Os porquês do abolicionismo penal e das justiças alternativas (transformativa, comunitária) como linha política para o PCBR
Quando nós, marxistas e abolicionistas, nos deparamos com situações de conflitos, tentamos remar contra a maré da ideologia burguesa na atuação prática de mediação de conflitos dentro da nossa organização, mas não sem enxergar a sua influência em nós mesmos e também nas vítimas.
Por Grupo de Pesquisa em uma práxis entre Abolicionismo Penal e Justiças Alternativas | Tribuna de Debates
“Numa Utopia moderna não haverá, de fato, perfeição: na Utopia também deve haver atritos, conflitos e desperdício, mas o desperdício será enormemente menor do que no nosso mundo.”
H.G. Wells (1905)
A perspectiva antipunitivista rumo ao abolicionismo penal é um horizonte e um fim, que começa com toda a reestruturação da segurança pública e da política criminal, bem como do sistema de justiça. Alteramos a ordem da resolução, mas são exatamente estas palavras que constam nas nossas resoluções, no parágrafo 15 do ponto D do Programa do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
Neste sentido, estamos há mais de um ano fazendo pesquisa sobre os temas que vão de encontro a esse parágrafo em específico. Para contar nossa história, o grupo de pesquisa surge de uma ideia compartilhada entre pessoas de uma mesma organização, camaradas engajados com outras formas de se orientar para a mediação de conflitos e lutar contra as opressões. Também pelo fim das polícias e de todo aparato burguês sobre a hegemonia da segurança pública/trato da violência em sociedade capitalista. Nosso grupo não se fecha apenas com camaradas de uma mesma organização, mas também nos encontramos com organizações aliadas ou militantes independentes aliados à nossa causa, sejam eles parentes de vítimas de violência policial/jurídica, seja parentes de pessoas privadas de liberdade.
Ser abolicionista tem, para além de apenas o fim das prisões, o objetivo de refletir e imaginar outras formas de tratamentos de violência em sociedade. Refletir sobre como a violência se dá na nossa sociedade e ter em mente como o racismo, o sexismo, o machismo e o capacitismo promovem a manutenção do sistema. A ideologia decorrente do sistema capitalista e individualista opera bloqueando a imaginação, é preciso imaginar para se opor ao sistema econômico que organiza todos os aspectos sobre a vida humana.
Parte-se, então, do engajamento anticapitalista, tratando de estudar e debater as linhas políticas abolicionistas e antipunitivistas que já existem, de modo a funcionarem como um farol norteador de nosso campo de luta e pesquisa. Quando iniciamos o grupo, através de nossas pesquisas e reflexões, consideramos o campo da ficção como uma importante ferramenta para ampliar o horizonte sobre a realidade de todas as pessoas oprimidas. Um grande exemplo dessa perspectiva é a autora negra Octavia Butler, com seu conteúdo de ficção sobre afrofuturismo que, diante de sua própria experiência como mulher negra, começou a escrever sobre o poder que as pessoas negras poderiam ter em outra realidade. Butler é considerada a “grande dama da ficção científica” e construiu sua carreira à revelia de todo o universo masculino e branco de autores desse gênero literário.
Nossa abordagem começou a ser pensada através do livro “Estarão as prisões obsoletas” de Angela Davis. Neste livro, a ativista traz dados sobre o porquê devemos na pergunta “reformar ou abolir as prisões” escolher a abolição. A autora demonstra o trabalho ideológico que a prisão realiza — “ela nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global”.
Ao continuarmos a acompanhar a carreira abolicionista de Davis também tivemos contato com outros livros da autora, como é o caso do que é escrito por ela e suas colegas Gina Dent, Erica R. Meiners e Beth E. Richie, que participam de diferentes organizações na luta contra o fim das prisões e novos modos de mediação de conflitos.
Para refletirmos sobre violência, especialmente as que são consequência do racismo e colonialismo, que constantemente se atualizam no capitalismo, acessamos “Os condenados da terra” de Frantz Fanon. Além de exemplificar como opera a barbárie colonial nos indivíduos e na sociedade, o estudioso defende a ideia de uma revolução violenta como forma de transformação social, pois segundo ele os oprimidos “não tinham nada a perder, a não ser os seus grilhões”.
