Partido Comunista: reforma ou revolução?
O Partido Comunista Chileno cria ilusões da possibilidade de uma evolução gradual e por etapas, não põe em xeque, na luta cotidiana, o regime capitalista que é a condição de existência de outras formas de exploração, especialmente a imperialista.
por Vânia Bambirra
Publicado em Punto Final, 11 de novembro de 1969, Santiago, Chile. [*]
Traduzido a partir de Memorial-Arquivo Vânia Bambirra
Neste artigo realizaremos uma análise do projeto do novo programa e da Convocatória ao XIV Congresso Nacional do Partido Comunista do Chile.
Nosso objetivo é colaborar com a luta ideológica que já se iniciou no seio do próprio partido, e que é necessário aprofundar devido à agudização da crise do sistema, que obrigará a esquerda chilena a repensar suas posições frente ao novo caráter que a luta de classes assumirá no país.
Os documentos mencionados, apresentados pela direção do PC chileno à sua militância e perante os quais ainda não se apresentou publicamente nenhum projeto alternativo, estão dirigidos unicamente aos pontos essenciais referentes à análise da realidade chilena.
Será conveniente, para uma melhor compreensão da linha do PCCh, começar pela sua posição frente ao movimento comunista mundial, porém as limitações deste artigo nos fazem postergar para mais adiante esta tarefa, assim como uma análise mais ampla dos fundamentos gerais do reformismo.
A crítica à linha que se apresenta nos documentos já citados pode ser sintetizada em duas grandes áreas:
I. Críticas ao método de análise, às deficiências teóricas e à estratégia e tática;
II. Outras críticas e para onde o PC conduz seu programa.
I. Críticas ao método de análise, às deficiências teóricas e à estratégia e tática
A primeira crítica, fundamental acima de tudo pois, em grande medida, é dela que as outras se deduzem, reside na incapacidade de utilizar o método e as categorias analíticas do marxismo na análise da realidade histórico-social latino-americana e chilena em particular. Tal incapacidade se revela através de confusões e equívocos manifestados em dois níveis:
a. no nível da análise teórica geral, na qual o método utilizado é empirista, as categorias analíticas foram tomadas de empréstimo da ideologia burguesa, as definições são ambíguas, etc.
b. no nível da análise específica do caráter que assumem as relações de dependência na América Latina e, particularmente, no Chile.
A nível teórico geral as deficiências se revelam primeiramente através do empirismo que caracteriza a forma de raciocínio. Ele conduz à impossibilidade de uma interpretação totalizante da realidade, restringindo, portanto, a compreensão do processo histórico, além de limitar a sua capacidade de previsão. Todo o empirismo leva, por um lado, ao espontaneísmo e, por outro, ao imediatismo (na medida em que só se percebem as alternativas já dadas do processo), incapacitando o PC para exercer uma efetiva condução revolucionária do movimento popular. As limitações dessa forma de análise, por exemplo, surgem quando, ao falar sobre a necessidade da unidade popular não apenas em função das eleições, assinalam:
“levamos em conta as diversas frentes em que se dá a batalha, e as possibilidades de que os acontecimentos mudem de situação e levem por outras vias o processo da revolução chilena”.
Porém, quais são essas outras vias? De onde provém essa “possibilidade”? Não há contestação. E o mais grave ainda, reconhecendo que há “possibilidade” de outras vias, o partido não se prepara nem tampouco prepara as massas para a via insurrecional, por exemplo.
Estas deficiências se manifestam também na utilização de categorias tais como “o patriotismo”, o “desenvolvimento progressista da economia nacional”, etc., que revelam uma concepção pequeno-burguesa do processo histórico social que, incapaz de forjar seus próprios elementos de compreensão da realidade, toma de empréstimo os elementos teóricos elaborados pelo pensamento e ideologia burgueses.
Contudo, o problema não reside unicamente em utilizar categorias burguesas, mas, e como produto das limitações metodológicas sinalizadas previamente, sobretudo na incapacidade de realizar uma análise do caráter classista do sistema capitalista no Chile e dos instrumentos de poder das classes dominantes.
Isto o leva a negar, sem que haja nenhum fundamento sério, a análise marxista sobre o papel das Forças Armadas como instrumento de dominação [1]. Negam a análise de Lênin em O Estado e a Revolução, na qual defende, como resultado de uma análise que ainda hoje nem a prática histórica nem o reformismo puderam refutar, que o Exército é o principal instrumento através do qual se pode exercer a dominação burguesa e que sua destruição é condição para implantar o socialismo.
