PCB Revolucionário – nós merecemos este nome?
Eis as nossas tarefas imediatas e indispensáveis. Na construção desta estrutura reside nosso trabalho fundamental. É só por meio desta construção e a partir dela que podemos falar em ir às massas para fazer um trabalho comunista.

Por Theo Dalla | Tribuna de Debates
Em junho de 2023 se tornou pública a encarniçada disputa interna no PCB, coisa que, apesar de já se desenrolar há quase uma década, até então era sabida somente por algumas poucas dezenas de militantes que dialogavam entre si nos bastidores. A 3 de agosto do mesmo ano, é lançado o Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, um documento que, como o próprio nome indica, convocava a militância comunista a retomar o processo de Reconstrução Revolucionária do Partido contra o grupo no Comitê Central que queria dá-lo por acabado, enquanto afogava o PCB no lamaçal do oportunismo, do federalismo e do amadorismo.
Um ano depois, é realizado o XVII Congresso Extraordinário, cuja etapa preparatória foi marcada pelas Tribunas de Debate públicas, uma ferramenta inédita, amplamente utilizada pela militância, que serviu para dar vazão a uma gama de opiniões represadas na burocracia pecebista. Apesar das controvérsias e do desgosto que gerou em alguns camaradas, as Tribunas foram o maior feito do PCB-RR durante a etapa preparatória do Congresso. Demonstraram, por um lado, um compromisso com uma mudança radical na concepção de centralismo-democrático, abrindo margem para a discussão ampla, aberta e direta; e por outro, demonstraram uma igualmente ampla heterogeneidade ideológica, isto é, uma evidente falta de coesão, e uma imaturidade política que se expressava em debates superficiais e secundários.
Em resumo, este poderoso instrumento das Tribunas na etapa preparatória já revelava que não estávamos preparados. Claro, isso de forma alguma significa que deveríamos ter interrompido o que estávamos fazendo, se redimir e pedir licença para voltar para o PCB. Longe disso. Mas que precisávamos de uma boa dose de humildade e de autoconsciência sobre nossos limites evidentes, sem o que seria impossível traçar um caminho correto para superá-los. Era preciso reconhecer o que se escarava na nossa frente: estamos fazendo um Partido sem unidade ideológica, com uma massa de militantes novos com baixíssimo conhecimento teórico e ainda muito inexperientes; portanto, nossa primeira e mais fatal tarefa deve ser dedicar toda a nossa energia para forjar esta unidade.
Nesse mesmo sentido, era preciso estudar com mais afinco e detalhe o próprio processo de racha do PCB em 1992, que valiosos ensinamentos nos dá sobre o que estávamos fazendo. Não ter unidade ideológica num processo de racha não é uma novidade. Pelo contrário, nessas situações, é normal que se unam momentaneamente grupos diversos em torno de um objetivo comum, mas tão logo este é alcançado, se revelem suas divergências profundas. Por isso, não deveria ser tratado como mera “peça de museu” o fato que, no racha de 1992, demorou-se mais de 10 anos, 3 congressos nacionais e extenuantes conflitos internos para se definir a Estratégia Socialista em 2005. Não se deveria ignorar ou menosprezar, portanto, o profundo atraso e os danos causados ao despriorizar o enfrentamento à desunião ideológica.
Mas não foi o que a nossa ansiedade juvenil nos proporcionou. Recusamos reconhecer nosso despreparo e limitações, bem como nos recusamos a aprender com o passado. Em um gesto que não pode demonstrar outra coisa senão arrogância e presunção, o debate sobre o nome do Partido durante o Congresso foi de um simbolismo enorme. Após um único e conturbado ano de início da retomada da Reconstrução Revolucionária, num congresso que, apesar dos esforços democráticos, era pouco mais que um Congresso da UJC, decidimos por mudar o nome de “Partido Comunista Brasileiro – Reconstrução Revolucionária” para “Partido Comunista Brasileiro Revolucionário”. Não quero entrar no mérito de mudar ou não o nome do Partido, até porque defendi a mudança à época. Quero apenas apontar para o significado desta mudança: se antes declarávamos reconstruir revolucionariamente, agora declaramo-nos já revolucionários (e pouco importa o quanto se tenta dissimular isso com retórica no prefácio das Resoluções).
A ideia por trás disso é que, com esta nova alcunha e com uma nova e esclarecida direção no Comitê Central, agora, bastaria nos inserirmos com força total no movimento de massas, já que não haveria mais aquele problema fatal para qualquer Partido que se pretenda comunista – a desagregação ideológica –, tendo em vista que a decisão do Congresso nos consagrou revolucionários, a despeito do que revelava nossa práxis. Essa concepção totalmente equivocada da nossa realidade não poderia nos levar a outro lugar senão a cair (ou permanecer) no tarefismo artesanal no âmbito organizativo e no oportunismo no movimento de massas, nos mantendo ainda longe de desempenharmos o papel de um Partido Comunista na luta de classes, elemento que foi um dos centrais no nosso racha e que, a meu ver, foi o único sobre o qual não conseguimos avançar.
Em resumo, desde o início do PCB-RR ficou evidente que não havia unidade ideológica entre nós, mas não entendemos este como um problema central, não colocamos sua solução na ordem do dia. Estávamos mais preocupados em afirmar simbolicamente nossa diferenciação com o PCB demarcando que somos sua continuidade “revolucionária” e que possuímos maior inserção social, motivo pelo qual priorizamos uma inserção frágil e vacilante ideologicamente no movimento de massas, deixando intocados o economicismo e o oportunismo na formulação tática. No âmbito organizativo, a despeito de esforços de melhor organização das finanças, a pedra angular do amadorismo também continua praticamente intocada: dependemos exclusivamente do trabalho voluntário não-remunerado, isto é, das sobras de tempo que cada militante encontra em sua rotina, “das tardes livres” de cada um. E nós tínhamos condições para mudar isso – só não foi a prioridade.
Todos estes problemas convergem para uma confusão no princípio da concepção de partido. A partir dessa confusão, poderemos observar de onde se desdobra a dificuldade de avançar sobre a questão da profissionalização, da elevação do nível teórico médio dos militantes, da forma e da qualidade da nossa intervenção na luta de massas cotidiana.
