'Os nossos símbolos: breves notas sobre tática, estratégia e o valor de um século' (Vicente Ferrer)

Em primeiro lugar, se imaginarmos que a identificação com nossa simbologia advém mecanicamente de ver seus instrumentos de trabalho representados em uma bandeira, não poderíamos jamais considerar facão, enxada e flecha como símbolos universais de nossa classe trabalhadora.

'Os nossos símbolos: breves notas sobre tática, estratégia e o valor de um século' (Vicente Ferrer)
"Quanto a esse ponto, ocultar nossas bandeiras (sejam físicas ou as pautas de nosso programa) e recusar formas de trabalho que possam vir a ser reprimidas e criminalizadas pelo Estado burguês como questão de princípio somente pode levar ao imobilismo e à diluição de nossas pautas em nome de um possibilismo que não alcança nem mesmo aquilo em nome de que se rebaixa."

Por Vicente Ferrer para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Saudações, camaradas.

Venho trazer alguns apontamentos e provocações inicialmente sobre a discussão — não inédita, mas reavivada recentemente — sobre nosso símbolo. Como abordo esse ponto de forma em certo sentido incidental — já que não tenho opinião fechada sobre o mérito (se devemos manter a foice e o martelo ou substituí-la, e, caso sim, pelo quê) — passo a algumas reflexões mais amplas e por vezes um pouco caóticas, mas que vão se seguindo, espero, de forma inteligível. O que me leva a escrever nesse momento tem mais a ver com um incômodo que tenho sentido quanto aos argumentos de uma e outra posição, sobretudo na relação com nossa história, seja do PCB ou do movimento comunista em geral.

Do porquê abandonar a foice e martelo: tática e estratégia

O camarada Vesúvio, que eu já “conhecia” de sua tribuna do início do mês de outubro sobre a condução do processo de ativo da RR no Rio Grande do Sul, cutucou o vespeiro que iniciou a presente polêmica sobre os símbolos do novo Partido, contemplados no artigo segundo do projeto de estatuto:

“Art. 2º O símbolo que nos representa é a foice (simbolizando os trabalhadores rurais) e o martelo (simbolizando o proletariado urbano).”

Com a ressalva de que considero essa pauta certamente relevante e tive bastante acordo com muitas das sóbrias considerações do camarada sobre a cisão no RS, achei esta contribuição mais recente bastante aquém da primeira. No próprio texto está justificada a indisponibilidade de tempo para desenvolver os argumentos, mas sendo sincero achei-os pouco convincentes em princípio, e não por falta de elaboração. Irei me ater ao excerto seguinte, em que se encerram basicamente os dois argumentos para abandonar a foice e martelo em favor de um novo símbolo:

“Adotar tal símbolo [isto é, um brasão de ferramentas localizado e atualizado para o Brasil contemporâneo] seria o ideal. Ao mesmo tempo que manteria nossa identidade como comunistas, geraria mais identificação da massa e ajudaria a nos destacar dos demais partidos de nosso campo político. De brinde, ainda ajuda a evadir ofensivas fascistas que querem criminalizar o símbolo histórico, semelhante ao que ocorreu na Ucrânia.

Não há como recorrer à retórica baseada na distorção das experiências socialistas do século XX para colocar na ilegalidade um símbolo novo. Não que isso nos torne imunes a tais medidas, apenas dificulta a vida dos nossos inimigos de classe.”[1]

Em primeiro lugar, se imaginarmos que a identificação com nossa simbologia advém mecanicamente de ver seus instrumentos de trabalho representados em uma bandeira, não poderíamos jamais considerar facão, enxada e flecha como símbolos universais de nossa classe trabalhadora. Nenhuma dessas é ferramenta do proletariado urbano: dos cerca de 100 milhões de brasileiros ocupados, “só” 8,4 milhões trabalham com “agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura”, segundo o PNADC mais recente,[2] sendo certamente uma parcela muito pequena destes que diretamente lidam com as ferramentas manuais citadas. Caso fosse necessário, para potencializarmos nossa inserção de massas, adotar símbolos que remetem diretamente a ferramentas de trabalho utilizadas cotidianamente pela grande maioria dos trabalhadores brasileiros, mais valeria adotarmos logo o ícone do Whatsapp, a julgar pela paralisação de toda sorte de atividade econômica nacional nos dias em que o aplicativo sai do ar.