Cinquenta anos depois dos ensinamentos da primeira revolução socialista; depois da lição derivada do fracasso dos social-democratas na Europa, que ganharam a maioria parlamentar e governaram mantendo o aparato burocrático e militar do Estado burguês, o que os conduziu ao fracasso e criou as condições para o florescimento do nazismo e do fascismo; depois da vitória da revolução chinesa, que foi possível após uma grande guerra popular, e no transcurso da qual o PC criou um exército do povo oposto ao exército nacional; depois da vitória da guerra popular no Vietnã, derrotando o imperialismo francês e, posteriormente, enfrentando os norte-americanos; finalmente, depois da vitória da Revolução Cubana que, embora não sendo inicialmente socialista, mediante a destruição do exército de Batista, permitiu seu subsequente avanço ao socialismo… Depois disto tudo, os dirigentes do PCCh seguem dizendo que “os fundadores da República criaram as Forças Armadas para lutar pela independência do país e pelo direito dos chilenos a darmo-nos o regime que mais nos agrada defendendo nossa liberdade e soberania. O Partido Comunista valoriza o espírito profissional de nossas Forças Armadas” (grifos nossos).
As citações sobre o papel dos aparatos repressivos, às quais se poderiam agregar muitas outras, ilustram bem a crítica que vínhamos fazendo de que o Partido Comunista não realiza uma análise de classe e desconhece, ou simplesmente não utiliza, o método de análise marxista. Isto é reafirmado quando se diz que “o PC não compartilha do critério de quem pensa que as Forças Armadas seguramente servirão de instrumento contra o povo”, ainda que expressem seu “rechaço eminentemente patriótico à frequente utilização de seus efetivos em trabalhos repressivos das lutas dos operários e estudantes (...)”.
Mas afinal, senhores dirigentes do Partido Comunista, para que foram criadas as Forças Armadas? Somente para proteger as fronteiras nacionais? Ou também para manter a ordem interna? Claro, disto não se trata! Manter a ordem contra a “desordem”! Porém, quem se considera criadores da “desordem”? Os que não se beneficiam da ordem, os que não possuem nada, os proletários, os camponeses, os estudantes, a plebe e todos dessa espécie. Então as Forças Armadas existem para reprimi-los. As Forças Armadas não são “inocentes úteis”, não são “utilizadas” também para reprimir, são criadas especialmente para isto; essa é a razão fundamental de sua existência.
A experiência peruana gerou uma grande confusão entre os empiristas de esquerda, aos quais os feitos imediatos são os que importam independentemente de seu significado em um contexto de análise mais amplo. De qualquer forma, a história dos militares peruanos é muito nova. Até o presente, em nenhum momento sua atuação entrou em contradição com os interesses do novo capital internacional vinculado ao setor industrial, mesmo quando não negamos que possa existir certa desconfiança deles no que se refere aos métodos e ideias da Junta Militar. Mas acompanhemos um pouco mais do raciocínio dos dirigentes do Partido Comunista: “(...) as tentativas de colocar as Forças Armadas contra o povo constituem um crime de lesa pátria, porque atentam contra os interesses supremos do país”.
Quais são “os interesses supremos do país”? Desde uma perspectiva marxista isto não existe quando se trata de um país no qual a vida de sua população se desenvolve sob um regime econômico-social caracterizado pelo enfrentamento de classes radicalmente antagônicas. As classes dominantes, que controlam o Estado e através dele estendem seu controle sobre todas as esferas da vida do país, tentam sempre apresentar seus interesses como os interesses supremos da pátria, suas Forças Armadas como as defensoras de todo o povo, seus parlamentos como legítimos representantes de todo o povo, e assim sucessivamente.
O partido dos operários não pode estar de acordo com essa mistificação e com as tentativas de borrar o caráter de classe que se manifesta em todos os aspectos da vida social. Mas isso é só um aspecto da questão. É necessário assinalar também que os dirigentes do Partido Comunista demonstram desconhecer, o que é extremamente grave, a nova estratégia do imperialismo na América Latina, cujas bases vêm de antes mas que foram reformuladas a partir da Revolução Cubana; mais especificamente no governo de Kennedy, e que consiste em capacitar as Forças Armadas latino-americanas, tentando coordena-las para a nova tarefa que é a contrainsurgência, preparando-as para exterminar rapidamente qualquer tentativa de rebelião popular. Ao contrário do que um raciocínio ingênuo pode levar a crer, as Forças Armadas na América Latina se mostram, a cada dia que passa, como um instrumento mais efetivo da dominação e da contrarrevolução burguesa-imperialista.