A quarta etapa da Reconstrução Revolucionária – no que avançamos e o que ainda falta
Em um texto publicado no Em Defesa do Comunismo, em agosto de 2023, defendi que vivíamos a quarta etapa da Reconstrução Revolucionária. As três etapas anteriores seriam, então: 1) a manutenção da existência do Partido (de 1991 a 2005); 2) a definição da Estratégia Socialista (no XIII Congresso em 2005); 3) a nacionalização e a retomada do crescimento do Partido (de 2013 a 2022). Daí que a quarta etapa seria a de proletarização e massificação do Partido, a mudança na sua capacidade de intervenção orgânica na luta de classes, sua constituição enquanto operador político do proletariado, que representa seus interesses de forma independente, que visa a construir a hegemonia desta classe sobre as demais. Para dar consequência a isso, identificava quatro eixos principais do processo de cisão
“constatamos que o centralismo democrático (e seus princípios desfigurados pelo PCB) é um dos quatro principais eixos que caracterizam essa disputa, sendo os outros três fundamentalmente políticos: 1) o internacionalismo proletário; 2) o papel do Partido na Revolução Socialista; 3) a hegemonia proletária na formulação tática e estratégica.”
Estes quatro eixos resumiram bem o nosso processo de cisão e já vemos significativo avanço em relação a maioria deles. Como já dito anteriormente, desde as Tribunas até as novas formas de organização interna, a circulação de informações e correspondência entre as diferentes instâncias partidárias, a construção de um jornal nacional e as tentativas de formular táticas comuns para todo o Brasil, demonstram um avanço e uma mudança significativas na concepção de centralismo-democrático. Sobre o internacionalismo proletário, rompemos tanto com a posição passiva e espectadora, quanto com a oportunista que paulatinamente nos empurrava para a aliança com os partidos defensores do “multipolarismo”, abrigados sob as asas do imperialismo russo e das traições internacionais do Partido Comunista Chinês. Ainda que nossa interação com o chamado “campo revolucionário” muitas vezes se dê de forma subalterna, sem a coragem necessária para enfrentar as contradições próprias deste campo.
Quanto à hegemonia proletária, avançamos na definição clara de nossa oposição de esquerda a todo governo de conciliação de classes, na definição dos setores estratégicos, numa prática política independente em relação aos partidos da pequena-burguesia como o PSOL (rompendo com o seguidismo típico do PCB), ainda que falte uma definição mais precisa sobre a tática e a estratégia da Revolução Socialista no Brasil. Nossas resoluções sobre o tema ainda são muito limitadas e confusas, versando mal sobre assuntos fundamentais como a Frente Anticapitalista e Antiimperialista, sobre a nossa política de alianças e eleitoral, enfim, sobre as vias para dar consequência ao objetivo socialista. Esta indefinição é compreensível dado o nível do nosso Congresso e a falta de um estudo sistemático e dedicado a tais temas, mas principalmente ao nível incipiente de maturidade do nosso movimento, que apesar de já ter mais de 100 anos no Brasil, viveu períodos e descontinuidades tão abruptas que muitas vezes retroagiu ou atrasou gravemente o seu desenvolvimento.
Contudo, o único e mais importante eixo sobre o qual não avançamos e que, agora, identifico como o elemento central de uma profunda divergência interna, um dos principais motivos de ainda nos arrastarmos desunidos e de perpetuarmos nossa desagregação ideológica, é quanto ao “papel do Partido na Revolução Socialista”, ou melhor, quanto à concepção de partido. Por mais que teoricamente tenhamos alguma clareza conceitual, na prática, vivemos uma indefinição que corrói sistematicamente nossos trabalhos, tanto no âmbito organizativo, quanto político-prático, na intervenção na luta de classes.
Vejamos estes pontos um a um.
O que diferencia um Partido Comunista dos demais?
“Engels reconhece não duas formas da grande luta da social-democracia (política e econômica), como é de costume entre nós, mas três, colocando a luta teórica ao lado delas.” (Que fazer?. LÊNIN, 1902)
“A social-democracia é a união do movimento operário com o socialismo. A sua missão não se baseia em servir passivamente ao movimento operário em cada uma das suas fases, mas em representar os interesses de todo o movimento no seu conjunto, indicar o objetivo final deste movimento, as suas tarefas políticas, e salvaguardar a sua independência política e ideológica. Desligado da social-democracia, o movimento operário restringe-se e transforma-se forçosamente num movimento burguês: ao promover exclusivamente a luta econômica, a classe operária perde a independência política, converte-se num apêndice de outros partidos e trai o grande preceito: ‘A emancipação da classe operária deve ser a obra da própria classe operária’.” (As tarefas urgentes do nosso movimento. LÊNIN, 1900)
Muitos podem dizer com certa facilidade: “somos um Partido Comunista, um partido de vanguarda, de quadros!”. Mas... o que significa ser um Partido Comunista? O que diferencia, na prática, um PC de um partido social-democrata qualquer? Seria a autoproclamação como comunista? Seria constar em nossas resoluções congressuais que lutamos por uma revolução? Seria colocar “pelo Poder Popular e o Socialismo!” ao final de cada nota política? Seria dirigir greves (ou pelo menos tentar) contra a burguesia local? Seria estar inserido nos sindicatos dos “setores estratégicos”? Seria construir ações de solidariedade permanentes nos bairros periféricos? Ora, tudo isso pode ser (e já é) feito por partidos sociais-democratas, não é verdade?
A principal diferença do partido revolucionário é que este não limita seu trabalho à luta econômica e política, mas o combina com uma terceira forma de luta: a teórica. Por “luta econômica”, entendemos a luta sindical, geralmente local, por melhores condições de vida e trabalho imediatas para a classe trabalhadora (por aumento salarial na empresa, por saneamento básico no bairro etc.); por “luta política”, entendemos aquelas mais amplas, geralmente nacionais, quando a classe trabalhadora se choca com o Estado burguês. Aqui, já temos uma primeira diferenciação, pois, “há política e política”. Ela tanto pode se resumir à luta por reformas e concessões do Estado para minimizar as desigualdades sociais (reformas, mudanças legislativas etc.) – a política social-democrata –, quanto se referir à luta revolucionária pela tomada do poder político – a política comunista. Por luta teórica, concebemos o combate constante e a destruição de todo tipo de concepção política e teórica que desvie o movimento operário do seu desenvolvimento revolucionário, seja por meio dos embates contra os demagogos na esfera pública e nos espaços do movimento (assembleias, manifestações e afins), seja pela divulgação da literatura e da teoria marxista em geral.
