'Partido: superestrutura, Leviatã ou práxis?' (Zenem Sanchez)

O fetiche pelo Partido se expressa quando os militantes enxergam tal instrumento como algo alheio a sua práxis. O Partido deixa de ser a reunião, organização e ação de revolucionários com a finalidade de organizar a classe para a tomada do poder político. Passa a ser um objeto do sagrado.

'Partido: superestrutura, Leviatã ou práxis?' (Zenem Sanchez)
"Lenin sabia a importância da política para a transformação, até por isso afirmou que nos momentos de crise revolucionária ela é decisiva. Ou compreendemos a superestrutura e a estrutura como duas faces de uma mesma unidade dialética, ou cairemos no economicismo."

Por Zenem Sanchez para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Da mesma forma que em alguns reina o fetiche pela Religião, em outros pelo Estado, em uma parcela considerável de comunistas reina o fetiche pelo Partido. Esse fetiche é uma visão mística, um véu de feitiço, que borra a visão dos militantes, fazendo com o que os mesmos vejam a criação como o criador, o fruto de um processo de trabalho coletivo como uma entidade mitológica com vida própria.

Já divaguei sobre o mesmo assunto no escrito "O Partido não é um Leviatã”. Evitarei ser repetitivo, mas vejo a necessidade de escrever mais alguns parágrafos sobre essa questão. Primeiro, porque entendo que ela é fundamental para compreendermos o fenômeno do pecebismo e, segundo, pois ela talvez seja uma arena de disputa dentro da Reconstrução Revolucionária. Como consideração inicial, saliento que utilizarei o termo Partido no presente texto me referindo mais especificamente ao Partido Comunista.

O fetiche pelo Partido se expressa quando os militantes enxergam tal instrumento como algo alheio a sua práxis. O Partido deixa de ser a reunião, organização e ação de revolucionários com a finalidade de organizar a classe para a tomada do poder político. Passa a ser um objeto do sagrado de adoração: o indestrutível, o gigantesco, o incriticável, o sujeito. Ao invés de ser compreendido pelas relações reais que se estabelecem entre os militantes, suas condições de vida, suas práticas e intencionalidades e a socialização e o contexto histórico em que estão inseridos, o Partido é compreendido através de ideias e de fraseologias fantasiosas. Podemos estar a milhares de passos atrás dos desafios da conjuntura, mas está tudo bem, “porque somos o indestrutível Partidão”.

Como é possível termos aceitado docilmente por tanto tempo uma direção composta por incompetentes, assediadores, racistas, pedófilos, elitistas e oportunistas? As sabotagens e golpes realizados por essa direção para manter-se no “poder” e propagar seu centrismo e sua lógica de grupismo. Estávamos mais ou menos conscientes dessa situação, em diversas oportunidades lutamos contra esses problemas e fomos coibidos das mais diferentes formas. Por que demoramos tanto tempo para nos revoltarmos? Por que observamos diversos dos nossos caindo em meio a essa aberração que vivíamos sem conseguir tomar ações efetivas? Um dos motivos fundamentais é porque nutríamos uma esperança e uma fé religiosa no Partido. Essa religiosidade desintegrou-se. Entendemos o PCB pelo que ele realmente era, não pelo que queríamos que ele fosse. Nutrimos uma imensa vergonha e revolta que nos empurrou para superar o feitiço pecebista e seus formalismos[1].

A partir daí, ficaram nítidas as diferenças. Enquanto debatemos a conjuntura internacional, eles nos chamam de sectários financiados pelo KKE. Agitamos sobre a luta de classes brasileira e a necessidade de construir uma oposição firme ao programa neoliberal aplicado pelo governo Lula; eles nos chamam de sectários e trotskistas. Discutimos os problemas e amadorismos da organização; eles falam de conspiração fracionista. Reivindicamos a reconstrução revolucionária como forma de reconstruir um instrumento capaz de disputar os rumos da sociedade; eles reivindicam a defesa do Partido — o que no fim significa a conservação do estado de coisas. De um lado, reuniram-se militantes comprometidos com a práxis revolucionária, de outro, isolaram-se elementos de uma seita religiosa que tem como deus o Partidão.

