'Para construir o futuro, precisamos resgatar o passado: Os reflexos do Poder Popular nos Povos de Terreiros e a luta de classes' (A.M e W.Z)

Esses espaços são combatidos e destruídos permanentemente pela dinâmica dentro da sociedade de classes. No entanto, seguem resistindo e sendo um local de cultura, lazer, saúde, educação, cuidado, alimentação e, principalmente, resistência e luta.

'Para construir o futuro, precisamos resgatar o passado: Os reflexos do Poder Popular nos Povos de Terreiros e a luta de classes' (A.M e W.Z)
Imagem da capa em anexo: Face Mirim de Exu, Autoria de Emilly Reis (https://www.instagram.com/emillyreisart/)

Por A.M e W.Z para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, escrevemos essa tribuna na tentativa que os/as/es comunistas do Brasil voltem seus olhares para as tradições de matriz africana (TMA) brasileiras e o seu papel nos setores mais subalternizados da classe trabalhadora, principalmente nas periferias, vilas, bairros, favelas, loteamentos, ocupações e demais espaços territoriais. No entanto, tentaremos trazer uma abordagem com olhares de dois camaradas, um vivenciador e um não-vivenciador de TMA, do interior do Rio Grande do Sul, onde a concentração de Povos e Comunidades de Terreiros é uma das maiores do Brasil.

O olhar do Partido Comunista junto às religiões

Em nossa opinião, há um entendimento superficial e equivocado em parte de nossos camaradas quanto à postura do militante e do Partido Comunista em relação a religiosidade, sobretudo aquelas dissidentes da ideologia dominante e intrinsecamente ligadas aos conflitos que deram origem à composição social do Brasil. Se a religião é o ópio do povo, e nosso povo continua sentindo as dores da exploração e opressão, é natural que ainda busquem um local de conforto e pertencimento.

Adicionalmente, engana-se quem imagina que os terreiros oferecem soluções fáceis ou explicações conformistas para a miséria do mundo: esses espaços oferecem conexões afetivas, espaços de cura física e mental por meio do cuidado coletivo, cultura, lazer, alimentação e abrigo, além de uma rede de apoio emocional e financeiro para os adeptos e toda comunidade estendida (que engloba familiares, simpatizantes, vizinhança, etc). Aliás, é justamente por essa abrangência que preferimos utilizar o termo “Tradições de Matriz Africana” (TMA) e não apenas “religião”, “umbanda”, “batuque” ou similar.

Nesse sentido, é preciso compreender que a militância de propaganda teórica do ateísmo sobre a população adepta das TMAs terá como único resultado possível afastar parte expressiva da classe trabalhadora e entregá-la aos cuidados da ideologia neoliberal, tornando o partido comunista insuficientemente capaz de explicar de modo materialista as raízes da exploração do homem pelo homem. Aliás, é importante mencionar, ainda que brevemente, a crescente influência de uma versão macumbeira da teologia da prosperidade nos terreiros, potencializada recentemente pelos algoritmos das redes sociais e pela ausência de disputa ideológica

Para encurtar a argumentação em torno da relação entre o Partido Comunista e as religiões, oferecemos um levantamento que fizemos sobre como os Estados de países que passaram por revoluções marxista-leninistas legislaram em relação às religiões. Vimos que numa lista de 27 constituições, apenas a da Albânia proibia as práticas religiosas, o que significa ao menos uma tolerância com esse universo .

Resistir a compreender as TMAs como elemento cultural popular e seu potencial pró-revolucionário é uma expressão de um racismo encruado nas fileiras dos partidos comunistas. Poucos negam a música, o futebol, a literatura ou outras artes como aliadas dos processos de disputa ideológica, mas alguns ainda insistem em classificar a defesa do direito de defender a religiosidade como degeneração ou desvio. Esquecem-se que no Haiti os templos de Vodoun foram centrais na organização da revolução, que Carlota Lucumi foi inspiração da revolução Cubana, que no Brasil os terreiros ainda resguardam o desejo de liberdade e igualdade.

Propomos, portanto, que o Partido Comunista seja capaz de incorporar as TMAs na sua constelação de elementos da cultura nacional capazes de aglutinar a classe trabalhadora e resgatar um necessário sentimento de libertação.