O camarada Engels, ao analisar o “sucesso” do desenvolvimento do movimento operário alemão, destacou que sua força reside justamente na articulação destes três âmbitos da luta:
“É preciso dizer que os trabalhadores alemães aproveitaram sua posição com rara habilidade. Pela primeira vez desde a existência do movimento operário, a luta está sendo travada sistematicamente em todas as suas três direções, de forma coordenada e interligada: teórica, política e prático-econômica (resistência aos capitalistas). Neste ataque, por assim dizer, concêntrico, reside a força e a invencibilidade do movimento alemão.” (As guerras camponesas na Alemanha. ENGELS, 1874)
Ouso dizer que, sem combinar estas três formas da luta – e sem equilibrá-las entre si– não existe trabalho comunista possível. Como já dito, um trabalho sindical (luta econômica) combativo pode ser feito por um “bom sindicalista”, sem precisar ser comunista; uma luta política por reformas (como o fim do Arcabouço Fiscal) pode ser conduzida por um partido social-democrata radical, prescindindo da hegemonia proletária; mas uma luta política revolucionária não pode ser feita sem uma obstinada luta teórica, porque sem ela não há desenvolvimento da consciência revolucionária, por melhores e mais combativas que sejam as experiências de enfrentamento na luta de classes. O grande diferencial do Partido Comunista, portanto, é trazer de fora a teoria revolucionária, a consciência revolucionária, justamente porque ela não pode brotar espontaneamente, porque só o que brota espontaneamente é a consciência burguesa.
Nosso trabalho, portanto, é agir sobre o processo de consciência das massas, oferecer uma explicação científica sobre a sociedade de classes, organizá-las para o combate contra a burguesia a partir de uma disciplina consciente. Muito mais do que apenas “mobilizar e organizar as massas”, nosso trabalho é muni-las da convicção de que nada é possível transformar sem uma revolução, e que são elas próprias (as massas) o sujeito da História. Na prática, isso significa que todo o nosso trabalho passa por arregimentar e preparar material e ideologicamente um exército de trabalhadores capaz de enfrentar e vencer o poder dominante. O Partido Comunista é, nessa guerra de classes, o operador político e intelectual deste exército, seu comando, o Estado-maior, o que aponta o caminho que melhor contempla os interesses da massa – a estratégia, a tática, o programa – e coordena as batalhas. O Partido Comunista não é, ele próprio, o exército, mas o seu comando. Porém, só tomaremos esse lugar por meio de uma obstinada e constante disputa ideológica no seio da classe trabalhadora, com denúncias implacáveis a todo tipo de reformismo, etapismo, oportunismo, esquerdismo e outros desvios que atrasam o movimento de massas, bem como pelo trabalho de formação, agitação e propaganda sobre os principais temas teóricos e conjunturais.
A questão é: fazemos isso? Alguns camaradas, muitas vezes apegados ao próprio ego, teimam em aceitar a verdade sobre as deficiências do Partido. Porque heroicamente dedicam tudo o que podem ao Partido, todo o tempo que lhes resta nas suas vidas (já que não podem se dedicar integralmente, como o tipo de trabalho do partido exige), sentem que afirmar “não somos um Partido Comunista” invalida todo o árduo sacrifício diário que fizeram nos últimos tempos. Mas é justamente porque nesses últimos 10 anos temos nos sacrificado, nos desgastado, e sequer podemos dizer que avançamos significativamente; justamente porque perdemos inúmeros camaradas ao longo deste caminho, que é preciso que nos questionemos profundamente sobre o que fizemos até então; que questionemos não só se erramos taticamente numa ou outra ocasião da conjuntura, mas se o caminho geral que escolhemos, se a concepção de partido que praticamos é coerente com os objetivos estratégicos que definimos; enfim, se o nome que nos auto atribuímos realmente corresponde ao tipo de práxis que apresentamos.
Somos partido de vanguarda ou de massas? O problema de concepção
A resposta a esta pergunta é a pedra angular do nosso debate. Não é possível exigir mudanças no Partido se não sabemos o que queremos que ele se torne. Falamos em “proletarização”, “giro operário-popular”, “partido de vanguarda”, “profissionalização” etc., como se fossem conceitos dados, como se houvesse um entendimento comum sobre o significado destas palavras. Evidentemente não há, porque também não há coesão ideológica em nossas fileiras, menos ainda um entendimento sólido sobre que tipo de Partido Comunista queremos. Mas, então, qual é a resposta?
Para começar, precisamos conceitualizar o que é um e outro. Um partido de massas tem duas características fundamentais: a primeira e principal é a subordinação do programa do Partido ao nível médio e imediato de consciência da massa, a despeito dos objetivos e intenções revolucionários declarados formalmente; a segunda característica, consequência da primeira, é a forma do vínculo militante, essencialmente frágil e volátil, mais formal que orgânico, prescindindo de qualquer solidez na apreensão dos princípios teóricos e programáticos, fato que dá margem para a criação de correntes que divergem em princípios dentro de um mesmo partido. Um partido de massas tem esse nome não necessariamente porque é massivo, mas porque tem como objetivo constituir uma base o mais ampla possível em detrimento da educação política revolucionária, do avanço da consciência da massa.
Apesar dessas características mais gerais, a denominação “partido de massas” parece imprecisa ou insuficiente para descrever o objeto que analisamos, podendo causar muitas confusões, já que não toca no fundamental: o caráter de classe do partido. Ora, hoje, tanto a Unidade Popular pelo Socialismo (UP), quanto o Partido dos Trabalhadores (PT) são considerados “partidos de massas”, mas estes possuem diferenças gritantes: enquanto o primeiro não possui correntes internas, o segundo vive uma guerra eterna entre correntes. Enquanto o primeiro tem um programa socialista, o segundo é social-liberal. Enquanto o primeiro, bem ou mal, realiza um esforço de educação política socialista, o segundo renuncia totalmente a este papel. A única coisa que há em comum entre ambos é que para se tornar membro do partido basta preencher uma ficha de inscrição. Por fim, mesmo que um “partido de massas” reconheça vínculos militantes frágeis na base, isso não significa que prescindam, na direção, de um núcleo duro profissional e orgânico. Pelo contrário, todos eles têm.
