'Para que servem os 101 anos de história?' (Tavinho e Guilherme)
“Nossa “história” foi apresentada pelo pecebismo a toda uma geração de militantes comunistas não como história, mas como hagiografia. Uma narrativa fantástica, oficialesca, recheada de grandes feitos e grandes heróis.”
Por Tavinho e Guilherme, para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (Walter Benjamin. Teses sobre o conceito de História, 1940)
Desde o início da crise, não foram poucas as vezes em que a história do Partido Comunista Brasileiro veio à tona. Não da forma como se poderia imaginar, porém. Quem voltar às notas da CPN e do CC e às manifestações nas redes sociais dos militantes que adotaram a defesa intransigente das direções do PCB formal, é de praxe uma citação abstrata da história do partido, vinculada à sua suposta grandeza, quando não o puro falseamento da posição das direções e de determinadas figuras históricas, vide as referências de Mauro Iasi à Prestes e Marighella em sua epístola.
Nessa breve contribuição, a intenção não é um aprofundar em específico e minuciosamente nas posições do partido do último século, nas estratégias e táticas adotadas ou às consequências desta ou daquela cisão. A questão é qual a relação do movimento comunista brasileiro com sua história? Qual a História desses 100 anos de lutas? Existe permeada na consciência dos militantes a necessidade de se apropriar de um balanço dessa história?
Ao não se definir como um novo partido, o PCB-RR encontrou pela frente uma feroz identificação e apego dos militantes aos símbolos e à sigla. “PCB é um só”, “Esse é o verdadeiro PCB”, “É impossível acabar com o partidão”. Esse comportamento, disfarçado de uma oposição de princípios aos que optaram pelo racha e colocaram na mesa suas críticas aos métodos de organização e a condução política, é o pecebismo [1].
O pecebismo faz uma defesa pessoalizada do partido. Encara o partido político ora como fã clube, ora como seita. Evoca a história do partido abstratamente, sem nenhuma intenção política ou balanço qualificado por trás disso. Diz orgulhoso que o partido tem 101 anos de história apenas por dizer. Pode ser até mesmo pescar determinados feitos e determinadas figuras e exalta-las: “Veja só, esse é o partido de Fulano, esse é o glorioso PCB”. É vazio de sentido, não há um fim prático, acúmulo útil, respeito às figuras mencionadas, não há História.
Nossa “história” foi apresentada pelo pecebismo a toda uma geração de militantes comunistas não como história, mas como hagiografia. Uma narrativa fantástica, oficialesca, recheada de grandes feitos e grandes heróis. Diz Ferreira Gullar que “o PCB não se tornou o maior partido do ocidente, nem mesmo do Brasil. Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo”. Contra a mentira anticomunista, veio a mentira pecebista: um conto heroico reduzido a datas e personagens memoráveis, mas livre de erros, contradições, disputas internas.
Em certo ponto da Miséria da Filosofia, Marx ironiza a “dialética” proudhoniana:
Vejamos agora que modificações o sr. Proudhon impõe à dialética de Hegel ao aplicá-la à economia política. Para o sr. Proudhon, toda categoria econômica tem dois lados: um bom, outro mau. Ele considera as categorias como o pequeno-burguês considera os grandes homens da história: Napoleão é um grande homem; fez muita coisa boa, mas também fez muita coisa má [2].
Um exame liberal das “coisas boas” e “coisas más” fez morada na história oficial do partido. Marighella e Prestes são lembrados anualmente (nas efemérides de seus aniversários ou datas de falecimento) por terem sido “grandes homens do PCB”, o que de fato foram, mas aqui são arrancados de todas as suas contradições. Marighella é expulso do PCB por contradições irreconciliáveis com suas direções e Prestes ao final da vida era presidente de honra do PDT, fatos que eram excluídos de qualquer balanço oficial pelo partido. Por que são “grandes homens do PCB”? Por que são militantes históricos? O pecebismo não sabe responder essas dúvidas, a resposta a ele é autoevidente: foram grandes porque foram do PCB. Essa resposta não pode mais nos servir, afinal, Roberto Freire, Raul Jungmann e Aloysio Nunes também foram do PCB em determinados momentos de suas vidas...