O que nos levou a Françoise Vergès em “Um feminismo decolonial” e “Uma teoria feminista da violência” nos quais a cientista política parte das teorias de Fanon, Angela Davis e Aimé Cesaire para idear conceitos para um feminismo decolonial que se apoia na resistência das mulheres autóctones e das mulheres escravizadas, para a autora essas pioneiras promoveram um feminismo de quilombagem que “afirmava a possibilidade de um futuro mesmo quando ele era negado pela lei, pela igreja, pelo Estado e pela cultura”. Entendemos que há contradições no conceito de decolonialidade em relação ao marxismo, mas a leitura da Françoise Vergès é fundamental no campo que estamos nos debruçando.
Para aprofundar a concepção de quilombagem lemos o sociólogo brasileiro Clóvis Moura - “A quilombagem como expressão de protesto radical”. Moura apresenta a quilombagem como um processo permanente de negação radical ao sistema escravista (presente hoje na violência policial, racismo, etc).
Depois de ler a teoria desenvolvida por esses importantes pensadores, sentimos a necessidade de exercitar a imaginação para começar a pensar alternativas sociais viáveis de serem aplicadas em nossa comunidade e em outras vindouras. Portanto, decidimos começar pelo livro “Sci-fi abolicionista” que é também produto de um grupo de pessoas abolicionistas da Escócia, Inglaterra e País de Gales e apresenta como justificativa o abolicionismo relacionado à justiça transformadora de formas criativas.
SOBRE ANTIPUNITIVISMO E MILITÂNCIA
O antipunitivismo por si, não é uma resposta prática e totalizante para a mediação de conflitos e reparação, o antipunitivismo é um farol teórico e filosófico que busca compreender e experimentar a mediação das relações humanas em conflito, experimentando uma nova forma social que não seja a mera reprodução da justiça burguesa. Nós, enquanto antipunitivistas e MARXISTAS, devemos lembrar de Marx afirmando que nós, trabalhadores, fazemos a nossa própria história, mas não a fazemos segundo a nossa vontade, mas a partir das circunstâncias materiais, políticas e econômicas impostas pelo passado na história da luta de classes.
Assim, rompemos com a ideia de crime x punição também através da linguagem, onde a renomeação por conflito, por mais banal que pareça, traz um peso político grande, pois ao romper com a ideia de “crimes” e “criminosos”, tiramos a carga histórica racista e patriarcal que compõe o ideal de quem são criminosos e consequentemente, passíveis de punição na história do desenvolvimento da economia capitalista. A resposta que a justiça burguesa dá para os que são chamados criminosos é o cárcere e o isolamento social. E o funcionamento ideológico que as prisões causam em nós tem peso enorme, pois como coloca Angela Davis:
O cárcere está presente em nossa vida e, ao mesmo tempo, está ausente de nossa vida. Pensar nessa presença e nessa ausência simultâneas é começar a compreender o papel desempenhado pela ideologia em modelar a forma como interagimos com nosso entorno social. Consideramos as prisões algo natural, mas com frequência temos medo de enfrentar as realidades que elas produzem. Afinal, ninguém quer ser preso. Como seria angustiante demais lidar com a possibilidade de que qualquer pessoa, incluindo nós mesmos, pode se tornar um detento, tendemos a pensar na prisão como algo desconectado de nossa vida. Isso é verdade até mesmo para alguns de nós, tanto mulheres quanto homens, que já vivenciaram o encarceramento.
Assim, nos organizamos socialmente entendendo que os outros é que serão encarcerados, não nós. Os outros é que são os malfeitores, não nós. E neste modo de funcionamento da relação crime e encarceramento, sabemos que, desde a sua origem, a punição tem como alvo central indivíduos não-brancos, mulheres, pessoas de sexualidades dissidentes e trabalhadores pobres de forma geral, pois é uma necessidade do modo de produção capitalista, a manutenção da opressão e da exploração do proletariado para o bom andamento da reprodução da força de trabalho e a criminalização da pobreza em última instância. No Brasil, essa característica é uma determinação do modo de produção escravista, sendo essa herança escravocrata evidente na composição étnico/racial da população carcerária e vítimas da violência policial. Acreditamos que não é necessário um levante histórico do papel da tortura, violência física/sexual, detenção e exército/polícia na consolidação do projeto colonial neste território.