O partido de vanguarda, por sua vez, tem como características fundamentais: primeiro, carregar uma teoria revolucionária que eleve o nível de consciência imediato e espontâneo das massas (o senso comum liberal, o sindicalismo, a luta por melhores condições imediatas, as lutas parciais do cotidiano) ao nível revolucionário (a necessidade de superação do modo de produção capitalista, de tomada do poder político e do estabelecimento de um estado e governo proletários como único meio para alcançar a emancipação humana) – isto é, o partido de vanguarda não se subordina à consciência imediata das massas para formular seu programa, mas toma ela apenas como ponto de partida para avançar até a consciência revolucionária. Segundo, para realizar este trabalho, os militantes – ou quadros – do partido de vanguarda devem ser (ou se tornar) os mais preparados, os mais competentes para dirigir um exército na guerra política revolucionária, para direcionar cada explosão espontânea do movimento no sentido da tomada do poder. O vínculo, portanto, precisa ser sólido ideologicamente e orgânico na prática. Este nível de competência, de dedicação e trabalho só pode ser realizado por um grupo de militantes profissionais (assalariados) e especializados, única forma de se chegar ao páreo dos profissionais da burguesia. Mesmo no caso dos militantes voluntários, o vínculo deve ter as mesmas características. Isso não significa, por outro lado, que o partido de vanguarda deve ser restrito a um pequeno número de militantes supostamente iluminados pela teoria, ainda mais considerado o nível “razoável” de liberdades democráticas que desfrutamos no Brasil. Pelo contrário, também o partido de vanguarda pode e deve adquirir um tamanho massivo (centenas de milhares e até milhões de membros) se quiser comandar e vencer a guerra contra a burguesia.
Como se vê, o principal diferencial do partido de vanguarda é carregar a teoria revolucionária, já que não só ambos os partidos visam chegar num tamanho massivo e obter influência sobre as massas, como mesmo os assim considerados “partidos de massas”, apesar de aceitar vínculos mais frágeis, também gozam de uma direção profissional e plenamente dedicada ao trabalho político, justamente porque esta é uma condição sine qua non pra realizar qualquer trabalho cotidiano minimamente consistente, duradouro e qualificado, tanto para defender os interesses da burguesia (no caso dos sociais-liberais), e principalmente para defender os do proletariado – tarefa infinitamente mais difícil.
Voltemos, então, à nossa situação. Nos pretendemos um partido de vanguarda, mas recrutamos todos que nos batem à porta, assim como um “partido de massas”; da mesma forma, o vínculo militante é frágil, amplo e volátil, sem qualquer rigor; não se exige nenhum tipo de formação teórica, nem de apreensão do Programa e do Estatuto – contentamo-nos com a intenção de militar e a declaração verbal de concordância com os princípios; temos como prioridade absoluta participar do movimento de massas, independente da qualidade da nossa intervenção, mesmo que muitas vezes ela seja economicista, demagógica e oportunista; mesmo que nossa atuação passe nem perto de cumprir o papel fundamental do Partido Comunista (desenvolver o nível de consciência para o revolucionário), mesmo que ela sirva para reforçar a ideologia burguesa reinante no movimento e, assim, fortalecer o inimigo; apesar de sofrermos com o amadorismo e o caráter artesanal do nosso trabalho, mesmo sugando irracionalmente toda disposição da nossa militância em função disso (gerando uma rotatividade por “quebras” absurdamente normalizada), falamos em “profissionalizar” como um objetivo longínquo e continuamos fazendo investimentos financeiros massivos em um setor do movimento de massas que sequer é o nosso prioritário.
Portanto, hoje, não somos nem uma coisa, nem outra. Nos chamamos Partido Comunista mas não podemos afirmar com certeza que fazemos um trabalho que mereça este nome. Nos dizemos um partido de vanguarda, mas, como uma vez constatou o camarada Rato de Gravataí/RS, não somos nem um partido de quadros, nem “de massas”. Somos, no máximo, um partido bem-intencionado, cuja concepção, na prática, é tão consistente quanto uma gelatina. Balançamos de um lado ao outro, ora tentando agir como partido de vanguarda, ora organizando como “partido de massas”. É desta falta de definição que se origina tamanha angústia com a nossa composição social, nossa alta rotatividade crônica e nossa impotência de intervir com maior decisão nas lutas de massas que participamos (ou deveríamos). É desta indefinição que vem o sentimento muito comum de que “ainda parecemos o velho PCB”.
Quais são nossas prioridades? Ou, como um setor auxiliar se tornou principal?
“Qualquer pessoa que esteja minimamente familiarizada com o estado atual do nosso movimento não pode deixar de perceber que a ampla disseminação do marxismo foi acompanhada por um certo rebaixamento do nível teórico. Muitas pessoas, muito pouco preparadas teoricamente e, às vezes, sem preparação alguma, aderiram ao movimento em nome de sua importância prática e de seus sucessos práticos. Pode-se, assim, avaliar a falta de tato demonstrada pelo Rabótcheie Dielo ao apresentar com ar triunfante o ditado de Marx: ‘Cada passo no movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas’.” (Que fazer?. LÊNIN, 1902)
“E para a social-democracia russa, a importância da teoria é reforçada por mais três circunstâncias frequentemente esquecidas: em primeiro lugar, pelo fato de que nosso partido está recém tomando forma, está recém desenvolvendo sua fisionomia e está longe de acertar suas contas com outras correntes do pensamento revolucionário que ameaçam desviar o movimento do caminho certo.” (Que fazer?. LÊNIN, 1902)
Quando a unidade ideológica do Partido não é a prioridade, quando não estruturamos e forjamos a militância a partir do trabalho em volta do aparelho ideológico – da nossa estrutura de imprensa – e do rigoroso estudo teórico, nossa participação do movimento de massas tende, inevitavelmente, ao oportunismo. Não porque nossos militantes são “ruins”, mas simplesmente porque é para a ideologia burguesa (lembremos: mesmo o sindicalismo combativo está dentro dela) que o desenvolvimento espontâneo da consciência e do trabalho prático nos leva.
