'Pelos núcleos de autodefesa' (Gabriela Fero)
Que a revolução socialista não está na esquina, nós sabemos. Mas a revolução não nos oferecerá uma antessala temporal para que possamos, com toda demora e conforto, nos debruçarmos nas questões mais sensíveis por ela impostas
Por Gabriela Fero para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, esta pretende ser uma tribuna propositiva. Partiremos, sobretudo, das contribuições oferecidas por nossa militância ligadas à questão militar, à violência revolucionária, e à reflexão sobre a necessidade de desobstruirmos os caminhos morais e ideológicos para o acolhimento destes desafios que – a despeito de nossas vontades – são profundamente imanentes à construção da Revolução Brasileira.
Antes de tudo, há de se registrar que articulamos esta proposta ainda em 2023, antes de nossas expulsões arbitrárias do Partido Comunista Brasileiro. Este era precisamente um dos temas que, ainda na militância da célula de Comunicação do Rio de Janeiro, tentávamos introduzir no interior de nosso núcleo, com suas notáveis dificuldades, mas, vale dizer, até relativo acolhimento de instâncias superiores, não fosse, contudo, a interrupção forçada da proposta por parte destas mesmas instâncias. Vieram os expurgos.
O que nos interessa aqui é a retomada desta pauta que, acreditamos (visto, inclusive, as ótimas tribunas debatendo os assuntos), se encontrará menos sufocada à ampla discussão – e à ampla adesão – através da Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista. Com isto, nos ocuparemos aqui de oferecer um pontapé inicial para o direcionamento propositivo do acúmulo sobre os temas oferecido até o momento. Para isto, trataremos a questão “das armas” a partir de três perspectivas que confluirão à proposta da tribuna: a criação dos núcleos de autodefesa.
I – Desejo de sedição: a questão ideológica
De pronto, queremos nos ater ao texto do camarada Otávio Ilibio, "A Dialética da Repressão: o caráter da repressão política em seus aspectos ideológicos e as condições para a construção de um exército popular”, que reforçará um de nossos argumentos elementares para a defesa de uma inserção, teórica e prática, mais categórica da questão da violência revolucionária em nosso partido:
[...] O fortalecimento e o apoio à violência revolucionária e, por consequência, o apoio ao armamento de milícias centralizadas pelo partido será proporcional ao acirramento e escancaramento da luta de classes no país. E isso não é fruto de um tempo distante em que há de haver uma revolução, e sim das mediações do partido na construção de uma contra-ofensiva ao capital, na construção e aperfeiçoamento dos seus aparatos de hegemonia [...]
Tal qual o camarada aponta, defenderemos que o debate sobre o uso da violência revolucionária pelos movimentos comunistas no pós-fordismo é, em geral, afogado sob os pretextos contrarrevolucionários das condições objetivas e subjetivas sempre ausentes, como se a reivindicação por tal debate fosse, no limite, a representação de militantes-marinheiros aos gritos de “Revolução à vista!”. Há de ser trazido à tona o caráter enganoso destas leituras, uma vez que o trato do tema, encaremos, não demanda uma submissão única e direta ao momento revolucionário, mas às demandas reais do momento presente vivido que, aos comunistas, será necessariamente um momento pregresso ao porvir revolucionário. Isto revela uma ideologia revolucionária.
Que a revolução socialista não está na esquina, nós sabemos. E nem por isto ocorre uma deposição generalizada no empenho e comprometimento de nossa militância em prol da construção do partido e da disciplina revolucionária, dos estudos e assimilação da ciência marxista e do enfrentamento à toda violência desde sempre imposta aos comunistas. Porque somos comunistas. Haveria mesmo de existir alguma dimensão constitutiva da revolução socialista, precisamente aquela que já constitui a vida capitalista, a ser asfixiada por nós? A revolução não nos oferecerá uma antessala temporal para que possamos, com toda demora e conforto, vislumbrá-la a caminho nesta espécie de antecedência bem calculada, para, finalmente, nos debruçarmos nas questões mais sensíveis por ela impostas. Isto revela uma ideologia cínica.
Há de defendermos o fato de que o momento presente já implica necessidades imediatas à nossa militância no que envolve o seu fortalecimento, físico e psíquico, frente ao recrudescimento da extrema-direita nacional e seus impactos na vida mesma da classe trabalhadora. Cabe aqui ressaltar que não precisamos de uma Longa Marcha para observarmos ou sentirmos de perto as novas formas de vulnerabilidade da existência que atravessam a vida comunista neste século. Tais vulnerabilidades, frisemos aqui, não decorrem do tamanho de nossas fileiras, como se fosse correto dizer que, inscritos num partido com menor adesão das massas e expressividade na disputa eleitoral burguesa, estaríamos, então, menos visados por nossos algozes.