Um dos grandes lemas do movimento pela Reconstrução Revolucionária foi “O Partido somos nós”. O Partido não é um Leviatã Vermelho do qual precisamos nos subordinar como súditos na esperança religiosa de uma revolução fantasiosa, muito menos uma entidade centenária, invencível, essencialmente revolucionária e universal.  O Partido somo nós, militantes reais, que se organizam e se relacionam, que vivem, trabalham, sofrem e se revoltam.  Buscamos discutir os problemas e formular planos. Olhamos para a história e tentamos aprender as lições para o presente. Discutimos nossas limitações de forma sincera e disputamos os rumos da organização. Unidos pelo mesmo horizonte estratégico. Não precisamos de uma sigla específica, nem de títulos e muito menos de uma entidade mística. É a reunião e organização dos militantes diante de um horizonte estratégico revolucionário que forma o Partido.

Recebi com alegria o diálogo do camarada Nícolas CF comigo em sua tribuna “O partido é um Leviatã”. É com a mesma alegria que venho expressar minhas discordâncias de seu texto.  Nícolas busca refletir sobre as concepções de poder para os comunistas, afirmando a tese de que o Partido é um Leviatã. O argumento principal é: existem disputas irreconciliáveis que podem colocar em risco o Partido e a Revolução e, nesses casos, seria necessário um Leviatã Vermelho que atua como um mecanismo centralizador que coloca fim nas disputas.

O primeiro problema é o nível de abstração de Nícolas. Seu argumento fundamental é pouco desenvolvido. Quais são as disputas irreconciliáveis? E os critérios para defini-las? Por que  e de que forma devem ser finalizadas? Qual a diferença entre proteger o partido e disputá-lo? Como o Leviatã Vermelho aparece nas relações de poder da organização? Sem essas respostas, o argumento mostra-se uma fraseologia perigosa. Foi utilizada por oportunistas para as mais diversas razões, como justificar a submissão da militância à sua linha política. Mediante o silenciamento das críticas em nome do “trabalho prático”, a direção oportunista pecebista operou sua manutenção no comando.

O segundo problema é que, enquanto eu, a partir de uma negação, busquei afirmar o que é o Partido, o camarada Nicolas, a partir da afirmação que o Partido é um Leviatã, não desenvolveu o que isso significa para além do argumento principal. Ele expôs outros instrumentos de argumentação — os dois espantalhos que funcionam como tipos ideais de militantes, o cínico e o inocente. Os mesmos são interessantes para refletir sobre nossas instâncias, o papel de direção, entre outros, mas não caminham no sentido da defesa da tese levantada.

Para tornar mais claro o que entendo por Leviatã, gostaria de retomar a concepção hobbesiana. Presumo que nem todos estão inteirados desse tema e fui muito sintético no meu primeiro artigo.

Hobbes é um contratualista que imagina que os seres humanos viviam sem poder e sem organização, os quais teriam surgido somente após um contrato que estabeleceu uma subordinação política. A sociedade só surge com esse contrato, com a subordinação dos seres humanos a um soberano, o Leviatã — o Estado.

Para sustentar tal tese, Hobbes busca refletir sobre o estado de natureza. Ao contrário do que alguns imaginam,  esse estado está mais relacionado com a natureza humana do que com uma situação “selvagem”. A partir de uma noção individualista e de uma sacralização do direito a propriedade, Hobbes desenha os seres humanos como distantes e misteriosos. Eu não sei o que o outro pensa e quer e ele não sabe o que eu penso e quero. Por isso, dentro de um “cálculo” racional, seria razoável ataca-lo para evitar ser atacado. Assim está fundada a guerra de todos contra todos.

A condição de guerra empurra os seres humanos a racionalmente perceber que o estado de natureza é inviável por todos terem direitos a todas as coisas, inexistindo a propriedade. Ou seja, a causa do problema é a liberdade. A saída é que os seres humanos renunciem-na diante de um Estado, o qual se torna um soberano munido de poder absoluto — enquanto os subordinados são os súditos. Mas e se a maioria escolher um soberano e uma minoria discordar? Para Hobbes, os discordantes devem passar a consentir ou devem ser destruídos em nome da paz. O Levitã não é o problema, ele não aterroriza; o problema e o terror é a liberdade irrestrita.