Então, quando nós, marxistas e abolicionistas, nos deparamos com situações de conflitos, tentamos remar contra a maré da ideologia burguesa na atuação prática de mediação de conflitos dentro da nossa organização, mas não sem enxergar a sua influência em nós mesmos e também nas vítimas.
Quando nos propomos a pensar sobre formas alternativas de justiças que fujam da regra punitivista, não significa que ignoramos o papel individual de qualquer sujeito envolvido em um conflito, muito pelo contrário, o devido reconhecimento enquanto protagonista e responsabilização do indivíduo é fundamental na resolução do conflito, ao mesmo tempo em que pensamos em formas justas de aplicar a reparação que não seja submetendo vítima e agressor a novas violências e principalmente, experimentando para construir ferramentas que evitem que essa violência se repita.
A falta de mediação devida de qualquer caso, impede a identificação dos principais fatores e a devida responsabilização dos indivíduos sem que isso gere uma carga de adoecimento para quem se envolve, e que uma série de desvios liberais afloram no desenrolar dos casos e na medida que as frustrações da(s) pessoa(s) violentada(s) (que não são de responsabilidade exclusiva da militância) não são atendidas.
Essa falha na mediação por parte da nossa organização, é, sobretudo, fruto da nossa inexperiência na mediação de conflitos e das condições materiais impostas pelo capitalismo sobre cada militante individualmente. A demanda por acolher, mediar, conciliar e reparar nos é imposta diariamente, junto com todas as demais violências compulsórias pela contradição capital x trabalho. Assim, a centralização da demanda sobre alguns camaradas em suas relações interpessoais e a não coletivização das situações, podem resultar em erros políticos, na reprodução de mais violências e no desvio político dos principais envolvidos e interessados na resolução dos casos ao terceirizarem de forma pessoal a responsabilidade de resolução, não de forma particular, resolverem o caso após ter sido coletivizado.
O PARTIDO E O ABOLICIONISMO PENAL — RELAÇÕES INTERPESSOAIS X PCBR
As opressões enquanto expressões explícitas das violências e da manutenção do modo de produção capitalista, no cotidiano, tem o poder de influenciar a nossa forma de se relacionar através da ideologia burguesa, assim, na infinidade de relações que temos diariamente, é impossível não a reproduzirmos em algum nível mesmo que inconscientemente, haja visto que estamos inseridos dentro da lógica liberal burguesa.
Dentro dessa análise, ainda é necessária a reflexão de qual o papel de uma organização comunista nas relações interpessoais de militantes. O papel principal de um partido revolucionário é a construção da revolução através da organização política e ideológica da classe trabalhadora, nesse ínterim, temos a responsabilidade de mediar e acolher, as mazelas sofridas pelos membros da nossa classe, mas essa não é a sua função principal.
Para além da realidade vivida pela nossa militância, temos barreiras concretas que impedem o suporte necessário para sanar as agruras de todos. A falta de tempo, organização e principalmente experiência nesse sentido, nos obriga a ter uma limitação na mediação dessas questões que nos empurra a fazer, não o que queremos, mas sim o que podemos fazer. Assim, qualquer medida de mediação deve ser coletivizada tanto para garantir a oxigenação do debate a partir de perspectivas diversas, como para evitar a sobrecarga e a individualização da responsabilidade. Quando um caso é levado para o coletivo ele se torna não mais uma situação particular e incomum, mas um caso passível de ser tratado com responsabilidade comum da organização indo de encontro à ideia que estamos estudando sobre justiça comunitária. Neste sentido, algumas questões ecoam sobre nosso papel coletivo enquanto organização frente à estes tipos de situações, elencamos algumas:
1) Qual o lugar que o partido pode ter nas relações interpessoais e espaços de militâncias sobre as opressões?
2) Se o partido somos nós, então precisamos admitir que as relações interpessoais pautam muito as ações do/no partido?
3) Como as denúncias podem ser recebidas? Quais denúncias serão dispensadas?
4) Como apontaremos firmemente os desvios?