Se somos marxistas e compreendemos o fascismo como um fenômeno do capitalismo, compreendemos que estamos vulneráveis por este fenômeno próprio da valorização do valor em sua crise cíclica e agudizada; crise esta que majora o crescimento da extrema-direita mundo afora e potencializa, através da aparelhagem ideológica, o ódio às esquerdas. Ora, os comunistas nunca foram maioria nacional e nem por isso tiveram suas vidas poupadas. Se dissermos que um terço do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro foi assassinado na Operação Radar dos anos 1970, aquela que também prendeu e torturou milhares de militantes comunistas nestes mesmos anos, nos dirão que este foi um momento atípico, que foram coisas da ditadura. Mas nossas linhas programáticas, análises de conjuntura, nossa crítica correta, identifica a iminência do fascismo e identifica quão inscritos estamos na atmosfera fardada. Esta espécie de peneira das conclusões à medida, sacudida tanto quanto convém dirigentes da ala “soft”, é uma peneira a ser deixada no partido do qual fomos perseguidos e/ou expulsos.
Mas há de saltarmos da ditadura empresarial-militar brasileira para o presente. O encaminhamento de nossa proposta ao Partido Comunista Brasileiro ocorreu na esteira de ameaças sofridas por camaradas, à época, militantes de outros estados, que deixaram a organização por não terem sido ouvidos em seus apelos sobre uma política de segurança efetiva. Exemplo mais notável deste tipo de ocorrência no interior do partido (que ainda não tínhamos conhecimento àquela altura) envolveu o camarada Jones Manoel, que esteve sob ameaças de morte junto de sua família e acabou por ser expulso da organização. Percebam que o devaneio da extrema-direita em “aniquilar petralhas comunistas” não nos atinge menos por sermos, de fato, comunistas. Trata-se, na verdade, da guerra ideológica que encontra no simbolismo do Partido dos Trabalhadores um motivo maior para forjar este inimigo interno, tal qual Pedro Marin sinaliza sobre o Partido Fardado em seu ensaio “Anticomunismo sem comunismo” [1], trata-se de uma espécie de “ethos mobilizador” somado a um certo zeitgest (espírito da época), aquilo que oferecerá uma roupagem devida à ação dos militares. Ação esta, digamos, literalmente camuflada.
Assumamos que nossa defesa é um tanto óbvia: não estamos mais protegidos por sermos comunistas num partido menos inserido nos aparelhos burgueses. Quando as escavadeiras neofascistas (sionistas, nazistas, bolsonaristas) se propõem a avançar sobre o suposto inimigo anunciado, não importa quantos corpos estes encontrem pela frente se seus verdadeiros inimigos extrapolam aqueles que lhes servem à farsa. Devemos nos perguntar, em vista disso, se permaneceremos aguardando a antessala temporal que nunca virá, ou se olharemos para a classe trabalhadora tombada pelo recrudescimento do fascismo nacional nos últimos dez anos – ou pelos chicotes e balas que não cessam há mais de quinhentos – em prol de uma deliberação consequente sobre o tema no seio de nosso partido.
Ainda sobre as implicações ideológicas do problema, há de ser refutado também os argumentos sobre uma suposta incapacidade da classe trabalhadora em compreender a importância do assunto e de seu acesso organizado às armas ou à sua instrução em autodefesa desarmada, como se culpar o povo fosse o caminho mais alto da crítica aos impasses que se inscrevem no interior da militância comunista. Será sempre mais fácil bravejar sobre as limitações ideológicas da classe trabalhadora quando estas limitações são sempre as nossas limitações. E verdadeiramente o são: somos sujeitos subsumidos à ideologias conservadoras que nos interpelam desde nossa existência primeira. Mas enquanto marxista-leninistas, orientados pela ciência da história, não há escapismo possível para o reconhecimento de que cabe tão somente a um partido de vanguarda o trabalho de reorientação ideológica das massas. Assumamos a responsabilidade.