Verdade seja dita, camaradas: há um desprezo sistemático de nossa parte pela formação teórica. Nem no PCB, nem no PCB-RR, nem no PCBR a teoria foi tratada como a importância que merece. Ela jamais foi colocada no mesmo patamar de relevância do trabalho prático, mesmo pelos maiores “estudiosos” do leninismo no nosso partido. Não é de hoje que a teoria é desprezada ou preterida pelo trabalho prático. Claro, isso não é culpa de ninguém em particular, mas expressão de um sintoma que adoece todo o movimento revolucionário há gerações, não só o brasileiro, mas todo Movimento Comunista Internacional: a insistência em ressaltar a importância da luta teórica, desde Marx e Engels – nos primórdios do movimento – até Lênin – no seu apogeu –, não é por acaso.
Conhecendo nossa militância, sei que não é preciso insistir na ideia que a “formação teórica é fundamental”. Não tenho dúvidas que a maioria concorda com isso. Porém, esta concordância no âmbito abstrato não se reflete no âmbito prático, nem nos planejamentos, nem nas decisões do cotidiano. Em que pesem os esforços de gravar os primeiros módulos do Curso Básico de Formação, que foi um avanço muito modesto (mas significativo diante do cenário que tínhamos no PCB), isso nem de longe significou colocar a formação como pilar central do nosso trabalho. E não se trata da mera “falta de aplicação” do Curso, como se o problema fosse a indisciplina e indisposição da militância de base. Vejamos.
O Módulo 1 do curso tem cerca de 7 horas e 30 minutos no total. São temas fundamentais, densos, iniciais, que exigem não só assistir aos vídeos, mas também debater coletivamente seu conteúdo, preferencialmente com mediação de camaradas que mais ou menos já se apropriam das ideias ali colocadas. Isso, por si só, já é um problema, dado que nosso déficit no âmbito teórico é tão grande e nos acompanha há tanto tempo, que temos uma escassez inacreditável de propagandistas, talvez uma proporção menor que 1 para cada região onde há Comitês Locais (o que é um problema gravíssimo para um Partido Comunista). Mas, vamos aprofundar nessa questão depois.
Agora, mesmo sem essa mediação, “na cara e na coragem”, algumas células organizam suas atividades de formação e reúnem a militância para assistir junto aos vídeos. Na prática, cada atividade dessas demanda um turno inteiro (cerca de 4 horas). Nas condições que temos atualmente, em que toda nossa militância é um exército de voluntários amadores que tentam derrotar a burguesia utilizando somente as migalhas de tempo que restam de sua rotina exaustiva de estudo e/ou trabalho, muitas vezes, nossos(as) camaradas dispõem não mais que um turno por semana para militar, o que já é um sacrifício do seu tempo de descanso e lazer. Porém, paralelo às tentativas de organizar formações, várias outras demandas surgem: manifestações, reuniões, trabalhos práticos do “local de atuação” etc. Todas essas que também exigem não menos que um turno de dedicação por semana, quando não mais. Ou seja, constantemente, os militantes (tanto da base quanto da direção, todos voluntários amadores e sem tempo) são obrigados a escolher em que tipo de atividade vão investir aquelas migalhas de tempo disponíveis. Pois, se os recursos que temos são limitados, significa que precisamos decidir o que julgamos mais fundamental de se fazer. E, frequentemente (para não dizer sempre), a decisão das direções é priorizar as ações práticas do movimento, tão internalizada que está a diretriz absoluta e inquestionável de “participar do movimento de massas”, já que “cada passo no movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas”. Não raro aparece a justificativa: “a gente aprende e se forma na prática concreta”, esquecendo que a prática política do movimento, quando desprovida de teoria consciente, é nada mais que a prática política burguesa. Talvez estejamos tão desacostumados a pensar que nem consideramos que aquela máxima do camarada Marx pode não servir se os passos que damos são para trás!
Antes que os nossos paladinos do tarefismo irracional trajados de defensores da primazia da atuação “comunista” no movimento de massas se apressem em invocar espantalhos: NÃO, camaradas! Não acho que devemos nos abster de “participar do movimento de massas” para ficar estudando o marxismo trancado dentro de uma sala. O que defendo é que tanto nossa “participação no movimento de massas”, quanto nossa formação teórica, se dê a partir do nosso trabalho ideológico; que não trabalhemos mais ignorando quaisquer dos três pilares da práxis comunista (a luta econômica, política e teórica). O que isso significa na prática?
Primeiro, que a formação teórica e a forja da unidade ideológica e de ação não se resumem aos indispensáveis, mas raros grupos de estudos (seja dos módulos do Curso, seja leituras coletivas da literatura marxista). Ela se dá, principalmente, no envolvimento de toda militância num trabalho comum em torno do aparelho ideológico do Partido, do seu órgão de imprensa, seu trabalho de agitação e de propaganda. Hoje, porque precisamos “participar do movimento de massas”, escoamos toda energia e os parcos recursos humanos e financeiros que temos direto para as células por local de atuação, independente de sua prioridade, de seu caráter estratégico, das condições reais de disputa, da capacidade e da qualidade (do tipo) de intervenção dos militantes. Não importa que sequer temos uma estrutura mínima capaz de pensar politicamente, formular táticas, dominar razoavelmente e propagar a teoria revolucionária, estudar a realidade etc., em cada Comitê Local. Não. O importante é colocar arbitrariamente e de forma dispersa qualquer militante inexperiente que bateu em nossa porta para “construir um trabalho no seu local de atuação”, sabe-se-lá como, sem ter sequer capacidade de lhe prover algum tipo de instrução e acompanhamento qualificado – até que ele perca a paciência e o sentido de militar e vá embora em não mais que 6 meses. Pelo menos, assim, “estamos no movimento de massas”.
