Paschoalotto, Confiança e Tauste na dianteira da exploração no interior de SP
“Fiquei só por um tempo porque não tinha outra opção e precisava pagar as contas. Estudava à noite, passava praticamente 2h no transporte público e recebia um salário mínimo, que é pouco. Era comer, dormir, trabalhar e fazer tudo de novo. Isso não é vida.”

Por Redação
No final do ano passado, mobilizações pelo fim da jornada de trabalho 6x1 eclodiram em todo o país. Junto delas, eclodiram também relatos de trabalhadores submetidos a jornadas ainda mais extenuantes, que chegam a ultrapassar dez dias de trabalho para um de descanso – como escancarou o caso da rede de supermercados gaúcha Zaffari –, além de salários miseráveis e humilhações.
O comércio varejista e as empresas de telemarketing são alguns dos setores em que a exploração do trabalho atingiu seus níveis mais brutais. Eles se alimentam do empobrecimento, da falta de perspectiva no mercado de trabalho e da ameaça de desemprego, lucrando bilhões às custas do desespero, adoecimento e desamparo das pessoas. Não à toa, algumas das parcelas mais precarizadas da classe trabalhadora – jovens pobres em seu primeiro emprego e pessoas negras – são aquelas que compõem a maior parte dos contratados dessas empresas.
No interior de São Paulo, três empresas são algumas das que se destacam: as redes de hipermercados Confiança e Tauste, que estão entre as maiores redes supermercadistas do país, segundo ranking da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), e a empresa de telemarketing e serviços financeiros Paschoalotto. Segundo dados do EconoData, o Grupo Confiança, de Jad Zogheib, conta com 15 lojas nas cidades de Bauru, Marília, Pederneiras, Jaú, Botucatu e Sorocaba, e um faturamento anual que ultrapassa R$2,5 bilhões; o Tauste, presente nas cidades de Bauru, Marília, Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e Jundiaí, conta com mais de 5 mil funcionários e um faturamento anual que também chega à cifra dos R$2,5 bilhões; já a Paschoalotto, presente nas cidades de Marília, Bauru, Agudos e Ribeirão Preto, conta com quase 20 mil funcionários e lucros exorbitantes.
Funcionários e ex-funcionários em Marília e Bauru relatam a exploração do trabalho
“A Paschoalotto tem um sistema ‘meritocrático' que incentiva a competição constante entre os operadores. Essa lógica é reforçada por toda a liderança (supervisores, gerentes e heads), e cria um ambiente de trabalho hostil onde os colegas se tornam rivais. Enquanto os trabalhadores se digladiam por bonificações miseráveis, a empresa continua lucrando sem parar, e alimenta um ciclo de rivalidade e desgaste que só beneficia ela própria”, comenta um operador da Paschoalotto de Bauru que prefere não ser identificado. “Em dezembro eu bati mais de 113% da meta e minha bonificação foi um KitKat”, finaliza.
Márcio, professor da rede pública e ex-operador da Paschoalotto em Marília, relata que a empresa lucra com a vulnerabilidade das pessoas. "A Paschoalotto faz propaganda de que é progressista e humanizada, e se gaba de empregar mulheres, pessoas negras e pessoas LGBTs. Na verdade, ela só se aproveita da mão de obra barata de pessoas que estão muito vulneráveis". Também comenta sobre o caráter do trabalho, e de como adoeceu vivenciando o sofrimento cotidiano de outros trabalhadores. “Como eu trabalhava no SAC, recebia muita ligação a respeito de contas bloqueadas em bancos online. Em muitos casos, isso acontecia por apostas em plataformas de Bets, como o jogo do tigrinho.
Ou seja, a pessoa recebia seu dinheirinho suado do mês, acabava apostando tudo no jogo, e quando ganhava alguma coisinha e colocava no banco, isso era identificado como fraude. A conta então era bloqueada e logo entrava em processo de exclusão. A pessoa perdia todo o dinheiro. Tinha mãe de criança pequena que ligava chorando pro SAC. Eu, enquanto trabalhador, me sentia muito mal de ver outros trabalhadores passando por isso. Enquanto isso, essas empresas seguem lucrando”. Por fim, comenta sobre a exaustão. “Fiquei só dois meses lá dentro. Foi insuportável”.
Um assistente de vendas do Tauste de Marília e, que prefere não ser identificado, comenta sobre a escala de trabalho no hipermercado. “O Tauste não abre folga fixa pra ninguém de sábado, e todos os assistentes de venda precisam trabalhar dois domingos pra folgar um só. Na semana que vai folgar o domingo, você entra quarenta minutos antes a semana inteira, como forma de ‘pagar’ o domingo que não vai trabalhar. Dessa forma, na semana que não se trabalha o domingo, a gente entra 12h20 pra sair 23h30, por exemplo, às vezes até mais tarde. Já o operador de caixa recebe as horas extras somente a cada seis meses trabalhados, ou seja, em banco de horas. Só que quando o funcionário tem muitas horas extras e tá perto de receber o dinheiro, os gerentes começam a dar dias de folga para que as horas diminuam e não seja necessário pagar o valor das horas em a ver.”
Por fim, relata a falta de perspectivas e a exaustão. “A escala 6x1 é totalmente exaustiva e desestimulante, principalmente pra quem usa o transporte público. Quem trabalha em mercado não tem vida social e facilmente não tem motivação pra tentar sair ou fazer outra coisa. Sair 23h30 num sábado pra chegar em casa quase 00h30, tomar um banho, jantar, e, no meu caso, fazer as coisas da faculdade… quando ver já são 03/04h da manhã e você precisa entrar poucas horas depois. Isso tira o ânimo pra tentar mudar de vida e muitas vezes a gente só aceita, num loop infinito”.