Vamos agora à contribuição do camarada Gabriel Landi, em sua tribuna “Bolsonaro, o armamento geral do povo e os comunistas”, da qual destacamos o seguinte trecho:
[...] É verdade que a luta armada revolucionária não está na ordem do dia e, portanto, não devemos incitar as massas buscar esta forma de luta. Mas também é verdade que não devemos buscar pacificar os elementos mais radicalizados, exigindo que se desarmem ou deixem de aspirar o armamento. É preciso, a todo tempo, armar o povo ao menos da vontade de se armar organizadamente [...] por isso devemos, no atual estágio da luta de classes, sem renunciar ao nosso programa máximo nessa questão (o armamento geral do povo), estabelecer as mediações mínimas que permitam agitar, perante as grandes massas, a necessidade de um maior controle social do aparato policial, e de uma maior participação direta do povo na segurança pública [...]
Percebamos que é justamente sobre um comprometimento revolucionário-ideológico com as massas a que se refere o camarada e ao qual se liga a nossa defesa. O aporte marxista à problemática da constituição subjetiva do sujeito no capitalismo nos entrega, pelas águas da psicanálise, a compreensão sobre o desejo [2]. Os Aparelhos Ideológicos de Estado adequam as massas ao capital através de subjetividades desejantes de sua manutenção, razão pela qual não haverá uma manhã resplandecente em que se dissipam as contradições morais ideológicas de uma sociabilidade para que, então, as massas acordem desejantes de seu armamento total e organizado.
Mas para prosseguir neste ponto, aproveitemos o objeto de crítica levantado pela tribuna supracitada, a saber, o armamento da população sob o bolsonarismo e a tarefa dos comunistas inscritos na conjuntura. Pois é precisamente diante do recrudescimento da extrema-direita aglutinada em torno de Jair Bolsonaro (mas não somente) e, de sua capacidade importante em convocar as massas, é que encontramos o exemplo mais imediato sobre a existência de uma plasticidade do desejo. Não que haja ali alguma tração libidinal à novas relações de produção – o fascismo, no limite, aprofunda o capitalismo – mas, notoriamente, há o oferecimento exitoso de algum objeto positivo com apelo libidinal suficiente para o fascínio das massas. Sobre isto, citamos Mark Fisher [3]:
[...] Ao mesmo tempo, as atrações libidinais do capitalismo de consumo precisavam ser enfrentadas com uma contra-libido, e não simplesmente com um amortecimento antilibidinal [...]
Vejamos que Fisher aponta à necessidade de uma contra-libido, que preferimos aqui pensar nos termos de uma mais-libido. Pois igualmente suscitado pelo autor em seguida, não é suficiente uma espécie de amortecimento do desejo capitalista para o despertar daquilo que ainda não se vislumbra. Não se trata, portanto, de uma luta contra-hegemônica empenhada na mera negação do conhecido existente, mas de uma pergunta sobre o que nos desperta em termos positivos. Para além de Fisher, é precisamente no pensamento de Lênin que podemos encontrar um apelo à necessidade destes motores libidinais que extrapolam a pura compreensão sobre a coisa, como na nota destacada na mesma tribuna:
Armar o povo com um sentimento da necessidade ardente de se armar é o dever constante e comum dos social-democratas sempre e em todo lugar, e pode ser aplicado igualmente ao Japão como pode à Inglaterra, à Alemanha como pode à Itália. Onde quer que existam classes oprimidas lutando contra a exploração, a doutrina dos socialistas, desde o início, e em primeiro lugar, arma essas classes com uma noção da necessidade ardente de se armar, e essa ‘necessidade’ está presente logo quando o movimento trabalhista nasce [...]
Para armar o povo com o sentimento ardente de se armar, não poderemos nos limitar, como defendemos em tribuna já citada sobre estética e ideologia, tão somente ao trabalho morno de conscientização das massas. E é precisamente neste sentido que nos cabe o reconhecimento de uma mais-libido oferecida e mobilizada pela extrema-direita organizada mundo afora, pautada no desejo imanente por processos de interrupção da ordem constitucional às avessas de nossos objetivos finais inscritos na estratégia socialista. O trabalho ideológico de apelo ao armamento individual, ao patriotismo verde-amarelo, ao reforço do patriarcalismo, à figura do grande messias e seus feitos, são algumas dimensões a serem estudadas por nós em prol de uma reorientação ideológica que, defenderemos novamente, encontra na violência revolucionária um de seus maiores recursos.
