Participação pioneira da Autoridade Palestina na Assembleia Geral da ONU traz à tona velhas divisões na Palestina
Em discurso na ONU, Mahmoud Abbas culpou o Hamas pela continuação da guerra em Gaza. Além de uma declaração política inconsequente, a posição de Abbas remonta à cisão de décadas entre o Hamas e o Fatah na política palestina.
Por Redação
Pela primeira vez na história, a 79ª Assembleia Geral da ONU (AGNU), ocorrida no dia 24 de setembro, contou com a participação do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, como representante pleno do Estado da Palestina. Anteriormente, a Palestina participava como membro observador, enquanto Israel teve seu direito de participação plena assegurado na organização internacional desde 1949.
Em seu pronunciamento na Assembleia Geral, Mahmoud Abbas, apesar de ter afirmado que Israel e os Estados Unidos foram responsáveis pelo ataque que matou dezenas de pessoas na Faixa de Gaza no sábado (13) que precedeu a reunião, o líder palestino apoiado pelo ocidente também culpou o Hamas pela guerra contínua em Gaza, responsabilizando a resistência palestina em mesma medida pela política criminosa e genocida que vem sendo levada à cabo pela ocupação colonialista israelense. O discurso de Abbas evidencia a atualidade das históricas divergências políticas e estratégicas entre as linhas de duas organizações políticas atuantes há décadas no território palestino: o Fatah (linha hegemônica da AP) e o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas).
As divergências históricas que distanciam o Fatah/AP do Hamas e das demais organizações que continuaram tendo a resistência armada como estratégia central na libertação palestina remontam às transformações políticas que atravessam o Oriente Médio, e sobretudo a região levantina, nos anos 1980 e 1990. Fundado em 1959 no Kuwait – país que após a Nakba, junto da Jordânia, foi destino prioritário para palestinos em diáspora até 1990, quando é invadido pelas forças de Saddam Hussein – por nomes como Yasser Arafat, Khalil al-Wazir, Salah Khalaf, e Mahmoud Abbas, o Fatah nasce como uma organização secular, nacionalista e de esquerda empenhada com a luta pela libertação da Palestina.
O partido de Arafat tinha como estratégia de libertação a luta armada contra a ocupação, por meio de sua principal ala militar, a al-Asifah. Após a guerra de 1967, tornou-se o partido dominante na Organização pela Libertação da Palestina (OLP), ao lado de demais organizações nacionalistas e revolucionárias.
Entre os anos 80 e 90, no entanto, o acirramento das divisões internas e a leitura do Fatah de que as possibilidades de sustentação da luta armada por parte do campo secular/revolucionário teriam se exaurido, abrem margem para o fortalecimento dos grupos armados de resistência islâmica, como o Hamas, fundado no ano de 1987, no contexto da primeira intifada. O partido surge como um desdobramento da Irmandade Muçulmana no Egito e cria seu próprio braço armado, as Brigadas Izz al-Din al-Qassam.
Na década de 1990, a OLP, liderada pelo Fatah, renunciou oficialmente à resistência armada e apoiou a Resolução nº 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que legitima a “solução” de dois Estados, nos moldes de uma coexistência de um Estado palestino nas fronteiras de 1967 (figura abaixo), lado a lado com o Estado ocupante israelense.
Em 13 de setembro de 1993 foram assinados os Acordos de Oslo, entre Yasser Arafat (OLP) e o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, o estabelecimento de bases para um acordo de paz fundado na ilusória “solução” de dois Estados com a criação da Autoridade Palestina – sob a liderança de Arafat – nos territórios de Gaza e da Cisjordânia. O conteúdo das declarações era fundamentalmente distinto: Enquanto a OLP reafirmou a aceitação das Resoluções de nº 242 e 338 da ONU e reconheceu “o direito do Estado de Israel de existir em paz e segurança”, Israel apenas declarou que “decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestino”. O reconhecimento unilateral da existência do Estado de Israel pela AP é alvo de críticas das organizações políticas palestinas até hoje.
Uma vez criada a Autoridade Palestina em 1994, os Acordos de Oslo determinavam que as partes tivessem no máximo cinco anos para negociar as pendências em status permanente. As “pendências” incluíam fronteiras, assentamentos israelenses, retorno dos refugiados palestinos, o status de Jerusalém e a declaração de um Estado palestino independente. A retirada gradual do exército israelense das zonas ocupadas, que deveria ser coordenada junto com a Autoridade Palestina, foi adiada por Israel e jamais concluída. Desde a assinatura de Oslo, o número de colonos israelenses aumentou mais de seis vezes, de 116 mil em 1993 para cerca de 750 mil hoje. Israel é inequivocamente o único beneficiado pelos infames acordos de 1993, fato que perturba a memória nacional palestina até hoje.