Não obstante, é necessário separar a análise das Forças Armadas enquanto instituição do papel dos militares enquanto indivíduos que são parte do conjunto da sociedade e que atuam dentro das estruturas sociais. A respeito do segundo, a maioria dos militares estão submetidos a uma mesma estrutura impositiva de autoridade, a uma profunda estratificação de soldos e status que refletem a estrutura de classes do conjunto da sociedade. Também eles são afetados pela situação de subdesenvolvimento que limita as possibilidades técnicas em que se desenvolvem e os frustra enquanto profissionais. Por fim, nas Forças Armadas se reflete a dependência estrutural de nossos países, pois este é um dos setores mais visados (atualmente o setor mais visado) pela política imperialista que busca adequá-lo aos seus interesses. Por isso, é natural que a crise geral do capitalismo dependente afete também os militares, e que se desenvolvam em seu interior diferentes posições políticas. É inegável que à classe operária, à sua ideologia de classe, podem chegar muitos militares dispostos a atuar contra o sentido de classe da instituição. Inclusive é possível que a classe trabalhadora encontre aí aliados ou simpatias por parte de setores que sofrem as consequências do sistema e que se inquietam frente ao papel as forças imperialistas e oligárquicas querem dar às Forças Armadas, convertendo-as em defensoras da dependência ou do golpismo.
É indiscutível que, quando as classes dominantes têm que apelar aos militares e às Forças Armadas como instituição para se situar em um primeiro plano político e para defender o sistema, não como força armada, mas como força de governo, é porque sua crise está muito agudizada e elas necessitam de uma política de força contra os setores populares ou contra os outros setores da classe dominante. Na América Latina e no mundo atual, em que toda luta de classes é essencialmente entre socialismo e imperialismo, é principalmente contra o movimento popular que são chamados ao governo os militares. Não para realizar uma política de oligarquias agrárias decadentes, mas para realizar uma política do grande capital internacional interessado na integração latino-americana, na instalação de indústrias avançadas, em um governo de força, porém “modernizante”.
Que não se confundam, portanto, os teóricos do nasserismo, dos “militares de esquerda”, etc.
Tampouco se pode considerar uma política tática revolucionária a de defender os militares como profissionais em um momento de sua intensa politização. Somente uma política de classes no seio das Forças Armadas pode garantir o apoio de uma parte deles ao movimento popular. Todo o mais são ilusões.
A separação entre as tarefas das Forças Armadas como instituição e os militares como grupo social com diferenças internas permite compreender como os mesmos indivíduos que massacraram trabalhadores em El Salvador se mobilizem quase sindicalmente para obter aumentos salariais, ou como os mesmos militares que esmagaram as guerrilhas peruanas com Napalm nacionalizem o petróleo de Talara e façam a reforma agrária.
Examinemos agora as deficiências na análise específica das relações de dependência, que são uma consequência das deficiências teóricas gerais, e que se revelam em:
a. A caracterização dos inimigos, de onde se deduz o caráter da revolução e,
b. na análise de como se realizará a transição do capitalismo ao socialismo através de um governo popular.
A revolução é, segundo o programa do PC, anti-imperialista e anti-oligárquica. Por oligarquia se entendem os monopólios, sejam estes industriais, agrários, mineradores, etc. Nesse sentido, em algumas situações se referem à pequena e média burguesia, em outras aos setores da burguesia não monopolista, como possíveis aliados. O que não compreendem os redatores é que a partir do pós-guerra se verifica um processo de concentração, centralização e monopolização dentro do sistema capitalista sob a hegemonia dos Estados Unidos, e que esse processo se estende até o interior dos países dependentes, aprofundando ainda mais a dependência em todos os seus níveis e liquidando todas as possibilidades de um desenvolvimento capitalista autônomo. Essa tendência à monopolização é um feito objetivo e seu desenvolvimento na América Latina durante os anos 1950 e 1960 teve como consequência semear um dilema entre as burguesias nacionais: integrar-se aos grupos monopolistas ou desaparecer. Esse foi o resultado de um complexo processo de controle desde o centro hegemônico do desenvolvimento tecnológico e consequente do processo produtivo e dos mercados. Não nos cabe agora analisar esse processo, apenas partir deste feito histórico para extrair dele suas consequências políticas.
Frente a essa situação, na América Latina atual e especialmente no Chile dos últimos quatro anos, quando esse processo alcançou níveis bastante expressivos, carece de sentido defender uma luta anti-imperialista que não seja também anticapitalista.
Encampar a luta anticapitalista significa que não se pode contar com a pequena burguesia como um aliado de classe, e que a estratégia marxista deve buscar sua neutralização assegurando uma favorável transição ao socialismo. Nas atuais condições chilenas, introduzir a pequena burguesia sem distinções como um aliado de classe e limitar sua luta a objetivos democrático-burgueses, ou ainda a um regime misto de capitalismo de Estado com a média e pequena burguesia (a via não capitalista ou semelhante, como o que se apresenta no programa do PC), é cultivar uma ilusão perigosa que não corresponde às reais condições de classe no país e submeter a política do proletariado à perspectiva utópica pequeno-burguesa.