Aqui no Comitê Local de Porto Alegre, nos gabávamos ao falar que tínhamos 6 células (Educação, Saúde, Internacionalista, UFRGS, Comerciários e Cultura). Essa ânsia de estar no “movimento de massas” escondia que, na prática, cada uma dessas células eram pequenos feudos, viviam à própria sorte, tentando subsistir de acordo com suas condições e capacidades, cada uma fazendo o que achava mais importante, sem qualquer conexão com o resto do Partido, nem a menor ideia se faziam ou não um trabalho comunista. Fazia o que dava para, pelo menos, “participar do movimento de massas”. Isso, claro, quando as células existem de fato, e não quando estão totalmente desorganizadas e inorgânicas, sofrendo com o desânimo e falta de perspectiva dos militantes em relação ao trabalho que fazem, como é o caso em boa parte do tempo. “Acima das células”, está o Comitê Local, tão bagunçado, desnorteado e sazonal quanto às bases – não pela incompetência dos seus membros, mas pela própria lógica e concepção de partido e movimento que vigoram até então. O resultado não poderia ser outro senão a repetição dos erros e abstenção de fazer um trabalho comunista. Lênin resume bem esta tendência
“O predomínio de uma atividade dispersa caminha unido espontaneamente ao predomínio da luta econômica” (As tarefas urgentes do nosso movimento. LÊNIN, 1900.)
Agora, porém, estamos fazendo uma mudança substancial no Comitê. Não vamos começar a casa pelo telhado, como diz a camarada Luan. Vamos começar pela sua estrutura, seus alicerces, por cimentar uma base firme coletivamente. Nossa prioridade é envolver a militância num trabalho comum sobre as seguintes prioridades: organizar a propaganda, a formação e a estrutura financeira do Partido, isto é, o trabalho ideológico e a infraestrutura. A distribuição prioritária dos nossos recursos, por conseguinte, se dará para as comissões político-organizativas que tangem a este trabalho, onde cada militante terá uma função específica num trabalho geral definido coletivamente, em vez de continuar escoando cada um para células dispersas onde tinham funções gerais para um trabalho específico definido arbitrariamente.
Será a partir deste trabalho ideológico de agitação, propaganda, formação e finanças que vamos participar do movimento de massas. Teremos células só nos locais de atuação estratégicos e onde identificarmos que há condições objetivas e subjetivas de travar uma disputa qualificada (do ponto de vista comunista). Obviamente, nosso trabalho ideológico (a venda dos jornais, distribuição de panfletos, atividades de propaganda, materiais nas redes sociais) será direcionado para a inserção planejada nos locais estratégicos, focando nas lideranças dos trabalhadores, sem desperdiçar tempo nos setores secundários enquanto não tivermos os prioritários. Quando se fala que o jornal (o órgão de imprensa) é um organizador coletivo não é só porque devemos esperar que o jornal físico chegue nos correios e nos organizar de acordo com isso, mas porque precisamos estruturar a atuação comunista, o trabalho interno e externo, a partir do órgão ideológico, que vai muito além da distribuição física do jornal.
Cada Comitê Local, em sua região, tem um enorme trabalho a fazer desse ponto de vista, pois cada um tem a missão primária de estruturar um canhão ideológico na sua circunscrição – o jornal físico é nada mais que a nossa munição. Isso é a única coisa que vai poder nos diferenciar enquanto Partido Comunista (claro, desde que também tenhamos uma linha política justa). E é nesse trabalho diário, no envolvimento coletivo em tarefas de redação, organização da propaganda, da distribuição da literatura, da leitura coletiva e distribuição do jornal, dos grupos de estudo, da agitação, da arrecadação financeira etc., que a militância vai poder discutir a linha política, debater a conjuntura, refinar seu conhecimento e crescer coletivamente.
Até agora, falamos em formação teórica, mas há uma distinção importante em relação ao que Engels e Lênin falam nas citações trazidas no início deste ponto. Eles falam em luta teórica no seio do movimento operário, ou seja, em fazer polêmicas públicas, embates contra figuras políticas, contra todo tipo de demagogo ou lideranças equivocadas do movimento. Esta capacidade de intervenção, de mostrar com objetividade, simplicidade e clareza os erros e os acertos teóricos de cada alternativa posta para o movimento; de romper com o cínico decoro pequeno-burguês que reina no movimento social, em que ninguém pode polemizar com ninguém, e ter a coragem e a capacidade de enterrar os traidores, empurrar os vacilantes, atrair os avançados e arrastar a massa. Esse é o nosso trabalho e a nossa missão. Mas sem formação teórica e sem um canhão ideológico, isso é impossível; seremos só mais um partido, mais uma sigla, mais um berreiro numa assembleia em que ninguém se escuta.
Hoje, apesar de até termos alguma habilidade em atividades de agitação, temos praticamente nenhuma competência em atividades de propaganda. Como já dito, temos menos de um propagandista por Comitê Local. Nossa militância sequer tem autoestima suficiente para se propor a isso. Nos contentamos em fazer boas agitações nos atos. E, assim, ficamos eternamente dependentes de alguns pouquíssimos camaradas que, na prática, têm o monopólio da propaganda do Partido. O caso do Jones Manoel é emblemático: justamente porque, pelo seu próprio mérito e genialidade, conseguiu se tornar um canhão ideológico, porque conseguiu se estruturar financeiramente em cima deste trabalho e se profissionalizar nisso, o camarada é o principal polo de atração de militantes do PCBR e, talvez, sem o seu trabalho propagandístico não teríamos nem um terço do tamanho que temos hoje. Evidentemente, esse monopólio gera grandes distorções.
O camarada é muito maior que o Partido. Ele basicamente tem liberdade para fazer o que bem entender e, ao esticar a corda, nós sempre tendemos a ceder. Por exemplo, não tenho o menor problema do camarada apresentar suas opiniões próprias sobre quaisquer assuntos, desde que não fira a unidade de ação. Este é um direito dele. Porém, o fato do camarada investir a maior parte da sua energia política e recursos materiais em um órgão de imprensa paralelo ao do Partido é uma séria violação da unidade de ação, mas que é totalmente relativizada. Ora, enquanto o nosso congresso definiu que o “jornal partidário é o trabalho publicístico mais importante no atual período”, Jones, por outro lado, acredita que a necessidade fundamental é um órgão de imprensa “de esquerda” crítica ao social-liberalismo. São dois projetos diferentes, divergentes e que rivalizam em alguma medida. E, claro, entendo perfeitamente que o camarada dependa do seu trabalho intelectual para sobreviver financeiramente, e por isso defendo que qualquer solução para este impasse considere manter o nível de renda que dê conta das demandas do camarada. Agora, garantida sua segurança financeira, em que patamar estaríamos caso o camarada Jones investisse n’O Futuro os mesmos recursos (humanos, intelectuais, financeiros etc.) que investe no Farol Brasil? Há disposição política do camarada de redirecionar seus esforços para isso (de novo, garantida sua plena segurança financeira)? Fecho esse parênteses com essa pergunta para poder retornar ao debate central.
