadora em geral. Ao se chocarem com o bloco conservador e sua política em defesa da ordem burguesa, tais lutas tendem a se transformar em enfrentamentos mais intensos contra o sistema capitalista. Mas somente a unidade programática em torno de eixos comuns capazes de unificar as demandas setoriais fragmentadas em uma pauta cada vez mais precisa de bandeiras e reivindicações, garantida a independência em relação aos governos da ordem e ao bloco dominante, dará forma efetiva ao campo popular e de esquerda, no rumo de um programa político de transformações de caráter anticapitalista.
Quando se caracterizar um quadro de desagregação da ordem do capital, esta construção política deverá assumir a forma de uma dualidade de poderes que prepare as condições para os enfrentamentos decisivos contra a burguesia e seu Estado, combinando formas de ação direta com lutas tradicionais, de modo a possibilitar a constituição de uma alternativa real de poder dos trabalhadores. Deste modo, o Poder Popular assumirá sua potencialidade como germe de um novo Estado sustentado pelas massas populares e pela classe trabalhadora, como germe de um Estado Proletário – a Ditadura do Proletariado – que conduzirá a transição socialista visando erradicar a propriedade privada, as classes e, portanto, o próprio Estado através da livre associação dos produtores.
Na Estratégia e Tática do mesmo Congresso, afirma:
60) Distanciamo-nos de algumas concepções de poder popular: 1) da micropolítica ou da pequena política dos conselhos, dos fóruns e de todos aqueles espaços onde se procura envolver a população com a política ilusória da “cidadania participativa”, não permitindo a tomada de decisões relevantes, nem incidindo na correlação de forças entre as classes, ao ocultar as contradições fundamentais; 2) as institucionalizantes e eleitoreiras, que organizam grupos e coletivos apenas na época das campanhas ou pretendem canalizar as lutas e a revolta da classe trabalhadora meramente no campo institucional, formulando projetos de lei, planos diretores, etc.; 3) a dos “novos socialistas utópicos”, que apostam todas suas fichas no poder local, nas pequenas experiências cooperativas, nos projetos de economia solidária ou de autogestão, pois acham que a proliferação dessas experiências e de novos espaços de sociabilidade porá em xeque o sistema capitalista e o Estado burguês. No campo contrário a essas formulações, entendemos Poder Popular como a superação da fragmentação das lutas, imprimindo a elas um projeto de classe em torno do qual elas se articulam, cuidando sempre de fortalecer a autonomia e independência de classe dessas lutas frente ao Estado e ao capital, na experiência concreta do enfrentamento permanente ao inimigo de classe, buscando sempre impulsionar as contradições e contribuindo, desta forma, para o amadurecimento da ruptura socialista.
Apesar de afirmar o partido dizer que não vê conselhos, fóruns e demais espaços da cidadania participativa como formas de Poder Popular, no documento PCB e o Movimento de Massas também do XV Congresso diz que:
58. Os militantes do PCB vêm participando de diversos fóruns de organização e de luta, voltados para causas gerais, no âmbito das lutas por direitos à moradia, transportes, educação, saúde e outros. (...) Também devemos apontar sempre para a construção do Poder Popular, propondo a formação de conselhos populares como forma de ramificar a atuação nos bairros e espaços onde for possível organizar a luta da população.
Ora, isso não é uma contradição? Em um documento, afirma que conselhos e demais espaços de cidadania participativa não são considerados Poder Popular. Em outro, afirma que se deve propor a criação de... conselhos populares para tratar de questões de bairros. O próprio XV Congresso se contradiz em sua concepção de Poder Popular.
Agora vejamos os documentos do XVI Congresso. No Estratégia e Tática desse Congresso, diz-se:
86) Propomos centralizar todas as iniciativas em órgãos mais abrangentes de poder proletário e popular, abarcando realidades regionais, conglomerados metropolitanos até a dimensão estadual, para finalmente propor a criação de um Poder Popular como duplo poder de resistência e confronto ativo com o bloco liberal burguês, de forma a contrapor duas alternativas distintas de organização societária: a manutenção da ordem capitalista ou a necessidade de uma nova ordem socialista. Nossa principal meta estratégica é ir demonstrando a superioridade das formas de organização popular e criar as condições para que o debate político se dê em torno desta questão programática e histórica sobre a forma de sociedade que queremos, distanciando-se do mero confronto de siglas vazias de conteúdo, de programas de marketing político que reproduzem uma lista de necessidades e apresentam soluções milagrosas que logo em seguida serão abandonadas pelo pragmatismo oportunista.