Para enfrentar os problemas fundamentais apresentados ao povo chileno pelo fracasso do desenvolvimento dependente é preciso desenvolver um programa de transformações audazes que reoriente todo o aparato produtivo, utilize a capacidade ociosa instalada das fábricas para atender sua população; que abra o caminho da indústria de bens duráveis e o da indústria pesada; que reoriente ao campo grande parte da população ociosa ou subempregada nas cidades; que elimine grande parte do aparato burocrático inútil que o Estado criou com base nos recursos retirados da tributação do cobre; que liquide os latifúndios, substituindo-os fundamentalmente por fazendas coletivas e secundariamente por cooperativas de produção e consumo (que reúnam pequenos e médios agricultores); enfim, trata-se de levantar o povo trabalhador do Chile, não para uma política de beliscões ao Estado nem para obter algumas miseráveis fatias, mas para assumir a responsabilidade de construir um país moderno com plena utilização dos recursos existentes rumo a uma sociedade socialista da abundância. Também se trata de abrir uma política internacional revolucionária, defender a integração andina e latino-americana em termos socialistas, abrindo caminho para uma América Latina socialista, ao lado de Cuba socialista e dos movimentos revolucionários que se agigantam no continente.
Não proceder assim significa permitir que o Partido Comunista adote a perspectiva dos setores burgueses menos progressistas, que são justamente os compostos pelas chamadas burguesias não monopolistas, que além de inexpressivos não podem ter mais nenhum projeto de desenvolvimento para propor à sociedade e que, na prática, estão sendo superados historicamente pelos setores mais dinâmicos de sua própria classe, que são os que detêm efetivamente o controle material do progresso científico e tecnológico.
É por isso que são equivocadas as etapas da revolução, propostas pelo programa, onde se defende que “nós comunistas lutamos para unir a maioria do país, vítima do regime capitalista, a fim de avançar em uma primeira etapa pelo caminho da revolução anti-imperialista e anti-oligárquica”. Dessa maneira, o Partido Comunista Chileno cria ilusões da possibilidade de uma evolução gradual e por etapas, não põe em xeque, na luta cotidiana, o regime capitalista que é a condição de existência de outras formas de exploração, especialmente a imperialista. Acentuam exageradamente as contradições entre a burguesia e o imperialismo, que, embora existam, são contradições não antagônicas e que desaparecem quando têm que enfrentar o movimento popular. Não desenvolve a combatividade das massas (ainda que façam passeatas em protesto contra o capitalismo, as quais normalmente adotam um caráter de festa…), fazendo-as crer que são suas aliadas as forças vacilantes e inexpressivas historicamente, e não as prepara para defender a questão do poder, para construir e viver sob o socialismo. Deste modo, sempre que seja aperfeiçoado o capitalismo, se encara como uma forma ainda válida de existência do povo. E, na medida em que não se está questionando sua estrutura econômico-social básica, mesmo que os dirigentes do Partido Comunista não o aceitem, o que propõem realizar é um programa de reformas progressistas, que só se diferenciam da proposta da Democracia Cristã porque são mais avançadas, mas que não saem dos marcos do regime. Desta maneira, a crítica que fazem ao reformismo se transforma em uma falácia. Isto se deve a que os dirigentes comunistas não lograram uma visão clara de como se dá esse passo, a transição do capitalismo para o socialismo, e a concepção que têm sobre este aspecto revela mais uma vez o caráter gradualista de seu método de análise. Isto se comprova melhor quando defendem que “as transformações que ela introduz (a revolução anti-imperialista e anti-oligárquica) abrem espaço para o advento de novas relações de produção, ao socialismo”, e mais ainda: “O cumprimento dos objetivos revolucionários assinalados, ao fundamentar-se em forma básica sobre o desenvolvimento dos setores estatal e cooperativo, fará possível que o trânsito desta primeira etapa à fase socialista possa ser relativamente breve, dentro de um processo contínuo e único”. (Grifos nossos).
Agora bem, “o desenvolvimento dos setores estatal e cooperativo”, representando formas de capitalismo de Estado, não conduz por si mesmo a uma transição ao socialismo.
Se pensamos que, em nossos dias, o capitalismo monopolista tem no capitalismo de Estado seu principal aliado, seria ilusório esperar que a criação de um setor de capitalismo de Estado amplo garantisse ou abrisse espaço, mecanicamente, ao socialismo. O capitalismo de Estado pode ser progressivo e conduzir ao socialismo somente quando está enquadrado dentro de uma política revolucionária que destrua o aparato estatal burguês (civil e militar) e construa sobre bases completamente novas a sociedade socialista. Os partidos comunistas de nossos dias perderam toda a clareza revolucionária que orientou a constituição da Terceira Internacional. Naqueles tempos, foi a questão do Estado que separou os comunistas dos social-democratas. Enquanto estes puseram de lado a ditadura do proletariado, a questão da destruição do Estado burguês, os comunistas a tinham como problema crucial para sua estratégia, como princípio básico de sua constituição.