Essa postura se desdobra em um enorme ressentimento, um terrível medo de que os símbolos e esse história abstratas sejam reivindicados abertamente pelo outro. E então se manifesta o desprezo e o sectarismo, a recusa em se debruçar em qualquer elemento político. Soma-se ainda as rixas pessoais e a briga de egos: quem tem mais trabalho prático? Quem tem a mão grossa? Quem é playboy e quem não é?
Essa estreiteza de laços com o partido recheada de sentimentalismo, se materializa numa dita luta contra o individualismo. A defesa do legado de 101 anos e da sigla regularmente registrada no Tribunal Superior Eleitoral seria uma maneira de se posicionar contra o projeto pessoal daqueles que supostamente querem se promover ou lucrar com a crise. Nisso, não há qualquer reflexão sobre o que é um partido revolucionário, quais seus fins e suas especificidades no Brasil, a única coisa que importa é defende-lo, pois ele carrega essa identificação com a luta: Sem o PCB o que será de mim? A sigla (ou seu registro na justiça burguesa) sobrepõe o programa, a tática, a estratégia e os princípios.
Há ainda nesta dita luta contra o individualismo um destacado caráter reducionista. A defesa do PCB e daquilo que não é do PCB-RR (os 101 anos, as páginas do partido em redes sociais, a fonte do logo), somado ao fato de que determinadas figuras se destacaram como lideranças do processo de cisão, fez com que inerentemente fossem definidos um lado bom e um lado mal, naqueles mesmos termos pequeno-burgueses que Marx denunciava. Há uma desmedida necessidade de criar um espantalho para se opor livremente sem nenhum remorso; sem parecer que o comportamento é meramente personalista; e esse espantalho é geralmente pintar o racha como produto de 3 ou 4 gatos pingados, ligados estritamente ao movimento estudantil, com pouco ou nenhuma inserção na militância e centrados em São Paulo, capital.
Não seria preciso expor que o racha não se resume a isso, mas é interessante citar, por exemplo, a adesão crítica de toda militância da região metropolitana de Sorocaba, ou de São José dos Campos, São Carlos e outras cidades do interior do estado de SP. Estados como Paraíba, Rio Grande do Norte, Amapá, Rondônia, Amazonas e Pará definitivamente não estão na USP. As experiências pessoais sobrepõem a possibilidade de enxergar a crise no partido por suas razões políticas. Não é à toa o tom agressivo adotado por alguns, manifestado, por exemplo, em provocações nas redes sociais e ironias infantis.
Para defender a honra do PCB, vale até mesmo falsear a obra de Lenin, citando doutrinariamente a Resolução do X Congresso do PCUS, que proíbe as frações no partido em meio a Guerra Civil, após a Revolução de 1917, já estando no poder um partido revolucionário, para dizer que todo debate prévio sobre a construção de um partido deste instrumento da vanguarda do proletariado é inválido. Querendo salvar a sigla de uma casa em chamas, os marxistas e leninistas do PCB-CC deixam o materialismo e a seriedade ardendo no fogo.
Em outro exemplo da ausência de uma verdadeira História do partido que leva a abstração e o falseamento, se encontra na narrativa adotada pelas direções, à saber, a comparação com o movimento liquidacionista dos anos 1990. A luta pela manutenção do partido foi, com o passar dos anos, romantizada. Não há qualquer balanço sério, isto é, baseado em uma linha materialista-histórica, sobre o período e, consequentemente, as figuras que atuaram naquele momento são jogadas em um mesmo cesto. Há evidentemente princípios diferentes adotados a partir dali, apesar da defesa conjunta da manutenção do partido. A partir daí é criada uma mística em torno da história do partido e romper com essa mística seria o pior crime que um militante poderia cometer.