Os terreiros: religião, tradição, cultura e ideologia

Da Colônia até o capitalismo dependente brasileiro, podemos encontrar diversos grupos negros que se auto-organizaram buscando resistir e enfrentar os regimes que se sucederam no território brasileiro. É incontestável que os Quilombos foram os que apresentaram maior potencialidade política, estendendo-se de norte a sul do país. No entanto, outros grupos específicos se formaram, como os batuques, os terreiros, os centros religiosos, os candomblés, entre outros. As formas organizativas desses espaços se deram de inúmeras maneiras, todas buscando se defender dos regimes que se situavam, onde sofreram e sofrem ataques ideológicos, sociais e culturais permanentemente.

Em analogia, e guardadas as devidas proporções, os espaços de TMAs contemporâneos configuram-se em sentido similar: são espaço onde parte da classe trabalhadora encontra refúgio, em oposição aos valores e práticas sufocantes do neoliberalismo. Apesar de não existir um escrito sagrado e de as lideranças serem descentralizadas, a própria teologia e o conjunto de práticas litúrgicas produzem uma didática anticapitalista.

As TMAs são a reorganização de tradições pré-capitalistas, e por isso resistem (não sem ataques) à mercantilização da vida e da fé. Não nos enganamos que as TMAs carreguem naturalmente um gérmen socialista. Por consequência, não devemos jamais analisar a realidade concreta da luta de classes de uma forma abstrata, isto é, por qualquer convicção ideológica-religiosa que se furte a analisar as condições materiais por uma vontade divina ou superior. Por outro lado, a religião é uma forma intuitiva de interpretar o mundo, e essa intuição pode, nessas tradições, apontar para um mundo radicalmente inclusivo e baseado num senso de comunidade superior aos sofrimentos impostos por uma classe dominante cruel.

Para exemplificar a forma como as TMAs atuam em oposição a ideologia burguesa, lembramos que nesses locais é onde o acolhimento a pessoas da comunidade LGBTQIA+ é mais expressivo, sem falar no forte elemento feminista e da evidente reserva de memória e dignidade da população negra.

O Partido Comunista e as Tradições de Matriz Africana: Caminhos a seguir

Na nossa compreensão, o debate não está encerrado. Além das possibilidades que iremos propor abaixo, acreditamos que o tema abordado por nós nesta tribuna está intrinsecamente ligado à formação social brasileira, portanto, deve ser objeto de análise e conhecimento por toda militância partidária. Para isso, sugerimos abaixo (mesmo que de forma grotesca e sem o aprofundamento adequado) algumas ações práticas que podem ser executadas pela militância do nosso novo partido.

Tópicos que podem ser explorados:

  1. Produção de materiais que façam resgate histórico de eventos e personalidades das TMAs
  2. Criação de organismos que englobam os terreiros nos setores mais subalternizados, como um movimento/coletivo/célula/fração que seja um setor de organização periférica, principalmente por relação de vivência de TMAs.
  3. Disputar as associações representativas da sociedade civil: afrobras, confubras, afrocone-sul, aruanda, etc
  4. Disputar os conselhos municipais, estaduais e federais dos povos de terreiro
  5. Produzir uma linha política de atuação nos espaços de organização popular no sentido de oferecer serviços ou materiais. Como estarmos preparades em situação de risco iminente, possuindo um programa mínimo de atuação previamente elaborado para atuar nos espaços organizados pelos movimentos populares. Neste programa de atuação, é crucial ter formuladas e preparadas nossas ações a serem tomadas quando ao conquistarmos espaços de referência política, desde viabilizar advogades para os movimentos populares, bem como o preparo para enfrentar as forças repressivas do Estado burguês.
  6. Incorporar a estética das TMAs como dentro da identidade visual do partido (Ogum como guerreiro, Xangô como Senhor da Justiça, Iemanjá para acolhimento, Exu como libertário, etc)
  7. Produção audiovisual: na territorialidade de localização das TMAs, antes de se efetivar a regularização do centro religioso, há muitas lideranças religiosas que possuem amplo conhecimento, não apenas da história de sua comunidade religiosa, mas de todo o território. Isso pode ser explorado para estabelecer vínculos com a comunidade e como produção de conhecimento.

Portanto, camaradas, entendemos que as comunidades e os povos de terreiros, devido à sua estrutura interna e ao impacto psicossocial e material ao qual tentamos detalhar dentro das nossas possibilidades, podem ser considerados espaços de grande potencialidade política na construção do poder popular. Esses espaços são combatidos e destruídos permanentemente pela dinâmica dentro da sociedade de classes. No entanto, seguem resistindo e sendo um local de cultura, lazer, saúde, educação, cuidado, alimentação e, principalmente, resistência e luta.


[1] Religiões no Brasil em 2010 (openedition.org)

[2] https://drive.proton.me/urls/7ABCPNECG8#Ll88GVV0uxkp