O que há, portanto, de comunista na tese de que um governo de unidade popular chegará ao poder por eleições? Ou que manterá um exército regular “profissional”, fortalecendo a burocracia estatal anterior e assegurando-lhe os melhores privilégios do mundo? Ou mantendo um pluralismo partidário onde não se define claramente a exclusão dos partidos burgueses, e tudo que seja manutenção do poder burguês? Como podem se chamar comunistas os que afirmam que tal governo pode passar ao socialismo “dento de um processo único e contínuo”?
Para que serviu todo o esforço teórico de Marx, Engels, Lênin, etc.? Para que serviu toda a experiência histórica da social-democracia, dos governos trabalhistas, etc.? Para que serviu a experiência histórica do fracasso dos governos populistas nacionalistas na América Central, os Perón, os Vargas, os MNR, os Cárdenas, os Arévalos, os Goulart, etc.?
Historicamente verificou-se – considerando as diferenças –, no caso russo em 1917, chinês e cubano, a transição do capitalismo ao socialismo, mas não dentro de um “processo contínuo e único”, e sim no seio de um processo insurrecional em que o povo estava armado, em que os aparatos repressivos foram desmantelados e em que a questão do poder era claramente defendida (nos casos russo e chinês, sob a direção do partido revolucionário). Mesmo quando foram tomadas inicialmente uma série de medidas que por si só não eram socialistas, se verificaram dentro de um contexto revolucionário geral em que a institucionalidade burguesa (e feudal, nos casos russo e chinês) estava sendo quebrada e, ao mesmo tempo, se deteriorava a própria base do sistema de dominação da classe capitalista. Os momentos revolucionários que deram origem a regimes socialistas implicaram, historicamente, rupturas radicais e mudanças qualitativas, e ainda hoje não foi possível demonstrar, nem teórica nem praticamente, como alcançar o socialismo sem que medeie uma via insurrecional.
O PC Chileno não leva em consideração que as circunstâncias históricas atuais variaram desde a Revolução Cubana até hoje. Depois que a revolução democrático-burguesa evoluiu em Cuba para uma revolução socialista, as burguesias locais e o imperialismo não estão dispostos a que este fenômeno ocorra novamente em algum país latino-americano. O caso da República Dominicana ilustra bem a disposição que têm de impedir que ocorra tal evento. Além disso, no Chile, país cujo processo de industrialização vem de antes da Segunda Guerra e que já tem um proletariado antigo e com expressiva tradição de luta, não se trata de fazer uma revolução burguesa, porque essa é uma questão que praticamente não se apresenta mais para a burguesia chilena, mas sim instaurar o socialismo. Esta alternativa se apresenta como consequência da crise do desenvolvimento do capitalismo no Chile e pelo processo de integração deste com os Estados Unidos, o que encerra a possibilidade de que as classes dominantes, inclusive a burguesia não monopolista, tenham um programa progressista e antagônico ao imperialismo.
II. Outras críticas e para onde conduz o programa
Do exposto anteriormente deriva a segunda parte desta crítica, que consiste em definir qual é o verdadeiro caráter do programa proposto pela direção do Partido Comunista Chileno. Ou seja, até onde vão, o que pretendem, ou melhor dizendo, quais são os resultados práticos de uma política fundada em uma análise não marxista da realidade chilena.
a) O caráter do governo popular, como é definido no programa e na convocatória, revela que, de fato, os horizontes que os dirigentes comunistas se colocam a médio e longo prazo não “miram” necessariamente em um sistema socialista como a URSS (até o período de Stálin), China ou Cuba, mas em um tipo de democracia popular ao estilo europeu. É aí onde adquire seu verdadeiro sentido o respeito pela propriedade privada que se infere no programa, o respeito pelos partidos da oposição, em resumo, o vislumbre de um sistema pluriclassista, negando a necessidade da ditadura do proletariado. A seguinte citação ilustra bem estas considerações: “Nós comunistas consideramos que em um regime de governo popular, e mais adiante, nas condições do socialismo, todas as correntes populares manterão seus próprios perfis, todas as crenças religiosas serão respeitadas, existirá, portanto, pluralismo ideológico e político, sem prejuízo da luta de cada qual por suas próprias ideias. O governo pelo qual lutamos foi chamado a ser o mais democrático que já houve no país, posto que deverá ser gerado pelo povo, constituído pelos partidos populares…”. É certo que, historicamente, houveram casos de sistemas socialistas nos quais se mantiveram as condições preconizadas pelo PCCh, mas também é certo que, de todos esses países, o único onde a revolução pôde ser levada adiante e que realmente conseguiu superar o capitalismo, foi a China. Isso devido à Revolução Cultural que se fez, justamente, buscando eliminar os resquícios da democracia burguesa. Neste sentido, se pode dizer que não existe nenhum esforço crítico sério por parte dos dirigentes do PCCh frente à rica experiência do campo socialista, salvo com relação à China, mas onde a crítica é feita desde uma posição de membro do bloco liderado pela URSS.