A História não deve ser encarada de forma abstrata. O materialismo histórico deve guiar um sério balanço que permita a superação dos erros e essa superação não deve se limitar a palavras. Do que adianta um extenso documento analisando o movimento comunista no século XX e as estratégias adotadas pelo partido, seguido por seus equívocos, se suas conclusões são ignoradas na atuação prática?
101, 110, 115, 120 anos de partido se passarão e os militantes continuarão exaltando o fato de o PCB ter sido o partido de Laudelina de Campos Melo, sem compreender as inúmeras críticas desta à abordagem da questão racial e o porquê de ela ter optado por não continuar no partido durante boa parte de sua trajetória. Continuarão exaltando que Nise da Silveira foi militante do PCB sem entender as razões de sua expulsão ou o próprio momento pelo qual o partido passava.
Uma verdadeira superação dos equívocos cometidos pelo PCB, que dê conta do resgate verdadeiramente histórico de grandes figuras, vem acompanhada de uma autocrítica ativa, que ultrapasse toda e qualquer fraseologia. Essa autocrítica ativa se faz na prática, é um compromisso assumido pelo partido revolucionário de superar-se e, portanto, não espera nada em troca. É um processo que está intimamente ligado à construção da Revolução. Não há processo revolucionário sem compreender os equívocos, sem que materialmente sejam de fato analisados os anos de História do movimento. A História não é, portanto, um adereço que se usa quando bem entende com objetivos meramente superficiais.
O que dizer da adesão acrítica por parte do PCB-CC (ou, por que não, PCB-ICP) à figura de Caio Prado Júnior e sua obra, mesmo que fosse na contramão dos acúmulos da nossa militância negra sobre o escandaloso trato que esta figura deu à questão racial do país. A leitura histórica de Brasil e do perfil do proletariado brasileiro que camaradas do Minervino fazem nas bases é muito mais avançada do que aquela compartilhada por alguns catedráticos do Comitê Central. O próprio caso já citado de Carlos Marighella poderia ser tratado como fracionismo hoje por alguns que saúdam sua memória uma vez ao ano nas redes sociais:
Dentro do partido não se pode evitar a luta interna. Os que pensam impedir ou deter a luta interna (ou diante dela se omitem) desconhecem a inexorabilidade das leis que presidem ao desenvolvimento social [3].
O resgate de figuras como Minervino e Maria Brandão são fruto de um esforço do CNMO e do CFCAM para verdadeiramente superar os elementos que permearam durante anos o movimento comunista, à saber, o racismo e a negligência da questão racial, além do destacado traço patriarcal das direções e escanteamento das questões de gênero. Mas quebrando os remos daqueles que nadavam com muito esforço contra a maré, o PCB deliberadamente tomou o caminho da mistificação e da negligência. Tem algo mais simbólico do que o fato de figuras chave do CC formal estarem a frente de um Instituto com o nome de Caio Prado Júnior, enquanto os camaradas do Minervino acertadamente divulgam cada vez mais as obras de Clóvis Moura e Lélia Gonzalez?
É preciso que avancemos, seja nas peças de agitação e propaganda, seja nos eventos e formações internas do complexo partidário, rumo a tentativas de um balanço, feito de forma consequente e que demonstre de fato que aprendemos com nossos erros e entendemos quais foram os nossos méritos. Honrar a memória de Marighella, por exemplo, é autocriticar-se profundamente quanto ao paradigma da Declaração de Março e seu conteúdo político. Aliás, qual Marighella se reivindica? Sem se valer apenas de seu nome e imagem, qual balanço fazemos sobre sua trajetória após a saída do PCB (período que é permeado de bravura e compromisso, mas também de erros e concessões)?