II – Carta no coturno: a questão militar
Se na primeira parte da tribuna reforçamos a necessidade ideológica de destravarmos o debate geral sobre “as armas”, tal qual o papel fundamental dos comunistas no trabalho de reconfiguração das subjetividades em prol do desejo de sedição e do armamento geral do povo, nesta parte da tribuna levantaremos as necessidades práticas de inserção dos comunistas nas forças armadas brasileiras, a começar pela contribuição do camarada Leandro Magacho, “A questão militar: o Partido Comunista e o exército”, a qual citamos:
[...] Quando o aparelho repressivo do estado perde sua coesão e tem elementos de suas fileiras cooptados pela insurreição, as forças contrarrevolucionárias são enfraquecidas, o que facilita a sua derrota e aniquilamento. Na comuna de Paris, a fragmentação dos aparelhos repressivos do estado foram fundamentais à consolidação do poder operário na França. Temos diversos exemplos desse mesmo fenômeno em outros processos revolucionários, como: na China e na Rússia pré-revolucionária; parte das tropas contrarrevolucionárias desobedecem a ordens, desertando e migrando ao campo revolucionário. Os sovietes eram de camponeses, operários e soldados, portanto, ter o apoio do baixo estamento do oficialato militar, sempre foi fulcral aos processos revolucionários que ocorreram ao redor do mundo.
Na terra de Prestes e Lamarca não será diferente. A respeito dos comunistas brasileiros inseridos no exército, para além de Luís Carlos Prestes e o tenentismo da primeira metade do século XX, teremos, sob as particularidades da ditadura brasileira instalada em 1964, nossos militares legalistas que se somam à resistência e a entrega revolucionária de Carlos Lamarca, o homem que, em 1969, capitão das Forças Armadas, liderou militares do 4º Regimento de Infantaria à deserção da unidade, tomando fuzis, metralhadoras e munições para a luta armada contra a ditadura empresarial-militar.
Lamarca é quem tomaremos como exemplo para a compreensão do duplo caráter revolucionário inscrito na inserção de militantes às forças armadas, a saber, o instrutivo-prático e o ideológico. No primeiro caso, trata-se, em resumo, de habilitar nossa militância à competência técnica, tática e operacional dos diversos tipos de armamentos e equipamentos, bem como seu conhecimento sobre as diversas técnicas de combate, operações militares e conflitos. No segundo caso, trata-se da incisão ideológica revolucionária no meio militar e a compreensão da própria ideologia militar reacionária que possa orientar a ação política consequente dos comunistas, assim como a incisão ideológica revolucionária das armas no interior da própria militância.
O conhecimento de “João”, nome de guerra de Carlos Lamarca, sobre as armas e toda a dinâmica inscrita na vida militar – da rotina dos sentinelas aos generais; da geografia das bases e suas instalações – foi fundamental para sua operação bem-sucedida no Quartel de Quitaúna, em janeiro de 1969 [5]. Para além disso, Lamarca era um exímio da pontaria, destacado como instrutor em treinamentos de tiro ao alvo e, até mesmo, vencedor de um exercício militar de contraguerrilha em 1968, no qual 5 mil soldados enfrentariam apenas 9 “guerrilheiros” liderados por Lamarca, que venceu o exercício.
Percebamos que estes episódios e trunfos de sua vida, são também episódios e trunfos decorrentes de uma vida militar. Isto não habilitou Lamarca tão somente às dimensões práticas das armas ou à coadunação do conhecimento militar às práticas revolucionárias, mas também o habilitou à figura dissidente dentro de um aparelho repressivo cuja ideologia militar é própria e referente, como bem sabemos, à ideologia do capital. Suas ideias e feitos não apenas impactaram subjetividades dentro e fora dos quartéis, mas são parte de um arsenal ideológico revolucionário, a despeito dos violentos aparelhos burgueses aos quais estão submetidos. Cabe a nós, e somente a nós, reavivá-los ideologicamente e praticamente.
E, para isto, finquemos os pés no presente. Há de ser frisado que, se somos capazes de enxergar, o vulto dantesco que vem tomando a extrema-direita organizada em tempos de Gaza, o recrudescimento do fascismo desvelado às crises e cruzes em nossa própria casa e, finalmente, o Partido Fardado brasileiro enquanto projeto político real, não há razões para escantearmos o espaço das forças armadas como espaço tático de atuação dos comunistas e necessário ao trabalho ideológico parcial. Diremos “parcial” do ponto de vista ideológico devido à sua identificação como Aparelho Repressivo de Estado onde se inscrevem as Forças Armadas, portanto, um aparelho predominantemente violento e ideologicamente constituído pela ordem do capital. Com isto, não há mistério em dizer que caberá aos comunistas, em momento devido, a construção de seu próprio exército revolucionário, o que não anula em absoluto, como tentamos demonstrar, a importância do trabalho revolucionário no aparelho repressivo de estado. Sobre isto, também cito trecho da tribuna “Às armas, camaradas!”, escrita por Ventos dos Norte:
[...] É necessário que os comunistas busquem não só inserção entre os praças das forças armadas, mas que tenham no seu horizonte estratégico alçar quadros a mais alta hierarquia do comando das FAB e utilizar essa influência como mecanismo de ruptura para a conformação de um exército popular revolucionário. Não só pelo alistamento regular, que é obrigatório para homens a partir dos 18 anos, mas pelo processo seletivo das escolas de formação de oficiais das forças armadas, o qual representa um meio estratégico de inserção na hierarquia do exército, força aérea e marinha [...]