Brincadeira à parte, com isso não quero dizer que devemos nos afastar de categorias que usem estes instrumentos de trabalho. Aliás, nem me coloco contrário a essa simbologia, em princípio, ainda que considere que a proposta foi exposta de forma insuficiente. Meus pontos são, em suma, os seguintes:

(1) é impossível contemplar, por mais que nos empenhemos em localizar e atualizar nossas insígnias, a classe trabalhadora brasileira em sua totalidade e diversidade com um único símbolo, ou conjunto de símbolos, sendo necessário selecionar alguns elementos (por diversos méritos que podem ser discutidos) e abstrair os demais.

(2) qualquer identificação que venhamos a causar na classe trabalhadora necessariamente se dará, primordialmente, pelo nosso programa e atuação. É também a nossa linha e nossa prática que virão a atestar o caráter comunista da organização e a diferenciação com outras forças de nosso campo, não qualquer simbologia ou elemento estético por si.

Faço somente uma ressalva final sobre esse ponto: ainda que o texto não aborde isso diretamente, o elemento da flecha, que simboliza os povos indígenas, é algo sobre o qual também tenho reflexões, que infelizmente terei que desenvolver em outro escrito, por questões de escopo da presente tribuna.

Sobre a segunda porção do argumento do camarada, a possibilidade de nos preservarmos em algum grau de investidas do Estado burguês — sobretudo, segundo expresso no texto, de manobras judiciárias e legislativas visando a clandestinidade e perseguição dos comunistas — sinceramente não vejo mais que um idealismo pouco refletido. Seria aceitar que não é a vontade política de nossos inimigos de classe, aliada a um cálculo da correlação de forças na luta de classes, que condiciona a tentativa (e eventual concretização) de investidas legalistas contra nossa organização e luta.

É tomar como plausível, para citar um exemplo entre tantos outros possíveis, que o PCB e todos os mandatos sob sua legenda não poderiam ter sido cassados em 1947 se não fosse a tecnicalidade de chamar-se então Partido Comunista do Brasil, ao invés de Brasileiro. É verdade que, por razões históricas, a propaganda anticomunista está muito ligada à foice e martelo enquanto símbolos, o que pode vir a dar algum verniz de legitimidade à nossa perseguição em setores específicos. Ainda assim, não podemos ter a ilusão de que um pretexto ser falso, ilegítimo perante a população ou francamente risível impedirá por um único momento sua instrumentalização para nos criminalizar. As considerações serão sempre outras. A melhor forma de não ser perseguido enquanto comunista é juntando-se à reação (e mesmo assim não há garantia).

Quanto a esse ponto, ocultar nossas bandeiras (sejam físicas ou as pautas de nosso programa) e recusar formas de trabalho que possam vir a ser reprimidas e criminalizadas pelo Estado burguês como questão de princípio somente pode levar ao imobilismo e à diluição de nossas pautas em nome de um possibilismo que não alcança nem mesmo aquilo em nome de que se rebaixa.

Do porquê preservar a foice e martelo: história e tradição

Por outro lado, uns tantos argumentos que vi serem expressos em resposta ao escrito do camarada — até o momento no X/Twitter, pois quando escrevo ainda não foi publicada qualquer resposta em formato de tribuna e ainda não temos uma plataforma interna de debates (alô, CNTI!) — me pareceram também muito pouco refletidos. Não citarei nominalmente es camaradas, porque não se propuseram a desenvolver seus argumentos (o que espero que façam, em resposta a esse escrito) e também porque não conheço os nomes de todos para além dos respectivos usuários.

Inicio com uma breve nota histórica sobre a foice e martelo, apenas para que debatamos a partir dos mesmos pressupostos. O símbolo tem origem após a revolução de outubro de 1917, para suprir a necessidade de insígnias do novo Estado soviético, baseando-se em tipos já comuns na produção estética bolchevique. Até então a representação estética canônica do movimento social-democrata e posteriormente comunista era a cor e mais especificamente a bandeira vermelha, desde pelo menos a Comuna de Paris, sem que existisse um símbolo ou estampa específicos. Em materiais gráficos bolcheviques (e mesmo do antigo POSDR) já era recurso comum a figura de um trabalhador com martelo em riste, simbolizando a destruição da velha ordem e construção da nova. A foice é o elemento de adição mais recente, para representar o campesinato; originalmente chegou a ser um arado, o que perdurou em insígnias militares soviéticas pelo menos até 1923. Embora a forma “final” da foice e martelo tenha origem ligeiramente controversa, é consenso que não existia até, pelo menos, o primeiro trimestre de 1918.[3]