Júlia, ex-funcionária do Confiança de Bauru, relata situações semelhantes. “Eu me sentia muito desestimulada com a rotina lá. Fiquei só por um tempo porque não tinha outra opção e precisava pagar as contas. Estudava à noite, passava praticamente 2h no transporte público e recebia um salário mínimo, que é pouco. Era comer, dormir, trabalhar e fazer tudo de novo. Isso não é vida”.
Profissionais de saúde denunciam escalada de adoecimento
Profissionais de saúde também denunciam a escalada de adoecimento físico e psíquico desses trabalhadores, cujo direito ao descanso, ao lazer, ao estudo, à cultura e ao tempo da própria vida tem sido arrancados. Ideação suicida, crises de pânico, crises de ansiedade e depressão são queixas comuns nos consultórios da atenção primária e dos pronto-atendimentos.
Ana Paula, enfermeira residente na Rede de Atenção Psicossocial de Marília (RAPS), comenta algumas de suas experiências. “Desde a graduação, atendi muitas pessoas que trabalhavam na escala 6x1, e, coincidentemente, muitos deles eram funcionárias da Paschoalotto. Era a primeira empresa que a gente pensava quando chegava alguém adoecido, tanto física quanto mentalmente. Os funcionários reclamavam muito da cobrança excessiva e do pouco tempo de descanso entre os turnos, e quando a gente tentava encontrar alguma alternativa de cuidado, esbarrávamos na falta de tempo dessas pessoas. A maioria trabalha a semana inteira, aí quando chega domingo só quer dormir… não consegue cuidar da casa, desenvolver laços sociais ou cuidar da própria saúde. Para as mulheres, isso era ainda pior, porque precisam chegar em casa e realizar outras tarefas”.
Por fim, a profissional comenta sobre a relação entre o abuso de substâncias psicoativas e a precarização do trabalho. “Quando trabalhei no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), atendi muitos pacientes que trabalhavam em jornadas extenuantes e que faziam uso abusivo de substâncias. As pessoas usam pra aliviar o cansaço e até pra aumentar a produtividade. E eles têm muito medo de procurar ajuda, porque se sentem abandonados e têm medo de serem despedidos, o que agrava ainda mais a situação”.
João, estudante de medicina e estagiário da Atenção Primária, relata o adoecimento desses trabalhadores precarizados e a sobrecarga dos profissionais de saúde. “A grande maioria das UBSs é gerida pelas Organizações Sociais de Saúde, que cobram metas absurdas de produtividade dos profissionais. Onde estagiei, exigiam menos de 15 minutos por paciente, o que frequentemente resultava em consultas muito superficiais. Um dia, atendi uma trabalhadora de telemarketing, mãe solo, com ideação suicida. Conversando com ela, entendi que muito desse sofrimento era fruto de uma rotina completamente desgastante e da falta de perspectivas. A consulta acabou durando 40 minutos, pela complexidade do caso. Logo depois, fui repreendido pela gerência pela demora”.
Por fim, constata a limitação dos profissionais de saúde no SUS, que é regido pela lógica privatista das Organizações Sociais de Saúde (OSSs). “A nossa atuação é super limitada e a gente não consegue fazer um cuidado longitudinal. As alternativas são quais? Encaminhar pra terapia? Beleza. Só que a fila na região em que trabalhei tinha mais de trezentas pessoas. A gente coloca na fila, claro. Mas essa paciente consegue esperar até quando? E mais, a terapia infelizmente não vai conseguir resolver a maioria dos problemas dessa mulher, e da maioria dos trabalhadores precarizados como ela, que é falta de dinheiro, de tempo, de lazer, de descanso, de perspectivas. Por isso, na maioria das vezes, os profissionais só orientam o básico, colocam na fila da terapia, passam um antidepressivo e mandam pra casa”.
A organização dos trabalhadores e o avanço das lutas pela redução da jornada de trabalho
A luta pela redução da jornada de trabalho é antiga, e desde seus primeiros marcos, no início do século XX, foi submetida ao mesmo discurso falacioso que hoje é direcionado à luta pelo fim da escala 6x1: o de que a economia iria colapsar com a redução da jornada de trabalho. Além de mentiroso, já que os lucros das grandes empresas atingem marcas exorbitantes ano após ano - mesmo nos países onde houve redução da jornada -, esse falso argumento omite uma questão central: que “economia” é essa que jamais considera os interesses dos trabalhadores?
É momento de construir uma ofensiva dos trabalhadores. Denunciar a profunda exploração do trabalho e recolocar a luta pela redução da jornada de trabalho na ordem do dia é tarefa central no próximo período. E as mobilizações em torno dessa pauta provam que as conquistas são concretamente possíveis: recentemente, trabalhadores da PepsiCo em Itaquera e Sorocaba, após realização de greve, conseguiram assegurar pelo menos um sábado de descanso por mês. No Rio Grande do Sul, uma série de denúncias faz avançar a pressão pública contra a rede de Supermercados Zaffari.
Mobilizações pelo fim da escala 6x1 e pela defesa da escala 4x3, com jornada de 30h semanais, sem redução salarial, têm avançado em todo o país, denunciando, por um lado, o acúmulo de contradições na dinâmica capitalista e, por outro, a incapacidade de governos neoliberais de respondê-las.