Sem precisarmos repetir os argumentos anteriores sobre a contradição entre não avistarmos a revolução na esquina e a necessidade de, fora da antessala idealista, nos prepararmos para ela, vejamos que o trabalho dos comunistas frente às forças armadas não implica apenas habilitarmos a nossa militância ao exercício militar e às instruções militares para um momento insurrecional, de conflito armado ou mesmo da constituição futura de um exército irregular, mas implica também, como já dissemos, a sua inserção em benefício do trabalho ideológico nas bases militantes, ainda pouco movidas pela importância do tema, tal qual nas bases militares, profundamente banhadas pelas ideologias neoliberais próprias de nosso século. Sobre isto, citamos Pedro Marin em seu ensaio “Os militares lêem Gramsci, mas publicam Tatcher”:
[...] o decreto nº 1748, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas, estabelecia os objetivos da BIBLIEx. Uma comissão formada por três militares e dois civis determinaria os livros a serem publicados, divididos em três coleções: ‘Os nossos soldados’, [...] ‘Obras patrióticas’, [...] e ‘Obras de educação’. Desde então, a Biblioteca do Exército esteve em franca ascensão. Durante a ditadura militar no Brasil, foi responsável por edições de Arquipélago Gulag, clássico literário anticomunista de Alexander Soljenítsin [...]
Disputam a história, criam bases ideológicas, buscam hegemonia – mas, ao contrário da difusa ‘esquerda’ contra quem fazer acusações, tudo o que fazem é sob os feixes de luz dos cofres públicos [...] Os generais lêem Gramsci – ou algo do tipo. E publicam Hayek, Tatcher, Ustra [...]
A tribuna “Às armas, camaradas!” de Ventos do Norte, também revela o caráter ideológico destes espaços a partir da própria inserção in loco de quem escreve o texto:
[...] tive a possibilidade de atestar, o que não é nada surpreendente, que as forças armadas brasileiras possuem um projeto de poder, pois formam os seus oficiais para terem plena capacidade de gerir o estado nas suas mais amplas atividades, que vão desde a administração pública como licitações, economia, até áreas mais amplas como geopolítica, história mundial e relações internacionais. [...] Além disso, a doutrina dominante nas forças armadas permanece sendo a de enxergar o controle da ameaça externa a partir do enfrentamento ao inimigo interno: o povo brasileiro [...]
Sabemos: o povo é o inimigo. Não diferente do que vêm apontando estudiosos da questão militar e plataformas voltadas ao tema, como tem feito, a título de exemplo, as sucessivas publicações da Revista Opera e artigos do jornalista Pedro Marin (um dos autores do livro que dá título a este subtópico) é nítido o caráter ideológico das forças armadas enquanto instituição estruturante do estado burguês que não identifica seu inimigo através de um cálculo exógeno, mas através de uma métrica profundamente endógena. Isto já deveria nos bastar para realocar o tema.
III – Rondó da liberdade: a questão das armas
Neste terceiro ponto, buscaremos, novamente, coadunar as contribuições de camaradas para, finalmente, um desfecho prescritivo da tribuna. Com isto, iremos ao texto “Nota introdutória sobre armamentos na organização leninista”, assinada por Tribuna de Debates, do qual cito:
[...] Nas condições políticas onde o levante proletário contra o Estado burguês não é viável, Lênin se coloca contra atos individuais e terroristas de ação armada contra os inimigos do proletariado. No momento em que as condições objetivas para uma revolta proletária estão dadas, torna-se tarefa primária dos revolucionários a garantia de condições de combate ao proletariado.