Para além disso, é necessário que o partido revolucionário encare com seriedade o resgate histórico e começa por um profundo balanço não somente dos 101 anos de história do PCB, porque a luta de classes no Brasil não começou em 1922. Sem demérito aos camaradas, mas não foram Astrojildo ou Octávio Brandão que derramaram sangue numa luta de décadas contra um Império Ultramarino que gozava de uma superioridade bélica e material para tal empreitada. O processo revolucionário brasileiro deve superar a fetichização da luta contra os liquidacionistas de 1990 e a mística criada sobre a história do partido e centrar seus esforços num resgate das lutas populares no Brasil, começando pelo Quilombo dos Palmares, mas não só.
É necessário que se encare a História do Brasil em toda sua dimensão, ultrapassando a visão escolástica, especialmente em relação ao Brasil Colonial. No resgate das lutas populares, a íntima ligação entre a mobilização dos escravizados e as massas pauperizadas devem ser analisadas buscando uma inspiração revolucionária que não se contente em ser apenas uma data a ser rememorada, mas uma reflexão e internalização da dialética material. Mais do que relembrar vulgarmente a Balaiada, por exemplo, é preciso um aprofundamento na compreensão de sua organização combativa, seu papel enquanto movimento popular, a clara intenção das classes dominadas em buscar a liberdade de sua opressão, superando a visão historiográfica das classes dominantes e do marxismo acadêmico e desdentado. Por outro lado, a perspectiva posta por Caio Prado, Nelson Werneck Sodré e outros autores clássicos do marxismo precisam ser postas a prova, uma vez que, como no caso da análise da Cabanagem, possuem uma visão estritamente classista que tende a não enxergar a legitimidade da violência revolucionária e o papel dos escravizados, negros e negras, no ataque às classes senhoriais de forma consciente, cabendo questionar a visão de que eram desorganizados e necessitavam de um programa e um partido para dar vasão ao ímpeto de suas lideranças. Tudo isso cabe um balanço histórico sério e extenso, livre das limitações da “dialética das coisas boas e coisas más”.
Sem esse processo, o resgate superficial de figuras do século XX perde o sentido, porque é uma memória cultivada formalmente, distante da realidade material brasileira. Somente em relação dialética entre a história do PCB e de seus quadros com a história do próprio país e de sua luta de classes, ao citar Laudelina e sua luta contra o racismo e pelos direitos das trabalhadoras domésticas, por exemplo, o partido revolucionário não estará só tentando engrandecer sua imagem buscando pagar uma penitência pelos seus erros passados, mas estará ativamente superando eles através da crítica e autocrítica, sem receio de dizer que o movimento comunista brasileiro não é somente o PCB. Sim, “quem escrever a História do Brasil e das lutas de nosso povo e não falar do PCB estará mentindo”, mas se limitar a escrever uma hagiografia de pouco valor prático sobre as lutas de nosso povo, exageradamente pessoal e moral na sua relação com o partido, além de estar mentindo, também não avança um passo em frente no movimento real.
Notas
1. Uma definição sobre o chamado “pecebismo” é dada pelo Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB: pecebismo é “o chauvinismo partidário acrítico, o espírito de seita, na contramão do profundo espírito autocrítico que marca a Reconstrução Revolucionária. Esse “pecebismo” nada mais é do que a vinculação a uma organização política sem a preocupação com seu desenvolvimento histórico e político para tornar-se vanguarda do proletariado no Brasil. (...) Para esses setores, a “Reconstrução Revolucionária” significa, tão somente, a recuperação do registro legal do partido no TSE. A defesa incondicional de uma organização em detrimento dos princípios que devem ser defendidos por um partido revolucionário acaba por enfraquecer inclusive seu próprio senso de autocrítica – todas as tentativas de fazer avançar o Partido que choquem com o senso de comodismo e morosidade dos dirigentes é agitado por eles como “ataques ao PCB”. Texto disponível na integra em: https://emdefesadocomunismo.com.br/manifesto-em-defesa-da-reconstrucao-revolucionaria-do-pcb-post/
2. Karl Marx. A Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 126.
3. Carlos Marighella. Luta interna e dialética, 1966. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marighella/1966/10/15.htm