'Para construir a luta de classes no mundo evangélico' (Daniel Fernandes Teodoro)

O cerne ideológico do anticomunismo brasileiro está justamente nas teologias do mundo evangélico. Entretanto, a observação dos fatos políticos atuais não é muito difícil, o desafio posto a nós é a tática efetiva para a disputa desse meio tão complexo.

'Para construir a luta de classes no mundo evangélico' (Daniel Fernandes Teodoro)
"Só haverá Revolução Brasileira se os trabalhadores disputarem a luta de classes em todos os setores da sociedade, inclusive nas igrejas."

Por Daniel Fernandes Teodoro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Existe um capítulo tenebroso na história recente de nosso país, o qual se prolongará até que os comunistas enfrentem-no reconhecendo suas fragilidades estratégicas e táticas para disputar a luta de classes no Brasil evangélico e religioso. É necessário debater como nós, comunistas, e as esquerdas de forma geral têm tratado este tema.

Os evangélicos não são novidade na história do Brasil, desde a explosão gospel nos anos 90 com bandas de rock cristão – usufruindo da globalização e de seus meios técnicos e informacionais – os evangélicos vem disputando o universo cultural através de músicas, programas televisivos, redes de comunicação e, efetivamente, cooptando cargos e se engajando diretamente na política (CUNHA, 2004). Não é novidade para nenhum brasileiro que Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 principalmente pela politização da extrema direita no mundo evangélico.

A crise humanitária e o negacionismo da pandemia de Covid-19. O pedido de propina em ouro pelo então Ministro da Educação, Milton Ribeiro. As atuais mobilizações para revogar a legalidade do casamento homoafetivo, o pânico moral em torno da legalização do aborto e as infinitas discriminações contra a comunidade LGBTQIA+. Todas essas ações e articulações políticas versam sobre nossa derrota em não debater e disputar a luta de classes no mundo evangélico.

Com o fim do governo cristofascista[1] de Bolsonaro não podemos cometer os mesmos erros. Se a Reconstrução Revolucionária luta pelo Socialismo e pela Revolução Brasileira precisamos reconhecer que ainda há um problema candente que pode nos engolir: as igrejas evangélicas e suas teologias são as principais organizadoras da política nacional, e nelas o cristofascismo bolsonarista está mais vivo do que nunca. Não há praticamente nenhum deputado ou senador de extrema direita que não possua laços políticos com as igrejas evangélicas. Inclusive, o cerne ideológico do anticomunismo brasileiro está justamente nas teologias do mundo evangélico. Entretanto, a observação dos fatos políticos atuais não é muito difícil, o desafio posto a nós é a tática efetiva para a disputa desse meio tão complexo.

Há pelo menos três táticas entre as esquerdas para lidar com os evangélicos na atualidade. O que proponho é a apropriação e crítica destas três para a construção de uma quarta:

  1. Esquerda liberal: a iluminada.
  2. Esquerda social-democrata: em favor da diversidade e a práticas das teologias da libertação.
  3. Esquerda radical: homenagem às teologias da libertação e ausência tática.
  4. Comunistas: pela mobilização e educação política dos evangélicos na luta de classes.

A atitude dos que se enquadram na esquerda liberal nem deveria ser chamada de tática, pois não agrega em absolutamente nada. Pelo contrário, essa perspectiva entende os evangélicos como mal-informados ou “burros”. “A religião é o ópio do povo”, frase de Marx que tiram de contexto e que funciona como um mantra para inferiorizar os evangélicos e conceder mais força estratégica à extrema direita, a qual promove a ideia de perseguição contra os evangélicos por parte da esquerda.

Ao se vender como iluminada a esquerda liberal não percebe o potencial revolucionário dos evangélicos visto que a maioria deles fazem parte da classe trabalhadora.