Voltamos aqui ao argumento previamente versado no início desta tribuna, agora amparado pelo pensamento do líder bolchevique. Se no momento em que as condições objetivas para uma revolta proletária estão dadas, é nossa tarefa primária a garantia das condições de combate ao proletariado. Se este momento não é agora, não estamos à defesa de atos individuais e terroristas de ação armada, mas à defesa do preparo comprometido do partido revolucionário de vanguarda com as necessidades imanentes da classe trabalhadora.
Notem que, inicialmente, apontamos os impasses ideológicos que travam a compreensão da própria militância comunista acerca do tema e a necessidade imperativa de um trabalho ideológico total para um acolhimento real do problema. Igualmente, confluímos algumas contribuições em prol da defesa à inserção militar de quadros destacados, sinalizando que a tarefa cumpre um duplo papel instrutivo-prático e ideológico: instrutivo e prático do militante recrutado, mas também da militância (na medida em que se demande a socialização deste conhecimento prático com nossas bases); e ideológico das bases militares (a ação do militante no meio militar), mas também das bases militantes na reorientação ideológica das mesmas bases militantes a partir de tal imbricamento.
Contudo, não podemos censurar o acesso legal e imediato da militância às armas. Que isto significa? Defenderemos aqui que – para além da possibilidade de inserção de militantes nas forças armadas – também devemos considerar a aproximação e familiarização da nossa militância não inserida nas FA com as armas. Sobre isto, ainda da mesma tribuna supracitada, destaco:
[...] A questão específica dos clubes de tiro, contudo, um espaço com caráter de conteúdo marcadamente distinto das demais propostas de ‘iniciativas econômicas’ ganha grande destaque no texto [de Lênin], por meio de uma nota de rodapé:
‘[...] quero dizer um lugar para praticar a mira, onde haja suprimento de todos os tipos de arma de fogo e onde qualquer um, por uma taxa pequena, possa praticar tiro ao alvo com um revólver ou um rifle. A liberdade de reunião e associação foi promulgada na Rússia. Os cidadãos têm o direito de se reunir e aprender como atirar; isso não é perigoso para ninguém. Em qualquer grande cidade da Europa, você vai encontrar esses estandes de tiro abertos a todos, situados em porões, às vezes fora da cidade etc. E é longe de ser inútil para os operários aprender como atirar e como manusear armamentos [...]’
Neste ótimo trecho destacado por Tribuna de Debates, Lênin dificilmente oferece à nossa imaginação a atmosfera remota de uma Rússia inscrita no início do século XX, onde a preocupação com as armas ainda possuísse formas primitivas. Ao contrário, mais se aproxima de uma atmosfera própria de nossos dias, como se dissesse Lênin sob o frio das névoas czaristas: “Aos comunistas brasileiros deixarei um pequeno empurrão...”.
É inegável que também são nossas as cidades recheadas de clubes e estandes de tiros, “abertos a todos” e “por uma taxa [nem sempre] pequena”. Como defendemos aqui, também é útil à classe trabalhadora “aprender como atirar e como manusear armamentos”. Isto implica – sempre e rigorosamente – um trabalho ideológico maduro e responsável do partido para a própria militância, da militância madura para as bases e das bases para as bases.
Com isto, há de se acrescentar algumas ponderações rápidas sobre a legalidade das armas no contexto brasileiro. Tal qual apontou Tribuna de Debates, com o decreto 11.615/23 do Governo Federal, o acesso à armas de fogo pela população se tornou mais restrito, no entanto, segue possível. Contudo, defenderemos que, neste primeiro momento, nosso partido se atenha aos clubes e estandes de tiro onde o porte de armas não se faz necessário, ainda que sob o novo decreto passe a ser exigido o Certificado de Registro (CR), conforme consta no artigo 34:
§ 6º É proibida a prática de tiro recreativo com armas de fogo em entidades de tiro desportivo por pessoas não registradas como atiradores por meio de CR concedido pelo Comando do Exército. [4]
A título de breve contribuição informativa sobre o Rio de Janeiro, entre capital carioca e o interior do estado, passando, especialmente, pela Região dos Lagos ao Norte Fluminense, verifica-se uma quantidade significativa de clubes e estandes espalhados. Caberá tão somente à militância um levantamento preciso de como estes espaços se apresentam em seus respectivos estados, tais quais as possibilidades seguras de nosso aproveitamento dos mesmos. Ainda na tribuna supracitada, encontramos bons direcionamentos prescritivos para este problema:
[...] Onde for oportuno e viável, dadas condições mínimas organizativas, as direções regionais podem destacar comissões de camaradas para a realização de cursos básicos de tiro e custear essas formações.