b) Ainda que tenha “vistas ao socialismo”, a estratégia proposta para conquistar um “governo popular” defende todo um processo de modernização que, no caso hipotético em que seja possível de realizar – e isso é sumamente discutível, uma vez que o crescimento da direita é muito mais vigoroso do que avaliam os comunistas –, conduziria ao desenvolvimento de um capitalismo de Estado que tenderia a consolidar muito mais o regime que questioná-lo, no caso de que a crise do capitalismo dependente, que se manifesta em toda a América Latina e também no Chile, não proponha primeiro a necessidade, no político, de formas de governo muito mais repressivas, e no econômico, não leve o país a um amplo período de estancamento.
c) É necessário assinalar o ilusório democratismo deste programa. Confunde o democrático com o liberalismo. A democracia não se assegura com a manutenção de liberdades formais, mas com a possibilidade de participação real das massas populares no poder. E isto só é possível, como sublinhavam Marx e Engels ao analisar a experiência da Comuna de Paris, ou Lênin em O Estado e a Revolução, quando as massas assegurarem o controle mais direto possível do Estado com uma mínima interferência de um aparato burocrático, que deve ser minimizado, restringido e limitado ao máximo. A democracia se assegura com a autêntica participação popular no governo das empresas, das comunas, do Estado nacional, da planificação, etc. Esta é a democracia socialista, onde o partido ou os partidos revolucionários (e somente os partidos que admitem a ditadura do proletariado têm direito a voz e voto na sociedade socialista) representam um setor político organizado do proletariado e de seus aliados de classe, cujos direitos de mobilização devem assegurar-se para garantir democraticamente sua ditadura.
Isto não ter sido assegurado na URSS da fase stalinista e pós-stalinista é produto de condições históricas (cerco imperialista, guerra civil e guerras externas terríveis, reação do campesinato rico, atraso econômico do campo russo, etc.) que vão desaparecendo com o surgimento de novos países socialistas, e que devem aspirar ir muito mais longe do que foi possível alcançar na URSS, ajudando seu proletariado a conquistar a democracia socialista.
Não fica claro, de nenhuma maneira, o que o governo popular representa como transição ao socialismo. Já vimos o absurdo que é sua pacífica constituição, e mais absurdo ainda ver como é pacífico e “contínuo” seu passo ao socialismo. Agora vemos quão obscura é a definição de seu conteúdo de classe, dos setores sociais que conviverão com ela. Da extensão e o limite que terá, do caráter concreto da transição ao socialismo. O feito de que estejam tão obscuras essas coisas não é senão reflexo do empirismo de quem as formulam.
d) O resultado é que o programa do partido se confunde com o programa para as eleições de 1970. Embora o partido insista que as eleições são uma das múltiplas formas que pode adotar a atividade das massas, não trata de explicitar outras formas, e esta se converte na forma principal da atividade do partido. Seu programa e a convocatória se revestem de um caráter profundamente eleitoreiro, em um velho estilo populista tomado de empréstimo dos nacionalistas burgueses.
É assim que o PCCh recorre e levanta as esfarrapadas bandeiras do desenvolvimentismo burguês, num momento em que a própria burguesia aliada às oligarquias e ao imperialismo se preparam e tentam levar a cabo na América Latina e no Chile um desenvolvimento dependente que, até o momento, só produziu estagnação e frustração; governos fortes e repressão popular.
e) O programa proposto pela direção do PCCH dá ênfase ao distributivismo, ou seja, não é um programa cujo cumprimento provocaria um impetuoso desenvolvimento das forças produtivas e que seria capaz de permitir ao país superar sua condição de subdesenvolvido. Nesse sentido, ainda do ponto de vista do desenvolvimentismo, é limitado e essa limitação vem do fato de que o que se propõe é um reformismo visto desde a perspectiva pequeno-burguesa, que quer conciliar as necessidades da acumulação de capital com proteção à pequena burguesia e concessões à classe média e setores operários.
Em resumo, o caráter dos objetivos programáticos é tão amplo em relação aos aliados, tão restrito em relação aos inimigos e tão limitado no que se refere às metas, que os interesses das classes realmente revolucionárias são mesclados, confundidos e descaracterizados em nome de vaguezas tais como “as conveniências do Chile”, da “unidade e a ação conjunta de todas as forças que estão contra os inimigos fundamentais do país”, etc. Em nome das “conveniências do Chile” se colocam, por exemplo, como “partidários de uma concepção moderna, patriótica e popular da defesa da soberania nacional, e que se assegure a todos os ramos das Forças Armadas os meios materiais e técnicos para o cumprimento de sua missão específica, o que exige garantir a segurança econômica, formação profissional e ascensão, tanto a oficiais, suboficiais como a classes, mediante remunerações compatíveis com suas funções e necessidades durante sua permanência nas fileiras e nas condições da aposentadoria. Defendemos o caráter profissional das Forças Armadas…”, etc. (Grifos nossos).