Já perspectiva da esquerda social-democrata compreende a diversidade do mundo evangélico. Entende que eles não estão todos acomodados politicamente à direita. Contudo, esse discurso é acompanhado de uma certa despolitização prática e invalidação dos evangélicos extremistas enquanto religiosos. Vislumbram viver o “evangelho verdadeiro” ao cuidar dos órfãos e das viúvas e praticar o amor ao próximo seja quem for. Neste grupo, em muitos casos, há a reivindicação e a prática do que apregoa a Teologia da Missão Integral, a Teologia da Libertação, a Teologia Queer etc. Objetivamente, o que ocorre nesta tática é a disputa limitada unicamente ao mundo religioso, fenômeno que produz dissidências com a fundação de comunidades religiosas progressistas[2]. Com isso, ao invés de disputar a realidade concreta dos evangélicos enquanto trabalhadores, a esquerda social-democrata se lança em uma disputa com os extremistas para provar quem tem a “melhor religião”.

Antes de prosseguir é importante destacar o mérito e os limites políticos que a tática social-democrata produz ao fundar comunidades religiosas que acolhem espiritualmente pessoas que são escorraçadas pelas igrejas tradicionais. Muitos evangélicos da comunidade LGBTQIA+, mulheres e a população negra encontram nessas igrejas um refúgio para existir com suas identidades também como religiosos/as/es. Contudo, nosso objetivo enquanto comunistas não é fundar igrejas, mas disputá-las dentro da sociedade destruindo o fascismo e promovendo a consciência de classe entre os evangélicos. Nisso os sociais-democratas falham, pois o cristofascismo continua dominante nas igrejas tradicionais, as quais, mais do que nunca, estão dispostas a expurgar todos os progressistas que ainda resistem em suas fileiras.

Por fim, chegamos à perspectiva da esquerda radical, aqueles que rememoram com fervor as relações entre Revolução Cubana e Teologia da Libertação, entre Revolução Sandinista e Teologia da Libertação. Tecem elogios ao atual trabalho político-religioso do padre Júlio Lancellotti entre os moradores de rua da capital paulista. Aqueles que nos fazem lembrar da relação entre PCB, a luta pela terra e os teólogos da libertação, a exemplo do padre Reginaldo Veloso e Dom Pedro Casaldáliga. Contudo, a questão fundamental é a seguinte: quais são as estratégias e táticas concretas que temos realizado entre os evangélicos para que eles se mobilizem a partir das teologias da libertação? Percebam, há diferença entre a Teologia da Libertação católica e a Teologia da Libertação protestante, mas enquanto o mundo evangélico atual se insere em teologias autoritárias que valida seus símbolos de alguma maneira, insistidos em rememorar a Teologia Da Libertação católica como disputa.

Não haverá Revolução Brasileira ou horizonte Socialista se não disputarmos os evangélicos com uma linha política correta. Não basta apenas reivindicar a memória. Embora isso seja importante, a agitação e propaganda no mundo evangélico precisa usar a linguagem do seu próprio universo.

Nosso objetivo enquanto comunistas não é fundar uma nova igreja ou uma nova religião. O movimento comunista no Brasil precisa entender a espiritualidade religiosa, com todas as suas contradições, como parte da cultura nacional que carece de transformações profundas. Nosso objetivo é fazer os evangélicos se entenderem enquanto trabalhadores e se mobilizarem em função da transformação profunda da sociedade brasileira. Porém, nenhum evangélico se engajará na luta de classes espontaneamente ou de um dia para o outro. Também não seremos os iluminados que os converterão ao marxismo-leninismo. Não podemos replicar a tática liberal, os evangélicos pensam por si mesmos. Nas palavras de Lênin:

Nenhum livro educativo erradicará a religião das massas oprimidas pelos trabalhos forçados do capitalismo, massas dependentes das cegas forças destruidoras do capitalismo, enquanto essas massas não aprenderem, elas próprias, a lutar unidas, organizadas, sistemática e conscientemente contra a raiz da religião, contra a dominação do capital sob todas as formas. Decorrerá daqui que o livro educativo contra a religião é prejudicial ou inútil? Não. O que daqui decorre não é nada disso. Daqui decorre que a propaganda ateísta da social-democracia deve ser subordinada à sua tarefa fundamental: desenvolver a luta de classes das massas exploradas contra os exploradores (LENIN, 2022, p. 97).