Os camaradas destacados para tais cursos podem e devem elaborar repasses e documentos internos para a militância, visando a capacitação da militância em geral e uma eventual profissionalização de eventuais comissões de segurança.
A médio prazo, em espaços onde o partido tenha uma dinâmica política e organizativa bem estruturada, é possível girar destacamentos de camaradas para a realização de cursos de tiro e (eventualmente) cursos de formação como instrutores de tiro.
Tendo militantes profissionalizados enquanto instrutores de tiro certificados, vinculados a clubes ou estandes de tiro, teremos a possibilidade de realizar espaços de formação orientados por militantes comunistas e eventualmente realizados em parceria com bases e amigos do Partido (leia-se sindicatos, associações e movimentos em que tenhamos inserção orgânica).
A longo prazo, presumindo um avanço geral da profissionalização da militância e das finanças partidárias, tornaria-se viável até mesmo a construção de espaços formais de treinamento em tiro geridos por militantes ou amigos do partido [...]
Voltamos a ressaltar que nossa tentativa com este texto é de aglutinar contribuições de tribunas com as quais tivemos contato e somá-las às nossas reflexões e propostas para um encaminhamento prescritivo mais imediato. Contudo, é evidente que não conseguiremos aqui esgotar o tema e nem o pretendemos, uma vez que isto caberá ao trabalho congressual e à totalidade da militância da Reconstrução Revolucionária.
Sem demora: os núcleos de autodefesa
Dito isto, defenderemos agora um encaminhamento final, prático e acessível como ponto de partida para todo o resto sobre o qual versamos. Pois é evidente que existem possibilidades outras e ainda mais instantâneas para tratarmos a questão da autodefesa e suas decorrências que não, prontamente, as armas de fogo, como é o exemplo dos treinamentos de autodefesa através das artes marciais.
Não haverá tempo nesta tribuna para tratarmos de qualquer problema terminológico referente às “artes marciais” e nem mesmo as discrepâncias culturais entre ocidente e oriente que dizem respeito à compreensão destas práticas, contudo, há de ser dito que tomaremos o conceito de artes marciais como as mais diversas técnicas, métodos e lutas defensivas-combativas, do kung fu à capoeira, que habilitem a militância à sua autodefesa efetiva.
Que seriam, então, os núcleos de autodefesa? De pronto, diremos que: os núcleos de autodefesa são espaços físicos – fixos ou itinerantes – mas, sobretudo, reservados de privacidade, organizados nas mais diversas cidades brasileiras onde se encontram os nossos núcleos, para o estudo da violência revolucionária enquanto assunto da ciência marxista, para debates e deliberações táticas relativas à questões resultantes do tema, bem como – e prioritariamente – para treinamentos de autodefesa e atividades físicas diversas.
Percebam que nos referimos a espaços onde possamos também – somando às atividades físicas imediatas de autodefesa – estudar e debater sobre as múltiplas dimensões táticas que envolvem os temas e deles derivam (a exemplo, a inserção militar e o acesso às casas de tiro) buscando encaminhamentos práticos e o amadurecimento ideológico de nossa militância acerca dos assuntos. Com isto, alguns apontamentos gerais e propositivos sobre o caráter do que chamaremos doravante de NAR (núcleos de autodefesa revolucionária):
· Para a formação de um NAR é necessário, tal qual para a formação de uma célula, a participação de, no mínimo, dois militantes;
· Os NAR devem ser divididos por cidades ou zonas da mesma cidade, no caso de grandes capitais com múltiplas células que dificultem a inserção de dezenas de militantes num único núcleo de autodefesa;
· A partir de uma célula também pode-se formar mais de um NAR, visto que algumas ainda se encontram constituídas por militantes de diversas cidades impossibilitados ao encontro físico constante;
· A constância das atividades de um NAR poderá ser semana, quinzenal ou mensal, a depender das precisões de cada núcleo;
· Os NAR terão como denominador comum e obrigatório aulas de autodefesa a partir do destacamento de camaradas praticantes das artes marciais, militantes ou amigos do partido, aptos ao ensinamento;
· Os NAR devem estar prontos ao acolhimento da militância em sua inteireza, o que significa necessariamente as condições necessárias para o treinamento de autodefesa com militantes PCDs;
· Os NAR podem se realizar em quaisquer espaços que reservem alguma privacidade quanto às razões de sua existência, mas não necessariamente quanto ao treinamento de autodefesa;
· Os treinamentos de autodefesa poderão se realizar em casas, garagens, academias vermelhas, parques e pracinhas de bairros, praças públicas e espaços públicos ou privados diversos que ofereçam as condições para as atividades físicas;
· No entanto, rigorosamente caberá aos militantes de cada NAR presar pela segurança da informação que se inscreve em cada núcleo: reuniões que visem a discussão e o debate de determinados temas previamente citados (como os tópicos II e III desta tribuna) deverão ser obrigatoriamente realizadas em espaços cabíveis como se realizam as reuniões de célula;
· Os NAR poderão contar com eventuais caminhadas e trilhas, leves à intensas, a depender das peculiaridades dos diversos grupos, para o fortalecimento físico e psíquico da militância de forma coletiva através do exercício do corpo [6];
· Os NAR poderão ser os espaços através dos quais se organizarão as eventuais inserções nas FA previstas no tópico II;
· Os NAR poderão ser os espaços através dos quais se organizarão os eventuais treinamentos de tiro ao alvo previstos no tópico III.