O que significa, então, afirmar que o Partido é um Leviatã? Significa, fundamentalmente, que o Partido é uma espécie de soberano com poderes absolutos a qual nos subordinamos em nome de evitar uma condição específica (estado de natureza, guerra de todos contra todos). Camarada Nicolas, seria esse estado de natureza a barbárie capitalista ou as disputas irreconciliáveis?

Outra pergunta a se fazer é: o que renunciamos quando nos subordinamos ao Leviatã Vermelho? Renunciamos nossas liberdades individuais semelhante a tese hobbesiana?  Essa é uma visão muito estreita. Primeiro, porque nos organizamos em uma coletividade política comunista exatamente pela condição de ausência de liberdade. Segundo, porque nos organizar nos torna mais livres. Sozinhos, atomizados, somos impotentes na ilusão individualista. Passamos a fazer parte da luta e temos contato com a possibilidade de falar e ser ouvido, de refletir sobre experiências compartilhadas, de definir objetivos conjuntos e de exercer um poder que a forma indivíduo é incapaz.

Não nos associamos a um Partido para evitar uma condição específica. Ela permanece (a vida sob a lógica do capital), porém, a partir da coletividade podemos começar a criar brechas  e fundar um novo tipo de poder. Não queremos defender nossa propriedade. Estamos desprovidos dela e queremos socializa-la.

Sei que o camarada Nicolas não acredita que o Partido tenha poderes absolutos. Mas por isso o camarada deveria concluir que ele não é um Leviatã. Não nos subordinamos a um soberano nos termos hobbesianos. O Leviatã não tem poderes absolutos mesmo diante de disputas irreconciliáveis. Talvez os pecebistas se entendam como súditos de um Leviatã, visto que aceitam as mais temerárias situações e decisões de suas direções sem uma séria demonstração de revolta. Temem sua condição sem o Partido, da mesma forma que um crente teme a deus. Não podem criticar, discutir como avançar, debater sobre como as direções estão levando o partido ao centrismo, levar as últimas consequências as denúncias de assédio de dirigentes… porque senão o Partido sairia enfraquecido, exposto diante de seus inimigos, vulnerável, divido. Então, quando nos rebelamos e fazemos o que os pecebistas não podem fazer, eles saem em defesa do Partido e nos enxergam enquanto inimigos.

Logicamente, o Partido não é uma mera soma de militantes. Essa reunião de militantes em um instrumento cria algo de uma nova qualidade, uma coletividade política, a qual também se relaciona enquanto totalidade com o conjunto da militância. Mas essa coletividade não pode ser entendida como um fato social durkheimiano, um Leviatã hobbesiano ou só como uma superestrutura.

“Pouco me importa discutir se o partido está dentro ou fora da classe trabalhadora, se é ‘externo’ ou ‘interno’. Ele é uma superestrutura, e como toda superestrutura, não faz parte da estrutura.” Enquanto um conceito de um momento específico do processo de conhecimento do real, o camarada Nicolas está correto de afirmar que o Partido é uma superestrutura. Mas isso não permite conhecer esse objeto em sua totalidade, porque de modo algum ele é só isso. É, enquanto expressão política das contradições de classe. Porém, também é a própria contradição. Determina e é determinado pela luta de classes. Em nosso tempo histórico o mesmo só pode existir a partir da existência do antagonismo no terreno econômico. Mas ele é a existência da luta, pois é a disputa pelo poder entre as classes e suas camadas. A batalha não é só econômica, mesmo que a estrutura delimite-a. Lenin sabia a importância da política para a transformação, até por isso afirmou que nos momentos de crise revolucionária ela é decisiva. Ou compreendemos a superestrutura e a estrutura como duas faces de uma mesma unidade dialética, ou cairemos no economicismo.

Faz-se necessário pensar o Partido nas suas múltiplas faces. Superestrutura, Estado Maior da revolução, instrumento do proletariado e organização de vanguarda. Memória histórica dos explorados e oprimidos, construtor da hegemonia proletária, reformador da consciência e educador coletivo. É a expressão da práxis dos militantes em uma coletividade política intervindo na sociedade.

A partir de todo esse raciocínio, podemos retomar a questão das disputas irreconciliáveis. Não existe um soberano que as determina. A lógica hobbesiana de concessão da liberdade individual para um Leviatã através de um acordo é irreal na sociedade de classes. Na história, ele nunca surgiu para proteger seus súditos do estado de natureza, pelo contrário, aparece como aparato de dominação de uma classe sobre a outra. O responsável por garantir a reprodução do modo de produção e das relações jurídicas vigentes. Diante das disputas, mesmo as irreconciliáveis, ele não tem poder absoluto de resolvê-las.