Quanto ao caráter “profissional” ou da “missão específica” das Forças Armadas, fizemos previamente a crítica, e gostaríamos apenas de assinalar uma vez mais que apenas um raciocínio tipicamente pequeno-burguês é incapaz de compreender que não existe o caráter “profissional” desvinculado do político, que não existe uma mesma pátria dos burgueses e proletários, e que por detrás dessas funções aparentemente supraclassistas se assenta e se garante a dominação burguesa.
f) Devido a que as metas dos dirigentes do PCCh são tão restritas, seus êxitos parciais são tomados de forma exagerada, quando por exemplo defendem que “desde o ponto de vista da radicalização da consciência e da ampliação do movimento social os êxitos têm sido muito significativos. Hoje a CUT [Central Única de Trabajadores de Chile] alcança sua maior amplitude e consistência como organização classista. Os trabalhadores do campo entram com força pelo caminho da sindicalização, da luta pela terra e por seus direitos econômicos e sociais. Se abre espaço, com o impulso dos estudantes, dos professores e do pessoal administrativo, para a Reforma Universitária. Se multiplicam as associações de moradores e os centros de mães, elevando suas lutas em demanda de moradias, urbanização, atenção à saúde, escolas e jardins de infância. A batalha pela nacionalização do cobre se converteu em uma causa da qual compartilha a grande maioria do país. Se fortalecem e se estendem as posições e a influência do Partido Comunista, e reafirmam e melhoram as suas os outros setores da esquerda”.
De fato, tudo isso se fez e se faz. Mas tudo isto, longe de demonstrar que as conquistas populares estão em ascensão, levanta a necessidade de mudar para métodos mais efetivos de luta, principalmente porque:
— Embora a CUT tenha crescido, se mostrou incapaz de deter a crescente onda repressiva, o massacre de trabalhadores, estudantes e camponeses;
— Embora o campesinato esteja se sindicalizando, também se frustrou a débil reforma agrária proposta pela democracia cristã, e os setores latifundiários se levantam e se organizam com maior vigor, como vêm demonstrando os últimos acontecimentos;
— Embora a Universidade do Chile e a Universidade Técnica tenham se mobilizado para a reforma, e mesmo quando os comunistas chegaram a ser a força mais expressiva deste processo em um dado momento, a velha universidade se mantém intocada, com toda sua antiga casta de professores e pesquisadores que mantêm o ensino dentro dos marcos permitidos e convenientes ao desenvolvimento burguês. Os programas não sofreram mudanças substanciais que eram de se esperar como consequência do processo de reforma; o processo de democratização não foi levado às últimas consequências e basicamente o controle sobre os mecanismos de poder permanecem ainda, em boa medida, nas mãos de grupos de dominação tradicional, e de uma burocracia ineficiente;
— Embora se tenha conseguido criar algumas associações de moradores, centros de mães e tenham logrado uma maior mobilização para reivindicar escolas, jardins, hospitais, todos estes problemas estão longe de ser resolvidos, e persistem os problemas estruturais do desemprego, carência de alimentos, má atenção médica, péssimas condições de urbanização e se incorporam cada dia mais pessoas à categoria de marginais;
— Embora a nacionalização tenha sido colocada na ordem do dia durante um longo período, e ainda que tenha obtido um apoio bastante generalizado — inclusive entre setores conservadores —, foi incapaz de gerar um movimento suficientemente forte para impedir a “nacionalização pactuada” de Frei;
— Por fim, embora tenha aumentado um pouco a votação dos partidos de esquerda, aumentou muito mais a força da direita no que diz respeito não só a sua votação ou as pesquisas realizadas, mas sobretudo pela sua capacidade de organização, e especialmente pelas demonstrações que começa a dar em suas tentativas de deter o movimento popular.
Todas essas considerações, ao contrário do que defendem os comunistas, não indicam que podem garantir as conquistas populares e conduzir o processo revolucionário por vias reformistas, legalistas e pacifistas, e deter o avanço da direita e do fascismo. Mas colocam, sim, na ordem do dia a necessidade de organizar e preparar o povo para enfrentamentos cada dia mais radicais e violentos. Colocam na ordem do dia não a necessidade de seguir reivindicando e protestando, mas a de se preparar para romper com a institucionalidade burguesa, dentro da qual se pode conseguir muito pouco, e conquistar pela força o que é negado pelas leis. Colocam na ordem do dia a necessidade do caminho insurrecional através da guerra popular.