Vale notar que aqui, diferentemente da Declaração Política do XV, fala-se em poder proletário e popular, e não em proletário/popular. Ou seja, na visão do XVI, poder popular é uma coisa e poder proletário é outra.
Já em Socialismo: Balanço e Perspectivas:
98 No período de transição para o Socialismo, após a conquista do poder, a luta política e ideológica a ser travada compreenderá os seguintes eixos:
1) A construção da democracia direta, em que o poder popular se expandirá e se fortalecerá, substituindo o sistema partidário-eleitoral burguês e instituindo novas formas de representação direta dos trabalhadores. (...)
Daqui deprende-se que o Poder Popular é prévio à revolução e continua a existir após ela.
Ao colocar todos esses trechos em conjunto, nota-se que a definição dada na Declaração do XV é a mais clara, mas ainda assim é, na minha opinião, excessivamente vaga. Fala que o Poder Popular é um duplo poder, mas não define de forma suficientemente precisa como é esse duplo poder, limitando-se a dizer que é “uma ordem institucional e política própria dos trabalhadores, fundada e fundante de uma nova cultura proletária e popular, capaz de dar unidade ao bloco proletário e colocá-lo em movimento na luta contra a ordem burguesa” e “esta construção política deverá assumir a forma de uma dualidade de poderes que prepare as condições para os enfrentamentos decisivos contra a burguesia e seu Estado, combinando formas de ação direta com lutas tradicionais, de modo a possibilitar a constituição de uma alternativa real de poder dos trabalhadores”.
Toda vez que pergunto para camaradas, inclusive camaradas organizados, nenhum sabe dar uma definição clara, objetiva. Todas as respostas vão no sentido de “quando você vir, sai saber que é o Poder Popular”. Nem sabem exatamente como está nos documentos do Congresso. Podem até saber que há uma definição nesses documentos, mas não sabe qual é essa definição.
Como podemos usar esse termo como nome do jornal do partido, como grito de guerra em manifestações, chamar a classe trabalhadora para lutar por ele e construí-lo... se nossos próprios militantes não sabem defini-lo? É, na prática, um termo vazio, sem sentido.
Isso também vale para o termo “orgânico”: também nunca vi uma definição clara do que isso significa, seja por conversas com camaradas, seja por divulgações do partido. O que é, por exemplo, um intelectual orgânico? “Orgânico” vem de “organização”, sendo assim, bastaria o tal intelectual estar em um partido, ou há outras características necessárias? É até possível que intuitivamente camaradas militantes saibam o que significa, mas quem está olhando de fora não sabe. Isso inclusive aparece na propaganda feita por meio de vídeos de comunicadores marxistas: muitos mencionam tais termos em suas falas, sem explicar, como se sua audiência já soubesse de antemão o que significa. Considero isso uma falha grave, já que a propaganda e a agitação não devem ser usadas para “pregar para convertidos”: elas devem ser usadas para atingir justamente quem ainda não tem conhecimento da teoria, não conhece os autores, não tem consciência de classe etc. essas pessoas farão cara de paisagem ou rirão da nossa cara se não soubermos definir, clara e concretamente, o que esses termos significam.
Para fazer uma analogia, agimos como aquele professor universitário que usa um termo técnico com uma turma de primeiro semestre e não explica. Ninguém da turma questiona, ou não tendo coragem, ou receoso de que, ao perguntar, receba uma resposta com ainda mais termos técnicos, ficando ainda mais confuso.
Acima de tudo, temos que ser claros. E para ser claros, devemos ter os termos bem definidos.
Assim, camaradas, relembro o que o Camarada Landi disse em seu texto “Não sou obrigado”: impaciência e arrogância na esquerda:
“Evitemos as frases feitas, estereotipadas. Algumas vezes, temos grande apreço por uma ou outra ideia ou citação; conhecemos de cor uma ou outra frase que acreditamos ser perfeita para lidar com tal ou qual problema. Mas então, quando a frase não obtém o efeito esperado, não convence, nos colocamos na defensiva. Percebemos que não sabemos explicar a questão com nossas próprias palavras. Com isso, perdemos credibilidade — quando não, pior, nos afobamos e tratamos de simplesmente ridicularizar a pessoa que não compreendeu de primeira nossa afirmação brilhante…”
Assim, camaradas, escrevo essa tribuna com o objetivo único de fazer um pedido: reúnam-se, debatam, definam os termos de forma clara e acessível e, finalmente, publicizem para toda a militância essas definições e as utilizem quando necessário para explicar o que tal coisa significa.
Do contrário, simplesmente diremos palavras vazias, sem peso algum para a classe trabalhadora.