'Pela construção de um veganismo marxista' (Felipe Resende)
O movimento de defesa dos animais como um todo foi cooptado por um pensamento conservador e de direita. Onde estão os comunistas para disputar esses espaços, para pautar uma linha revolucionária?
Por Felipe Resende para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Escrevo esta tribuna com dificuldade, uma vez que milito há pouco tempo na Juventude Comunista, sendo também pouco meu período de vivência com a temática abordada, o movimento pela abolição do sofrimento animal e uma de suas consequências, o veganismo. Mas foi justamente a partir do contato com a causa animalista que iniciei uma jornada, talvez pouco usual, de maior politização e posterior radicalização política. Desde então, a tentativa de unir veganismo e marxismo em uma só militância tem sido um desafio, e a quase total ausência dessa pauta nas tribunas até agora me motivou a tentar oferecer alguma contribuição ao debate. A única tribuna que pude encontrar que aborda o tema, escrita de forma anônima e de título “A luta ambiental no PCB: uma emergência subestimada”, argumenta que existe um grande atraso no entendimento de ecologia marxista impedindo que o veganismo popular seja visto como válido, relacionando-o a uma estratégia (ecossocialista) para combater a emergência climática. Outra referência que encontrei foi a produção da camarada Maila Costa do RS, que aborda esse tema de forma específica e muito bem embasada em dois textos que recomendo fortemente, “Os comunistas e os animais”[1] e “Chamando a contradição pelo nome”[2]. Fica, portanto, o reconhecimento às camaradas pelas muitas contribuições a esse texto, que busca fomentar a discussão sobre o veganismo neste momento de reconstrução revolucionária do partido.
Em primeiro lugar acho importante ter em mente alguma definição de veganismo, que sergundo a “The Vegan Society” seria “uma filosofia e modo de vida que procura excluir - tanto quanto possível e praticável - todas as formas de exploração e crueldade contra animais para alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito; e, por extensão, promove o desenvolvimento e uso de alternativas sem origem animal em benefício dos animais, dos seres humanos e do meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos os produtos derivados total ou parcialmente de animais”. Esta definição já é indicativa de que o veganismo teria, de forma geral, três motivadores ou pilares que o justificariam, sendo eles o veganismo pelo meio ambiente, o veganismo pela saúde humana, o veganismo pela abolição do sofrimento animal (ou veganismo ético), e um quarto que pode ser depreendido e que aqui vou chamar genericamente de veganismo e sociedade, que vai se debruçar, por exemplo, sobre a relação entre a exploração animal e outras opressões humanas como o machismo (Ex. “A Política Sexual da Carne” de Carol J. Adams), o racismo (Ex. Teoria Crítica da Raça[3]), a dos trabalhadores da indústria dos abatedouros (Ex. documentário “Carne e Osso”), das relações de poder e produção (Ex. JBS e seus monopólios, bancada do boi) e tantas outras. A discussão de qualquer um desses pilares pode ser tão complexa e extensa quanto se queira e não é essa a proposta deste texto. A proposta é fomentar o debate sobre isso e buscar entender porque um tema dessa relevância parece não ser levado à sério pelos comunistas. Minha impressão pessoal, baseada em comentários de outros camaradas e em postagens na internet, é de que o veganismo é muitas vezes visto, no melhor dos casos, como um esforço individual inócuo, e no pior como um desvio burguês, gerador de mais um nicho de mercado a ser explorado por empresas que vendem produtos caros e inacessíveis, sendo o movimento taxado de elitista, de racista ou até de anti-humano.
Camaradas, é evidente que o movimento vegano no Brasil é dominado por uma vertente hegemônica liberal e capitalista, uma vez que essa é a ideologia da classe dominante - porque no veganismo seria diferente? O movimento LGBT+ também é hegemonizado pelo viés liberal, como atestado pela presença massiva das multinacionais patrocinadoras das paradas de orgulho, que tiveram suas pautas políticas diluídas e substituídas pela lógica do consumo e do pink money (festas, roupas, músicas, academia, suplementos, lifestyles…). Mesmo assim, o partido criou o Coletivo LGBT Comunista, justamente para tensionar e disputar esse espaço por entender que é sim uma pauta essencial, e o mesmo pode ser dito, cada um com suas particularidades, do movimento negro ou do feminista, que em suas vertentes liberais trocam o combate às causas das opressões por uma visão meritocrática, do empreendedorismo negro/feminino/LGBT e da representatividade formal, e mesmo assim esses são ambientes nos quais o partido busca tensionamento político por meio de seus coletivos e dos acúmulos teóricos que eles produzem.
Repito: não seria diferente com os movimentos organizados de ativismo vegano, entre os quais a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) parece ser a mais proeminente e na qual atuei brevemente. Como disse, minha transição para o veganismo coincidiu com um movimento pessoal ainda incipiente de politização à esquerda, e minha primeira iniciativa foi de buscar um coletivo para atuar, momento no qual entrei em contato com a SVB. A única ação de “ativismo” presencial que participei envolveu a distribuição de folhetos informativos do programa “opção vegana” para restaurantes, lanchonetes e padarias na rua Comercial Norte de Taguatinga, ação da SVB que incentiva esses negócios a terem opções veganas no cardápio. As outras ações da SVB, como o selo vegano, o abril vegano, a realização do VegFest e o segunda sem carne, também possuem esse viés liberal, de que o livre-mercado de produtos veganos e o empreendedorismo vegano precisam ser estimulados para que sejam, junto com suas grandes campanhas publicitárias (“Ser vegano é uma delícia!”), as forças responsáveis pela superação gradual da exploração animal.