Nossa tarefa é participar da educação política do proletariado evangélico para que ele dispute politicamente seu próprio espaço religioso. Para isso precisamos estar junto aos evangélicos, estudar suas teologias, seus símbolos, suas representações e seus significados. Apesar das contradições dos sistemas religiosos estarem calcadas sobre o capital, é válido lembrar que a maior parte das perspectivas religiosas partem de um pressuposto coletivo. A radicalização de Malcolm-X, por exemplo, não começou efetivamente de maneira política, ela se desenvolveu atravessada por suas crenças religiosas. Em outras palavras, elas foram seu pontapé inicial para um desfecho quase socialista. Precisamos explorar taticamente esses pontos das teologias evangélicas, por isso necessitamos de formações para compreender os universos evangélico-religiosos. Necessitamos de militantes evangélicos e religiosos. Nossos panfletos tentam promover consciência de classe e surtem pouco ou nenhum efeito porque nossa linguagem enquanto materialistas-históricos não faz sentido algum aos/às trabalhadores/as que procuram alento espiritual em meio às opressões diárias – eis a vitória das igrejas evangélicas sobre nosso trabalho de base obtuso.

Queremos educar o proletariado através de teorias e conceitos ao invés de politizá-los por meio de seus próprios símbolos e mitos religiosos. Marx não extraiu o conceito da alienação capitalista de uma parábola bíblica? O bezerro de ouro é uma história que está em Êxodo 32. Por que não fazemos o caminho inverso (da parábola para o conceito) em nossa agitação e propaganda?

Em um texto de 1902 sobre a agitação política e o ponto de vista de classe, Lênin adverte:

é nosso dever direto explicar ao proletariado todo protesto liberal e democrático, expandi-lo e apoiá-lo, com a participação ativa dos operários, seja ele um conflito [...] entre a nobreza e o regime policial da Igreja Ortodoxa, entre os estatísticos e os burocratas, entre os camponeses e os funcionários Zemstvo, entre as seitas religiosas e a polícia rural, etc., etc. Aqueles que torcem o nariz com desdém diante da pequeneza de alguns desses conflitos ou a "desesperança" das tentativas de ventilá-los em uma conflagração geral, não percebem que a agitação política geral é precisamente um foco em que os interesses vitais da educação política do proletariado coincidem com os interesses vitais da desenvolvimento social como um todo, de todo o povo, isto é, de todos os seus elementos democráticos.É nosso dever direto nos preocupar com todas as questões liberais, determinar nossa atitude social-democrata em relação a ela, para ajudar o proletariado a participar ativamente da solução dessas questões, de modo a obrigar uma solução à sua maneira. Quem evita tal interferência está, de fato (independentemente de suas intenções), sucumbindo ao liberalismo, deixando a educação política dos operários em suas mãos, cedendo a hegemonia na luta política a elementos que, em última análise, são líderes da democracia burguesa (LENIN, 2022, p. 55-56).

Adaptando à realidade religiosa do Brasil, os comunistas que não se importam com as contradições teológicas e políticas do mundo evangélico estão “sucumbindo ao liberalismo, deixando a educação política dos operários [evangélicos] em suas mãos”. Só haverá Revolução Brasileira se os trabalhadores disputarem a luta de classes em todos os setores da sociedade, inclusive nas igrejas.


[1] Conceito cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle, em 1970. Para ela o cristofascismo é uma teologia do poder autoritário tal como ocorreu na Alemanha nazista onde a apropriação do fundamentalismo religioso pelo governo procura legitimar o desprezo aos pobres, a idealização da família cristã, a perseguição às minorais sociais e aos grupos de esquerda.

[2] É importante mencionar que, embora os católicos sejam citados aqui de forma indireta através da Teologia da Libertação (seja a de Gustavo Gutiérrez, a de Leonardo Boff ou qualquer outra), sua diferente organização eclesiástica permite uma maior diversidade de pensamentos teológicos e de práticas político-religiosas sem haver, necessariamente, dissidências como no mundo evangélico, apesar dos católicos conservadores também se acomodarem politicamente à extrema direita nos últimos tempos.


Bibliografia

LENIN, Vladimir Ilitch. Lênin e a religião. 1 ed. São Paulo: Lavrapalavra, 2022.

CUNHA, Magali do Nascimento. “Vinho novo em odres velhos”: um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. 2004, 347 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.