5) Qual o papel do partido nas opressões? ou melhor, qual o papel educativo do partido na construção de uma UNIDADE IDEOLÓGICA que avance para o fim das opressões conjuntamente ao fim da sociedade de classes? E como isso se dará?
JUSTIÇAS ALTERNATIVAS: EXPERIMENTAÇÕES E A CRÍTICA E AUTOCRÍTICA ENQUANTO MOTORES NA LUTA ANTIOPRESSÕES
A negociação desse terreno também continua a criar práticas experimentais e coletivas de segurança, responsabilidade e cura, desvinculadas do sistema jurídico-penal existente. Frequentemente denominadas, de modo formal, responsabilidade comunitária ou justiça transformativa, essas ferramentas e práticas (com a análise que as acompanha) fornecem e proliferam respostas sem envolver o Estado carcerário ou punitivo. O engajamento é reativo — o que fazer em caso de dano e violência — e também fornece exemplos e ideias de estruturas preventivas mais amplas e a longo prazo — como impedir que danos e violência aconteçam. As práticas de responsabilidade comunitária e de justiça transformativa emanam de nossas estruturas políticas e oferecem várias maneiras concretas para que as pessoas se engajem.
Camaradas, pensar um mundo novo com outro modo de organização social e com um novo ser humano é uma tarefa gigantesca e, enquanto comunistas, inclusive, somos constantemente julgados sobre isso, sendo taxados de utópicos. Em meio a esta caminhada também vemos pessoas ao nosso lado quebrando e se desiludindo com a ideia do comunismo. Mesmo assim, embora muitas vezes também desgostosos no como as coisas se desenrolam, continuamos lutando e desenvolvendo novas formas e experimentos para avançar nas pautas e resoluções de conflitos em cada tempo histórico existente.
Continuamos lutando e olhando aos nossos camaradas com a certeza de que eles também estão olhando para um mesmo horizonte e nesses jogos acusatórios todos encontramos os desvios que nos impedem de avançar. É difícil lidar com o fato de que já vimos situações se repetirem e continuamente camaradas valorosos se separando de nós na luta. Pensar o processo de crítica e autocrítica como motores da nossa organização se faz necessário para que encontremos cada vez melhores problemas e que não caíamos sempre nos mesmos buracos. De todos os casos que lidamos sobre violências e opressões dentro de nossas fileiras, necessário dizer que diante de tantos desvios e conflitos — e sofrimentos —, parece que nos falta enxergar o que Frantz Fanon colocou em seu livro Os Condenados da Terra:
De certo tempo para cá fala-se muito em autocrítica, mas será que se sabe que ela é, antes de tudo, uma instituição africana? Seja nas djemaas da África do Norte: ou nas reuniões da África Ocidental, manda a tradição que os conflitos surgidos numa aldeia sejam debatidos em público. Autocrítica em comum, é certo, mas com uma nota de humor porque todo o mundo está à vontade, porque em última análise todos queremos as mesmas coisas.
Possibilitar essa visão de que em última análise todos queremos as mesmas coisas é dizer para a ideologia dominante que não somos indivíduos separados como nos é dito, mas que o cuidado e a solidariedade são nossa linha frente à batalha contra o capitalismo. Assim, remamos contra a maré junto com revolucionários que pensam a comunidade — como o quilombo — como modo de construir um novo mundo. E desenvolver experimentos sobre formas comunitárias de resolução de conflitos é avançar no nosso objetivo. Ainda não sabemos exatamente como, mas temos avançado.
Referências
A quilombagem como expressão de protesto radical de Clóvis Moura. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2019/11/a-quilombagem-como-expressao-de-protesto-radical/
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
VERGÈS, Françoise. Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção São Paulo: Ubu Editora, 2021.
Davis, Angela, 1944-. D292e. Estarão as prisões obsoletas? / Angela Davis; tradução de Marina Vargas. – 1ª ed. – Rio de. Janeiro: Difel, 2018.
DAVIS, Y. Angela. DENT, Gina, MEINERS, Erica, RICHIE, Beth. Abolicionismo. Feminismo. Já. Companhia das Letras.
THOMAS, Phil Crockett. org. Sci-fi Abolicionista. Editora Igra Kniiga. www.igrakniga.com