Mas é preciso compreender que existem também movimentos contra-hegemônicos, como a União Vegana de Ativismo (UVA), que de acordo com seu site foi “fundada a partir da necessidade da afirmação do veganismo como um movimento social em defesa da consideração moral de todos os animais, humanos e não humanos. Acreditamos que o veganismo deve se articular a outras lutas por justiça social e ser disseminado de uma forma acessível e popular”. Por ocasião da eleição de 2022, a UVA elaborou a declaração de Compromisso com o Veganismo Popular com 21 pautas prioritárias nesse tema, e 9 camaradas do PCB que saíram candidatos assinaram o compromisso, como Jones Manoel, Gabriel Tavares, Gabriel Colombo, Juh Guerra e outros[4]. Isso parece demonstrar que existe sim alguma consideração sobre o tema, mas a total falta de acúmulo partidário em relação a isso é um empecilho para formulações mais complexas. Dos 9 assinantes da declaração que eram do PCB, apenas 2 se declararam veganos, o que, para mim, é uma contradição entre teoria e prática. A assinatura do compromisso foi apenas um ato eleitoral individual de cada candidato ou existe de fato interesse coletivo em evoluir com essa discussão e suas consequências práticas dentro do próprio partido?
Sobre a necessidade de disputa dentro do movimento vegano e de defesa dos animais de forma geral, faço um diálogo com a tribuna “Os comunistas devem assumir posição vanguardista em temas caros à esquerda”, escrita pelo camarada Marcos Honório, pois tenho acordo com sua fala de que “É imprescindível que o movimento comunista brasileiro tenha o tipo de inserção necessária para conseguir fazer gravitar em torno de si as aspirações antissistêmicas do povo; onde houver a demanda por uma proposta de reforma política, lá devemos estar apresentando nossas concepções revolucionárias. Caso contrário, outros agentes políticos podem tratar de catalisar esse ímpeto insurreto, fazendo com que aquela massa de corações descontentes provenha da legitimidade político-social que um movimento fascista de massas precisa.” Ou seja, não existe vácuo no poder, e esse é justamente o caso do dito movimento em defesa dos animais. Tome o caso do Distrito Federal: o quarto deputado distrital mais votado, Daniel Donizet (PL), tem como pauta principal a defesa dos animais. No Congresso Nacional isso também ocorre, como por exemplo com os deputados Fred Costa (Patriota-MG) e Felipe Becari (União Brasil-SP), ambos eleitos com votações muito expressivas e com a pauta da defesa dos animais como bandeira principal, sendo que a visão de defesa dos animais propagada por estes deputados é extremamente restrita e especista, pois considera dignos de atenção basicamente animais de estimação e alguns poucos outros, com visões punitivistas sobre o problema dos maus-tratos[5]. E eles não são casos isolados, o movimento de defesa dos animais como um todo foi cooptado por um pensamento conservador e de direita[6]. Onde estão os comunistas para disputar esses espaços, para pautar uma linha revolucionária? E qual exatamente seria essa linha?
O atraso dos comunistas é tão gritante que mesmo partidos ou organizações ditas de centro, social-democratas e reformistas possuem formulações mais avançadas do que o PCB. O PT, por exemplo, possui dentro de sua estrutura partidária um setorial dedicado à defesa dos animais, uma defesa na linha abolicionista e antiespecista, uma linha em que o horizonte é o veganismo popular e periférico[7]. Se esse setorial consegue pautar a linha do partido é outra questão, mas essa formulação existe internamente e ele foi um dos grandes responsáveis pela criação do inédito Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais dentro da estrutura do Ministério do Meio Ambiente neste novo governo Lula. Existe também uma aproximação entre o MST e o movimento do veganismo popular[8]. Os anarquistas já possuem longa tradição neste debate, um debate que se reflete na prática desses coletivos. Aqui em Taguatinga, por exemplo, existe uma ocupação do Coletivo Resistência Internacional de Artistas (RIA)[9] em que o veganismo é considerado pauta superada e todas as outras discussões nesse tema, como soberania alimentar e crítica ao olhar biomédico da saúde, já partem desse princípio, sendo que em todos os eventos que já participei a comida era vegana e nem era dado muito destaque a isso, porque para eles não é um rótulo, uma marca ou um nicho de mercado, mas sim algo “básico”. Como eles atuam em parceria com outros coletivos culturais populares da região, com frequência os vejo vendendo lanches veganos caseiros para levantar caixa, como no aniversário de 7 anos da batalha de rap da fonte do Taguaparque. Ou seja, um coletivo anarquista que ocupa um prédio abandonado com várias famílias na periferia do DF vai num evento de cultura popular marginalizada, faz caixa vendendo lanches veganos baratos (e muito gostosos) e ainda pauta sua linha. Talvez eu seja emocionado, mas eu acho isso avançadíssimo e fico triste que na organização em que escolhi militar isso seja visto ou como algo sem importância ou algo impraticável ou como um horizonte completamente utópico, como se a classe trabalhadora não tivesse capacidade cognitiva para compreender as contradições inerentes ao sistema de produção alimentar dependente de derivados animais. Isso vindo de comunistas, que esperam que os trabalhadores compreendam o materialismo histórico-dialético e se unam contra a exploração da mais valia pela burguesia via uma revolução proletária para superação do capitalismo e da ordem neoliberal imperialista…
Para encerrar, gostaria de reiterar que esse texto se propõe a fomentar um debate que até agora considero ínfimo dentro das estruturas partidárias, embora já existam camaradas e coletivos que levantem essa pauta e cujos acúmulos precisam ser resgatados, compilados e digeridos para a construção de um veganismo marxista que seja coerente com a atuação política do partido.