Pela legalização do aborto, pelo direito à verdadeira vida
No mês do Dia Latinoamericano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, Rosa Weber (STF) libera para julgamento a ação que descriminaliza o aborto até a 12ª semana de gestação.
Por Juliana Porto
SÃO PAULO — No último dia 12/9, a ministra Rosa Weber, Presidente do Supremo Tribunal Federal, liberou para julgamento a ação que defende a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Foi pautado para a sexta-feira 22/9 o início do julgamento, que se dará em plenário virtual, com previsão de ser finalizado no dia 29 ainda deste mês. A presidente Rosa é a própria relatora do processo e manteve a relatoria da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre o aborto mesmo após assumir a presidência da Corte, já indicando sua disposição de pautar a análise antes de sua aposentadoria ao fim de setembro.
Os debates sobre o aborto não ocorrem somente à nível de Congresso Nacional, como costuma rebater a ala direita conservadora. As ADPF são apresentadas ao STF quando há o entendimento de desrespeito e descumprimento de um ou mais preceitos fundamentais da Constituição Federal. A ADPF442 foi protocolada pelo PSOL e o Anis - Instituto de Bioética em 2017, para sustentar que a criminalização do aborto viola preceitos fundamentais de dignidade, cidadania, não discriminação, inviolabilidade da vida, liberdade e igualdade. Em outras palavras, alega que a tese da criminalização é inconstitucional. Na petição, o partido solicita que o Supremo elimine do âmbito de incidência de dois artigos do Código Penal os procedimentos de interrupção de gestação realizados nas suas doze primeiras semanas. O artigo 124 que se refere ao aborto provocado pela própria pessoa gestante, garantindo-lhe de 1 a 3 anos de prisão, e o artigo 126 que se refere ao aborto provocado por terceiro com consentimento, garantindo-lhe de 1 a 4 anos de prisão.
Atualmente, no Brasil, o aborto é legal em apenas três casos: risco de morte da pessoa gestante, gestação recorrente de abuso sexual e anencefalia do feto. No entanto, já pudemos constatar como mesmo essas exceções são muitas vezes severamente negadas até nos casos mais absurdos. No ano passado pudemos acompanhar o caso da menina de dez anos que teve inúmeros de seus direitos negados: o próprio procedimento de aborto pelo hospital, a não necessidade de autorização da Justiça, o sigilo do caso que veio à público, além de ter sido mantida em um abrigo longe de sua família (também para evitar que a própria mãe tentasse realizar o aborto) por um mês e ser induzida (assediada moralmente) por uma juíza a manter a gravidez sob a justificativa de que juridicamente o aborto só poderia ser realizado até a 22ª semana, o que não é verdade. Em casos de estupro de vulnerável o aborto é permitido sem um limite de semanas. Houve ainda um grupo de religiosos e parlamentares protestando do lado de fora do hospital onde finalmente conseguiram que se realizasse o procedimento. Tudo isso explicita o quanto não foi levado em consideração, em momento algum, o risco de vida que essa criança sofria a cada semana levando a gestação adiante. Mesmo aqueles que têm tutela legal para realizar o procedimento, ainda encontram desafios para realizá-lo de forma segura. A incompatibilidade entre o Código Penal e a Constituição Federal abre espaço para esse tipo de manobrismo. Sete estados no país não apresentam esse tipo de serviço ativo, e muitos profissionais se recusam a realizá-lo por questões pessoais, morais e religiosas.
E é aí que entra a incidência moral religiosa do movimento pró-vida em detrimento da questão fundamental da saúde pública. Esses grupos de pessoas conservadoras contrárias ao direito do sujeito de decidir sobre a continuidade ou não de uma gravidez afirmam a existência de uma vida humana desde o primeiro momento de concepção como uma verdade definitiva e absoluta. Negando, não para nossa surpresa, a ciência e os dados científicos, em defesa de uma suposta vida humana abstrata (um zigoto, um embrião, um feto) sempre em detrimento de uma vida humana real. Na audiência pública da pauta no STF em 2018, a Dra. Maria José Rosado das Católicas pelo Direito de Decidir, nos lembrou da recente mudança no Código Penal sobre a condenação da pena de morte, colocando que a ilegalidade faz do aborto uma forma de pena de morte para as mulheres e pessoas com útero. A audiência foi encerrada e não foi levada adiante para votação.
No nosso país, mulheres e pessoas gestantes morrem cotidianamente devido à criminalização do aborto, que é o quinto maior causador de mortes maternas. A cada ano, 800 mil mulheres e pessoas brasileiras que gestam praticam abortos, e dessas, 200 mil precisam recorrer ao SUS para tratar as sequelas muitas vezes resultantes da única forma possível de se realizar a interrupção: clandestinamente. Nesses atendimentos, podem ainda ser negligenciadas e violentadas pelos profissionais como punição (são deixadas esperando junto de parturientes, assediadas verbalmente e submetidas ao procedimento de curetagem do útero sem anestesia), o que define também sua penalização social. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) realizada em 2021, 5 milhões de mulheres no Brasil já fizeram aborto e metade delas o fez antes dos 19 anos, além disto o SUS aponta que, de 2012 a 2021, 367 mulheres morreram após complicações em tentativa de aborto. Vale lembrar que esses números são sempre subnotificados devido justamente à criminalização.
A ilegalidade do aborto responde a uma questão de justiça social e de justiça racial. De acordo com os dados traçados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) até 2015, as mulheres e pessoas que mais morreram (e continuam morrendo) por aborto são negras, indígenas, pobres, com baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos de idade, entre o Norte e Nordeste. Esse perfil de pessoas em maior risco diretamente relacionado a condições de vulnerabilidade, evidenciam o quanto o aborto é uma questão de saúde pública, a despeito dos avanços científicos capazes de proporcionar uma interrupção da gestação segura e digna, e assim sua diminuição de complicações e mortes.
E ainda, no dia 4 de setembro, o Presidente da Câmara Municipal de Santo André - SP, Carlos Ferreira (Republicanos) promulgou a lei 10708 que proíbe a promoção de políticas públicas, campanhas ou manifestações de qualquer natureza que incentivem a prática do aborto, inclusive nos casos em que este é permitido, por qualquer dos órgãos da administração pública no município de Santo André. Proibir que agentes públicos promovam campanhas e manifestações que podem salvar a vida de muitas mulheres e pessoas com capacidade de gestar é inconstitucional. Perante nossa própria Constituição e Código Penal falar sobre o aborto não é crime.
Esse retrocesso e a volta do processo pelo julgamento da ADPF442 dão ainda mais fôlego à Frente de São Paulo Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que organiza uma manifestação anual pela descriminalização social e penal do aborto que ocorre esse ano no dia 28 deste mês no Vão do MASP com início previsto para as 17h. É de grande importância que mais estados e cidades também organizem campanhas e manifestações pela aprovação da ADPF e pela total legalização. Nesses tempos sombrios, é mais do que urgente pressionarmos e lutarmos pela manutenção e garantia de políticas públicas que assegurem nossos direitos, tão vulneráveis atualmente, sejam eles sociais, sexuais, reprodutivos, por educação, por melhores condições de vida. Para nós, comunistas, essa luta é uma luta de toda a classe trabalhadora.