O maior exemplo de que todo o exposto acima só é um “consenso” no âmbito abstrato (a centralidade da formação e da luta teóricas, a necessidade de uma intervenção política comunista, de profissionalização do trabalho etc.), mas está longe de ser um consenso no âmbito prático, é a nossa relação com o Movimento Estudantil e, recentemente, seu momento máximo – o Congresso Nacional da UNE. Este exemplo revela com nitidez os limites desta forma de “participar do movimento de massas” e como ele, inevitavelmente, nos leva ao oportunismo. Vejamos.
Inicialmente, é preciso dizer o óbvio: o Movimento Estudantil não é um setor estratégico nem prioritário, a despeito de sua importância na luta de classes na América Latina, sempre atuando como força auxiliar do movimento operário e muitas vezes servindo como catalisador de suas lutas. Por princípio, se este não é um setor prioritário e se não temos o mínimo trabalho nos setores considerados prioritários, ou ainda pior, não temos sequer bem consolidada a estrutura mínima para realizar este trabalho, logicamente, devemos direcionar todos os recursos (humanos, financeiros etc.) que temos, independentemente de onde venham, para este trabalho primordial. Porém, não é o que acontece.
Claro, é um fato inegável que a “massa” de militantes do PCBR está circunscrita nas universidades, o que, por consequência, cria uma particularidade para o nosso Partido: fora das universidades e do Movimento Estudantil, não existimos; nossa já ínfima relevância política tende, aparentemente, a se tornar nula. Creio que isso assusta alguns camaradas ao ponto de abrirem mão inclusive dos princípios que defendem. Em resposta, formulam a seguinte tese: é claro que o Movimento Estudantil não é prioritário, mas também não vamos abrir mão de construir o movimento de massas onde já estamos inseridos. Na prática, assim como os “economicistas” criticados por Lênin, dizem: “a luta que é desejável é aquela que é possível, e é possível a luta que se trava nesse momento” (LÊNIN, 1902). Ora, camaradas, se o PCBR é pouco mais que a UJC, se herdamos pouco mais do que a inserção no movimento universitário e se a nossa prioridade é “participar do movimento de massas” a qualquer custo, qual é o inevitável resultado quando não redirecionamos para os setores prioritários os já parcos recursos que possuímos? Qual o resultado inevitável quando não se abre mão de construir o trabalho onde já estamos para construir onde não estamos? Há algum outro resultado possível senão um eterno descompasso entre a inserção no Movimento Estudantil em relação a todos os demais trabalhos? O que é isso se não subordinar o Partido ao seu desenvolvimento espontâneo? Algo que pareceria óbvio, ao fim, encontra obstáculo na demagogia de nossos “leninistas” que cada vez mais se revelam defensores do espontaneísmo. Chegamos ao ponto do ridículo que é necessário dizer: é preciso priorizar a prioridade, camaradas!
Mas tudo que está ruim pode piorar. Se, pelo menos, o trabalho que desenvolvemos no Movimento Estudantil tivesse um caráter diferenciado, se fosse uma experiência superior, um exemplo a ser seguido nos demais setores, se fosse uma demonstração do que entendemos por “hegemonia proletária”, talvez (sendo muito generoso) valesse a pena investir nele como nossa tarefa prioritária. Neste caso, os camaradas deveriam ser mais claros sobre suas ideias e defender abertamente: acreditamos que o Partido será construído a partir do Movimento Estudantil, este é o setor prioritário, esta é a tarefa central. Mas não. Os camaradas dizem não acreditar nisso. Mas, mesmo que não acreditem teoricamente, na prática, de forma paradoxal, estes mesmos camaradas acham razoável aprovar um orçamento obsceno (!!!) e endividar o Partido para participar do Conune. O retorno deste investimento é pouco mais que alguns bons vídeos nas redes sociais, uma maior integração entre a militância que aproveita o momento de encontro para socializar e consolidar um sentimento de pertença, a participação em uma ou outra mesa de discussão e, principalmente, a eleição de um cargo e meio, a ser negociado por cima, nas reuniões de cúpula, para dividir um mandato com outras organizações oportunistas e não ter nenhuma relevância política efetiva na condução da entidade.
Ainda que o Movimento Estudantil seja o setor em que mais acumulamos experiências e mais detalhadamente tenhamos elaborado um programa – o da Universidade Popular –, ainda que tenhamos voltado a disputar a UNE há 8 anos e tenhamos definido que nosso objetivo é disputar a hegemonia do ME, até hoje ninguém consegue responder à simples questão: como vamos ganhar a UNE nos seus atuais moldes? O informe do Comitê Central sobre o resultado das eleições do 60º Conune resume bem como nossos ideólogos do Movimento Estudantil respondem: com cinismo político. “Olhem como avançamos, camaradas! A Oposição de Esquerda como um todo aumentou 100 delegados em relação ao último Conune, enquanto a majoritária aumentou 1.000! Claro, eles só cresceram por causa das universidades à distância (como quem diz: “então, desconsiderem os números!”). Dito isso, continuamos na luta por uma universidade popular e pelo socialismo, enquanto vamos negociar com as direções da Oposição de Esquerda para saborear pelo menos alguns poucos meses na direção executiva!”
Se tirarmos o cinismo dos que comemoram derrotas como se fossem vitórias, nos resta a óbvia constatação de que para se levar a sério a ideia de disputar UNE, temos uma única opção: jogar o jogo das fraudes, dos delegados fantasmas, das negociatas, fazer vista grossa quando identificarmos eleições duvidosas para que não percamos delegados noutro lugar do país e buscar eleger o maior número de delegados independentemente da qualidade do trabalho político. Sim, camaradas, esta é a única opção caso queiramos dirigir a UNE, porque pouco importa o quanto choramingamos sobre a majoritária crescer com as universidades à distância e com fraudes: no final do dia (ou melhor, na plenária final), é isso o que define a direção da entidade. E aí, qual é o nosso plano real para dirigir a entidade? É preciso falar em alto e bom som qual é a nossa tática, camaradas! Se a ideia é sermos eternamente uma pequena oposição que negocia migalhas de cargos, talvez para um dia exercer certa influência num setor mais avançado do movimento que nos possibilite rachá-lo para criar uma nova entidade; ou se é jogar o jogo das fraudes para um dia chegar no páreo da verdadeira disputa da direção da entidade.
