'Os prejuízos da violência entre camaradas' (David Américo)

Tal ideologia faz com que a política no partido só seja para os “fortes”, para os que possuem firmeza, segurança e que sabem ferramentalizar a violência em prol de seu argumento.

'Os prejuízos da violência entre camaradas' (David Américo)

Por David Américo para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Tenho percebido que um comportamento muito danoso é amplamente normalizado pela nossa militância. Ele é tão naturalizado que as próprias pessoas prejudicadas por ele não o apontam como problema, ainda que claramente seja nocivo politicamente e individualmente.

Apesar de ser nova na militância, já fui alvo, presenciei e ouvi relatos de camaradas que sofreram violência enquanto tentavam contribuir politicamente com as discussões que estavam sendo pautadas. Isso ocorre em núcleos de base, comitês regionais, nacionais e - de forma ainda mais explícita e grave - em congressos. 

Essas violências aparecem de distintas formas. Às vezes são camufladas como repreensões para se seguir o método da reunião, outras vezes são usadas como ferramenta para “vencer” um debate e convencer pessoas ao redor do ponto que defende, enquanto desqualifica e ofende camaradas.

Já vi questões de ordem sendo trazidas de modo grosseiro e ríspido a fim de constranger militantes inexperientes e os silenciar. Também já observei gestos e expressões de desprezo enquanto camaradas novos fazem suas falas (como balançar negativamente com a cabeça durante a fala de outra pessoa, por exemplo). Além de debates cujo argumento primário é acusar a outra parte de “falta de acúmulo”, “imaturidade teórica” ou “inocência”. 

Isso é visto por todes quando acontece, mas não costuma ser apontado e criticado. O motivo, creio eu, é a enraizada ideia de que a política precisa ser dura e violenta. Note que estou me referindo à disputa política entre camaradas, não contra a classe dominante. Nos casos aos quais me refiro, não se trata de violência organizada da luta de classes, mas sim de vícios replicados do próprio patriarcado, o qual faz uso dessas estratégias como forma de dominação: pelo grito, pelo constrangimento e pela braveza. 

Dessa forma, se a política entre camaradas precisa ser dura e violenta, quem não tem essa dureza ou não sabe/gosta de usar a violência acaba não conseguindo ocupar os mesmos lugares de disputa que aqueles que o fazem. Tal ideologia faz com que a política no partido só seja para os “fortes”, para os que possuem firmeza, segurança e que sabem ferramentalizar a violência em prol de seu argumento.

Essa “força” é essencial para a revolução. Contudo, caso seja direcionada a camaradas, que benefícios isso nos traz? Tratar militantes com violência pode inibir a participação política e prejudicar a saúde mental. Me parece contraproducente insistir nesse comportamento enquanto ele traz prejuízo ao partido e ao indivíduo, pois tenho total certeza de que somos plenamente capazes de persuadir sem desrespeitar ou intimidar.

Além disso, criticar esses comportamentos nocivos associados ao ambiente político entre camaradas pode acabar sendo um demonstrativo de fraqueza, despreparo e inadequação, o que pode resultar em mais uma violência: pressionar pessoas a se adaptarem a esse ambiente, pois caso não o façam, não terão acesso a esse espaço. O que, inclusive, retroalimenta esse sistema interno de violências. 

Eu posso estar completamente enganada sobre as conclusões que tirei, afinal não possuo o acúmulo político e teórico de muites de nossos camaradas. Porém, o sentimento de que não sou capaz de ocupar espaços dentro do partido é algo que está presente em mim. Talvez esse sentimento também esteja em outres camaradas.

Tal possibilidade me trouxe muita preocupação, já que seria um grande prejuízo político deixar de ouvir acúmulos e vivências de qualquer camarada em função de um vício totalmente desnecessário, ainda que enraizado no nosso partido. Isso também me fez pensar sobre como podemos já ter perdido ou perder contribuições valiosíssimas de militantes unicamente pelo fato de que se sentem inibidos ou inadequados na nossa convivência. 

Se queremos ser a vanguarda da revolução para a classe trabalhadora brasileira, acredito fortemente que essas pessoas precisam ser disputadas e bem acolhidas entre nós. Isso implica em criar um ambiente interno saudável, receptivo e que possa proporcionar uma sociabilidade acolhedora para os camaradas.

Hoje, do meu ponto de vista, não é isso o que nós temos. Digo isso com base no alto número de militantes afastados por questões de saúde mental. Todos conhecemos camaradas valiosíssimes que “quebraram” em função das contradições da nossa dinâmica interna, apesar de frequentemente não assumirmos nossa responsabilidade e tratarmos desses problemas.

Creio que enquanto não passarmos a encarar e trabalhar para resolver nossos desvios internos, continuaremos perdendo militantes novos e experientes e, consequentemente, perdendo novas ideias, visões de mundo e camaradas.  

Não sou uma pessoa dura e nem violenta. Esse não é o tipo de política que quero internamente e nem sou capaz de fazê-la contra meus camaradas. Talvez eu realmente não seja adequada ao partido ou não mereça ocupar este espaço em função disso, porém quero lutar para construir uma sociabilidade em que pessoas como eu possam existir e pertencer sem precisar adoecer.