g) Finalmente, nos cabe criticar ainda a posição do partido frente à questão da unidade popular. Se bem é certo que é importante atingir unidade e que não se deve manter uma atitude sectária frente aos aliados, o decisivo não é a unidade, mas sim a unidade em torno de algo. Se a unidade faz avançar o processo revolucionário, ou seja, se não implica concessões de princípios, se não implica amortecer as contradições com o sistema em vez de aprofunda-las, em resumo, se não significa fazer concessões ao reformismo, a unidade deve ser buscada, mas apenas quando se forja dentro dessas condições. Defender a unidade popular por princípio, como decisiva, da forma como o fazem os dirigentes do PCCh é um erro de sérias consequências. Porque quando se busca o que une e se entusiasma com a política da amplitude, muitas vezes se esquece que, frente a determinados tipos de “aliados” – como por exemplo a chamada burguesia não monopolista, a média burguesia e setores da pequena burguesia –, justamente o que não une são, com frequência, os aspectos fundamentais de uma verdadeira política operária. Além disso, a concepção de que “o decisivo é a unidade” conduz sempre a uma atitude compreensiva e complacente frente ao reformismo burguês. Se traduz também em concessões à direita, e para a manutenção da unidade com esses setores a atitude tende a ser a exclusão dos que o partido chama “esquerdistas”.
Mas, como define o próprio partido, esses setores “esquerdistas” não formam também parte do povo? Então por que o partido não tenta ganhá-los, convencê-los a corrigir certas posições e atraí-los para uma política de unidade? Porque não se pode juntar gregos e troianos. Não se pode unir burgueses reformistas e revolucionários. Por isso, ser muito amplo significa ser, por sua vez, muito restrito, buscar a unidade significa delimitar precisamente a divisão. Então, o decisivo não é a unidade, mas sim a unidade com quem, em torno de quê e para quê. Essa política de amplitude de frente popular preconizada pelo partido, que de fato fecha suas portas a muitos setores da esquerda que – apesar de seus erros, e quem não os comete? – são efetivamente revolucionários, leva o partido a desenvolver uma atitude tipicamente stalinista ao considerar os grupos que estão preconizando um caminho insurrecional como “anticomunistas e agentes do imperialismo”. Essa atitude de recusar-se a discutir suas posições revela, mais do que tudo, o temor frente aos argumentos que lhe opõem. E, desta forma, os militantes do PCCh se dão conta de que não basta ser um partido de operários para ser um partido da classe operária (como não o foi a social-democracia europeia, como não o é o Partido Trabalhista inglês), e que ser comunista não significa somente estar de acordo com um partido chamado comunista.
Sobretudo depois da revolução Cubana, tem-se questionado definitivamente o monopólio da esquerda pelos partidos comunistas. Porém, desde a época de Marx e Lênin, ser comunista é atuar revolucionariamente. Pois bem, hoje em dia na América Latina ser comunista é preparar e organizar o povo através da sua vanguarda, política e militarmente, para desencadear a insurreição com vistas a conquistar o poder para o povo através da instauração do socialismo. Isso é o que define os revolucionários comunistas, e não sua caderneta de filiação.
Notas
[*] A revista Punto Final publicou a seguinte nota antes do texto: “A propósito do próximo Congresso Nacional que o Partido Comunista do Chile celebrará, elaborou-se uma análise crítica do programa e convocatória, que apresentamos neste suplemento. Os conceitos que expressa seu autor não são compartilhados na totalidade por PF [Punto Final], que, no entanto, estima se tratar de um documento sério que tenta uma crítica necessária sobre a conduta e as formulações programáticas de um dos mais importantes partidos políticos chilenos. PF considera que, sem dúvida, muitas das apreciações que aqui se colocam são passíveis de controvérsia para a qual – como é a norma invariável – estão abertas as páginas da revista.” O texto aparece assinado por Glauris Fernandez, pseudônimo adotado por Vânia Bambirra.
[1] Nota da Autora: O caso das democracias europeias não serve de exemplo: 1) porque era uma circunstância especial motivada pela guerra, a maioria das vezes o povo estava armado, existia a direção dos partidos comunistas e, além disto, contaram com a intervenção das tropas soviéticas; 2) porque, a rigor, não se pode falar de ditadura do proletariado nestes países, e, portanto, é discutível falar de socialismo. Por último, a conservação de extensas áreas de propriedade privada ao lado de um Estado burocrático que assimilou e manteve grande parte de sua estrutura anterior criou um vasto setor contrarrevolucionário que atualmente reivindica um regime cada vez mais “liberal” frente a um proletariado despolitizado, incapaz de opor ao liberalismo contrarrevolucionário a democracia socialista. A gravidade da situação nestes países, que foi demonstrada pela revolução proletária na Alemanha Democrática, rebelião húngara, os movimentos antirrussos na Polônia e a intervenção na Tchecoslováquia, não nos permite ver neles nenhum exemplo a seguir.