O acordo nunca foi visto com bons olhos por organizações da esquerda palestina, como a Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP) e a Frente Democrática pela Libertação da Palestina (FDLP), nem por organizações como o Hamas e a Jihad Islâmica. Os grupos faziam oposição à forma antidemocrática pela qual os acordos foram impostos à OLP, com concessões inegociáveis aos sionistas. O Hamas, na ocasião, denunciou as movimentações como forma de utilizar da pressão diplomática externa para esmagar os rumos da intifada sob aparências de acordo de paz.
Pouco após a assinatura de Oslo II, o assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995, por um fundamentalista israelense, deixou evidente o fracasso dos acordos. Cinco anos depois, a Segunda Intifada, que causou milhares de mortes, agravou a crise. Cinco anos depois, a segunda intifada custou a vida de 3.189 palestinos, contra 649 baixas israelenses. A vitória de Benjamin Netanyahu nas eleições de 1996 consolidou o desmantelamento final do acordo, com Israel nunca implementando suas diretrizes.
As concessões políticas feitas pela OLP jogariam a organização – e sobretudo o Fatah – em acelerado descrédito diante da sociedade palestina, que considera até hoje os acordos uma traição fatal, como aponta, por exemplo, a pesquisa de opinião do Jerusalem Media Communication Center. Em paralelo, ocorria o crescimento e fortalecimento das organizações com base religiosa na liderança dos rumos políticos da Palestina sem se abster das armas, inclusive sob incentivo israelense, que acreditava que a disputa com o fundamentalismo por apoio popular e controle político interno do território palestino enfraqueceria a OLP e a linha política secular que a hegemonizava.
Como consequência direta deste movimento de queda livre do apoio popular ao projeto político encabeçado pelo Fatah, e o crescimento das alternativas religiosas na política, ocorre em 2006 a vitória do Hamas nas eleições parlamentares na Palestina sobre o Fatah. O resultado eleitoral é contestado pelas lideranças do movimento secular, que havia perdido a sua maioria no Conselho Legislativo da Palestina, e não é reconhecido por Israel e a União Europeia, que ironicamente haviam atestado a legalidade do pleito. Diante desse cenário, o Fatah mobiliza um golpe para anular as eleições, que marca o início de uma escalada de tensões que culmina com o conflito direto entre as duas organizações no ano de 2007, no que se convencionou chamar de guerra civil. Na ocasião, a Autoridade Palestina é expulsa de Gaza, estabelecendo suas operações na Cisjordânia.
Os grupos armados das duas organizações assumiram o protagonismo do conflito. O embate alcançou as instituições de segurança, que, na primavera de 2006, ainda passavam por reformas. Em abril, Abbas reforçou a Guarda Presidencial, tornando-a diretamente subordinada a ele e estabeleceu uma organização para monitorar as fronteiras, controlando o posto fronteiriço de Rafah, entre Gaza e Egito. O Hamas reagiu criando a Força de Segurança, sob o comando do ministério do interior do governo de Ismail Haniyeh, desafiando a autoridade de Abbas. A Força, que mais tarde seria chamada de tanfisiyya, era liderada por Said Siyyam, considerado ‘linha-dura’ no Hamas, e foi composta por militantes conectados tanto ao braço militar do grupo quanto a outras organizações armadas na Faixa de Gaza.
Em outubro de 2017, os dois movimentos anunciaram que chegaram a um acordo para acabar com a cisão de uma década que os levou a um conflito armado em 2007. Para além de uma declaração política inconsequente, o pronunciamento de Mahmoud Abbas na AGNU demonstra que algumas destas feridas continuam abertas na política palestina, fato que é particularmente preocupante diante das denúncias por parte das organizações da resistência palestina de um processo atual de perseguição, combates, censura e prisão perpetradas pela Autoridade Palestina contra as organizações da resistência e manifestações em apoio à luta contra a ocupação sionista.
Essa postura sabotadora e policialesca da AP na Cisjordânia vem sendo denunciada de forma contundente por uma série de organizações, dentre elas a FPLP, como uma forma de colaboracionismo com as políticas da ocupação israelense na Cisjordânia, território ainda sob poder da AP, e cujas raízes remontam à fidelidade unilateral da AP à uma herança apodrecida de obrigações e legislações contraídas em face do inimigo.
Após um ano da operação de 7 de outubro de 2023, levada a cabo pela coalizão de diversas forças da resistência armada palestina, o discurso de Mahmoud Abbas na 79ª Assembleia Geral da ONU expõe a continuidade das divisões internas entre o Fatah e o Hamas, que perduram há décadas, intensificadas pelo fracasso dos Acordos de Oslo e a subsequente vitória eleitoral do Hamas em 2006, para além de elementos não explorados, como a própria morte de Arafat e a prisão de Abbas. Apesar do acordo em 2017 para encerrar o conflito, as tensões entre as duas organizações permanecem, com a Autoridade Palestina sendo acusada de colaborar com as políticas de ocupação israelense, em detrimento das forças de resistência palestina. Essas divisões internas debilitam a luta pela libertação e agravam o cenário de ocupação e repressão na Cisjordânia, sugerindo que a reconciliação entre os dois movimentos é improvável.