Reforçamos que o trabalho revolucionário de cada espaço deverá ser inteiramente pensado a partir das necessidades de seus militantes, o que significa a inclusão radical de toda a militância, sem distinções. A exemplo disto é fundamental reiterar que o descuidado ou alijamento de camaradas PCDs à autodefesa denota capacitismo, o que jamais deve ser tolerado em nosso partido [7]. Sobre o assunto, enaltecemos a tribuna “A luta anticapacitista é uma luta anticapitalista”, assinada por D.V., que destrincha sobre tal problemática dentro e fora de nossas fileiras.
Como já mencionado, acreditamos que o desenvolvimento mais profícuo desta tribuna deve estender-se à totalidade da militância e é com isto que encerramos estes breves apontamentos sobre um passo necessário a ser dado na Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista. Usemos de mais uma cisão histórica de nosso partido para avançarmos onde os limites ideológicos de outrora sufocaram não apenas a nós enquanto sujeitos militantes, mas ao movimento comunista brasileiro enquanto força motriz da luta de classes.
Abraços fraternos, camaradas!
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[1] ORTEGA, André; MARIN, Pedro. “Carta no coturno: a volta do partido fardado no Brasil”. São Paulo: Baioneta Editora, 2019
[2] Em nossa tribuna “Estética revolucionário e Ideologia: pela construção da Ação Revolucionária Cultural”, buscamos introduzir brevemente o assunto.
[3] FISHER, Mark. “Postcapitalist Desire”. Tradução livre, p. 37
[4] Segundo o que verificamos, os clubes de tiro terão até janeiro de 2025 para se adequar ao novo decreto. Isto não significa que nosso partido deva descartar clubes e estandes que possam continuar operando de forma ilegal e nem muito menos investir, futuramente, nas condições da organização em formar seus próprios espaços para a prática de tiro legal ou clandestina.
[5] Contudo, lembramos que os planos de Lamarca eram ainda mais audaciosos, como relata Elio Gaspari em “A ditadura escancarada”. São Paulo: Companhia das Letras, 2002:
[...] Estava tudo imaginado. No dia 26 de janeiro, Lamarca e seus camaradas roubariam o que pudessem do arsenal do quartel e levariam algo em torno de 560 fuzis, além de dois morteiros de 60 mm. As armas sairiam do 4ª RI num caminhão pintado com o verde-escuro dos veículos militares. A VPR bombardearia o palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, o QG do II Exército e a Academia de Polícia. Um comando tomaria a torre de controle do Campo de Marte e embaralharia as comunicações aéreas da cidade. O país ficaria com a sensação de viver uma guerra civil.
[6] Para uma abordagem marxista sobre as atividades físicas destoante da compreensão ocidental, sugerimos o ensaio de Mao Tsé-Tung, “Um estudo de educação física”, de 1917: https://www.marxists.org/portugues/mao/1917/04/fisica.htm
[7] Há de ser frisado que cabe tão somente à militância PCD a decisão sobre receber, ou não, instruções de autodefesa através das artes marciais.
REFERÊNCIAS
https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2022/07/15/dez-pontos-para-derrotar-o-golpismo-fardado/
https://operamundi.uol.com.br/opiniao/pedro-marin-mourao-o-partido-fardado-e-o-novo-totem/
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11615.htm
https://www.stenudd.com/aikido/jo31kata.htm
https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/mulheres-com-deficiencia-aprendem-autodefesa
https://lucenacorredor.blogspot.com/2016/09/corrida-faz-homenagem-carlos-lamarca.html