Seria o soberano, para Nicolas, a maioria dos militantes? Ele afirma que “quando uma disputa se torna irreconciliável ou põe em risco a sobrevivência do partido ou da própria revolução, é sim necessário o Leviatã vermelho impor ordem através da hegemonia, especialmente da censura e da violência, apaziguando os ânimos e salvaguardando o partido e a revolução.” Então o Leviatã é a maior parte dos militantes — os que devem proteger o Partido. O contrato formador do Leviatã seria “a primazia das decisões coletivas sobre as posições individuais” e tudo ele pode para se proteger. O camarada acharia legítimo os métodos de silenciamento utilizados pelo PCP de Cunhal para operar uma política centrista com o consenso da maioria? Aposto que não. Então a legitimidade da direção do Partido Comunista não está só nessa primazia, mas também no seu alinhamento com o horizonte estratégico revolucionário, na liberdade de crítica — desde que não atrapalhe a unidade de ação e discorde dos nossos princípios, nos métodos legítimos para a luta interna, entre outros.

Na visão dos pecebistas, é legítima a expulsão para salvaguardar o PCB da disputa da ala esquerda. Ela era fracionista e foi derrotada no XVI. Não importa que a maioria defenda a reconstrução revolucionária e o CC opere uma política pró-imperialista e centrista.

Para nós, isso não é legítimo. Somos outra coisa. Fundamentalmente, o Partido  Comunista é uma coletividade política que surge e se mantém da união, organização, reflexão, teorização e ação entre elementos revolucionários. Esses elementos, guiados por uma teoria social, buscam formular um programa e intervir na realidade social histórica com o objetivo de tornar o proletariado em sujeito revolucionário e liderá-lo  na conquista do poder político em aliança com as demais classes dominadas. A conquista do poder político visa construir o socialismo-comunismo, isto é, uma transição socialista (ditadura/democracia do proletariado) no sentido de alcançar uma sociedade prospera e sem classes sociais e opressões.

Sem os elementos anteriores, mesmo com primazia da maioria sobre a minoria, não pode existir Partido Comunista. Mas não para por aí: como os militantes revolucionários, seus diálogos e disputas são atravessados pela luta de classes e pela socialização burguesa ocidental, eles devem construir princípios para guiar seu processo de organização, discussão, decisão e ação. A primazia é um desses princípios, contanto que não contrarie os outros já elencados.

Não conseguiremos enxergar o que são as disputas irreconciliáveis a partir de subjetivismos, fraseologias e esteriótipos, mas sim através da práxis revolucionária coletiva. Será insuficiente recortar citações de Lenin para entendermos essas disputas. É necessário ler o  real a partir de Lenin. Introduzir-se no processo da consciência desse grande revolucionário que está sempre buscando pensar concretamente o movimento contraditório do real. Pensarmos as possibilidades de intervenção para a transformação desse real em cada momento.

Sem essa compreensão coletiva, não se edifica uma práxis revolucionária à altura de nosso desafio. Não podemos esquecer que nossa tarefa não se trata só de conduzir a classe à tomada do poder, mas de intervir para a constituição de um movimento revolucionário de massas capaz de superar a lógica do capital e fundar uma nova sociedade. Um Leviatã Vermelho é incapaz de cumprir isso. Nosso sucesso depende do proletariado enfrentar, de forma consciente, as tarefas das exigências — tornar-se sujeito revolucionário do socialismo-comunismo. O vanguardismo também é incapaz de cumprir isso. A educação política que devemos edificar precisa elevar os explorados e oprimidos de meros personagens de uma tragédia, inocentes, desacreditados e derrotistas, para importantes dramaturgos de suas próprias histórias.


[1] Fundamental considerar também nossa própria história e amadurecimento enquanto ala esquerda, além da brecha política que foi aberta pelos camaradas perseguidos do Comitê Central, que denunciaram a manobra centrista da participação na PMAI e construíram as alamedas para rompermos os formalismos burocráticos e debatermos sinceramente os rumos da nossa militância comunista.