A verdade é que, até hoje, na nossa medíocre confusão ideológica, sem uma definição clara, fazemos um pouco dos dois, pendendo mais para jogar o jogo (que é pra onde a lógica do movimento nos empurra espontaneamente) do que para construir conscientemente uma oposição com vistas a fundar uma nova entidade (na verdade, ninguém considera fazer isso de fato, só desdenham sem nem estudar a experiência da ANEL). Na ânsia de ter relevância social, de “se inserir no movimento de massas” independentemente da qualidade e do tipo de trabalho e, pior, contrariando as nossas prioridades, estabelecemos metas irreais de delegados e de arrecadação financeira, tentamos buscá-los a todo custo, nos lançamos para o trabalho no ME tendo como única diferenciação em relação aos governistas o fato de... não sermos governistas! Nos contentamos em denunciar o Arcabouço Fiscal, apesar de não sabermos agitar, nem propagandear o papel do Movimento Estudantil para a revolução socialista no Brasil; nos orgulhamos por fazer a luta política no movimento, mesmo sem ser a política revolucionária. Assim, justifica-se o investimento de energia militante, recursos financeiros e humanos absolutamente desproporcionais num setor secundário, quantia que jamais foi sequer considerada ser investida num setor prioritário, e muito menos na estrutura básica da organização. E ainda há aqueles que querem dizer que não priorizamos o ME a nível nacional.
O que é preciso fazer para merecermos o nosso nome?
Camaradas... Nós somos um partido pequeno, com pouquíssimos recursos, que sobrevive do auto sacrifício de um punhado de camaradas que dão tudo de si para tentar manejar as ferramentas enferrujadas que insistimos em utilizar. Apesar de termos avançado em diversos aspectos em relação ao PCB unificado, ainda padecemos de uma profunda desagregação ideológica e, consequentemente, somos incapazes de alcançar uma orgânica unidade de ação. Os bem intencionados trabalhos políticos que desenvolvemos, por melhor que cheguem a ser, ainda são incapazes de combinar a luta econômica com a política revolucionária, ainda prescindem da luta teórica-ideológica, porque, em geral, somos despreparados para isso. Se ainda é certo que vivemos a quarta etapa da Reconstrução Revolucionária, marcada pela proletarização e massificação do Partido, então, primeiramente, é preciso direcionar toda nossa energia para superar a desunião ideológica, estabelecer como tarefa central dos Comitês Locais transformarem-se em “canhões ideológicos”, envolvendo toda militância na forja e na manutenção exemplar desta arma para, por meio dela, redirecionar todos nossos recursos à inserção estrita nos setores estratégicos.
Se nossos recursos são escassos, então, mais do que nunca, é preciso tratar as prioridades com rigor. É preciso ter claro que investir num setor significa, necessariamente, desinvestir noutro. Se investimos e nos endividamos com mais de R$ 200 mil em um congresso de estudantes fraudado, significa que este dinheiro não está sendo investido na construção do nosso canhão ideológico, não está servindo para criar um grupo de militantes profissionais plenamente dedicados ao trabalho revolucionário, duas prioridades sem cujo investimento é difícil levar a sério um partido que se autoproclama comunista e revolucionário. É preciso abandonar a tese de que “vamos construindo onde já estamos” e se despir do medo de redirecionar nossas forças para construir o trabalho que realmente acreditamos ser a prioridade.
Dedicar total energia para a construção de um aparelho ideológico de agitação e propaganda – o centro do nosso trabalho prático –, edificar a estrutura financeira e profissionalizar um grupo dirigente. Eis as nossas tarefas imediatas e indispensáveis. Na construção desta estrutura reside nosso trabalho fundamental. É só por meio desta construção e a partir dela que podemos falar em ir às massas para fazer um trabalho comunista. Só com a audácia de pôr isso em prática que poderemos transformar a presunção da decisão do XVII Congresso em motivo de orgulho. Só a partir do sucesso desta tarefa fundamental é que, talvez, mereceremos o nome de PCB Revolucionário.
“É necessário preparar pessoas que não dediquem à revolução só as tardes livres, mas toda a sua vida; preparar uma organização tão numerosa, que possa aplicar uma rigorosa divisão do trabalho nos diferentes aspectos da nossa atividade.” (Tarefas urgentes do nosso movimento. LÊNIN, 1900.)
“Por ‘homens inteligentes’ em matéria de organização deve-se entender, como o indiquei em várias ocasiões, apenas os revolucionários profissionais, quer sejam estudantes ou operários Pois bem, eu afirmo: 1) que não pode haver movimento revolucionário sólido sem uma organização estável de dirigentes, que assegure a continuidade; 2) que quanto mais extensa for a massa espontaneamente integrada na luta, massa que constitui a base do movimento e que nele participa, mais premente será a necessidade de semelhante organização e mais sólida deverá ela ser (já que será mais fácil aos demagogos de toda a espécie arrastar as camadas atrasadas da massa); 3) que tal organização deve ser formada, fundamentalmente, por pessoas entregues profissionalmente às atividades revolucionárias; 4) que num país autocrático, quanto mais restringirmos o contingente dos membros de uma organização deste tipo, a ponto de não incluir nela senão os filiados que se ocupem profissionalmente de atividades revolucionárias e que tenham já uma preparação profissional na arte de lutar contra a polícia política, mais difícil será “caçar” esta organização, e; 5) maior será o número de pessoas, tanto da classe operária como das demais classes da sociedade, que poderão participar no movimento e colaborar ativamente nele.” (Que Fazer?, LÊNIN, 1902.)
[1] Por “social-democrata” nos referimos aos partidos reformistas, que defendem que a única luta possível é aquela por melhores condições dentro da escravidão capitalista. Noutro contexto, quando Lênin se refere à social-democracia, quer dizer “comunista”.