Isso tudo para dizer que a foice e o martelo não representam algo universal e ahistórico sobre o movimento de emancipação da classe trabalhadora, mas está ligado especificamente à Revolução de 1917. Sua adoção mundial posterior diz respeito, em grande parte, à hegemonia que o Partido Bolchevique, posteriormente PCUS, gozou entre as organizações comunistas, ao longo do século XX, desde sua tomada do poder do Estado russo. Não faço essas colocações para defender o abandono da foice e martelo, mas para que reflitamos criticamente sobre nossa história antes de defendermos algo tendo como principal ou único argumento o passado e tradição do movimento comunista. Acho essa linha de pensamento bastante perigosa, inclusive porque se tomássemos essa posição como princípio, nunca poderíamos ter rachado com o velho PCB, que hoje tem a mesma idade que teria a União Soviética e foi fundado sob a III Internacional, numa época em Lenin ainda estava vivo.

Não nos cabe, igualmente, aceitar como dever ostentar a foice e martelo somente porque o símbolo tremulou sobre o Reichstag na derrota da Alemanha nazista, como vi ser expresso. Por esse critério, também as bandeiras dos EUA e do Reino Unido estiveram presentes e a elas não devemos respeito algum, por esse ou qualquer outro motivo.

A União Soviética foi a primeira experiência de ditadura do proletariado (para não entrar em polêmicas sobre seu socialismo), sua fundação é pedra de toque para virtualmente toda esquerda que se reivindica marxista. E o que temos para mostrar por isso, depois de mais de trinta anos da sua dissolução? O PCB já foi o maior partido do Brasil, vultos enormes da história nacional passaram por ele, pautas essenciais para a classe trabalhadora tiveram o PCB como ator determinante em sua defesa e conquista. E hoje, entre velho PCB e RR, não conseguimos mobilizar cinco mil pessoas nacionalmente, nem mesmo tocar um ciclo de propaganda minimamente eficaz fora de localidades muito específicas e algumas bolhas de internet.

Pergunto, camaradas, se há algo mais absolutamente estéril do que brigar por um vínculo, formal, histórico ou estético, com uma reunião que nada teve de transcendental, naquele último final de semana de março de 1922 em Niterói, ou mesmo com a ligação que se estabeleceu a partir daí com os órgãos da então Comintern. Nesses termos têm se digladiado há pelo menos 60 anos PCB e PCdoB, com a posterior chegada de PPS/Cidadania e P.C.B. (por nós chamados de Fração Vermelha), entre outros mais obscuros que posso desconhecer. Se devemos à tradição ali fundada grandes conquistas históricas para a classe trabalhadora brasileira, também devemos avaliar criticamente em que medida essa mesma tradição nos trouxe à conjuntura francamente catastrófica com a qual nos deparamos hoje.

Certamente por todos os erros e desvios da URSS, sua dissolução foi um desastre humanitário terrível e que rebaixou ainda mais as condições de se contrapor em qualquer medida a hegemonia geopolítica dos EUA e seus asseclas. Certamente um PCB hoje em dia com dimensão proporcional à que tinha pré-1964, mesmo com uma linha vacilante democrático-popular, seria uma força importantíssima contra a ofensiva neoliberal. Mas essas forças existiram, objetivamente. E foram derrotadas, objetivamente. Se não cabe rejeitá-las completamente, não devemos igualmente idealizá-las como um momento passado ao qual almejamos retornar, porque então fomos muito mais fortes e relevantes do que somos hoje. Os sucessos de então não nos preservaram de tantos reveses e derrotas que experienciamos, e, aliás, a maneira como se deram se conta entre as causas do que hoje enfrentamos.

Devemos ter o cuidado de sermos críticos com nossa própria história, e não com melindre quanto a “autofagia”. Não podemos nos deixar cair em engodo e propaganda liberal, mas se há algo que nosso passado ensina de forma muito clara é a medida em que poupar um oportunista da crítica implacável hoje é semear a liquidação de amanhã. O PCB, nos grandes rachas de 1962 e 1992, sempre se preservou como o mais próximo de um partido “da URSS” no Brasil. Até onde essa fidelidade nos trouxe, senão a um declínio menos espetacular que o do PCUS, mas que culminou na nossa irrelevância da mesma maneira? Por óbvio, com isso não quero dizer que a rejeição à URSS conduz à linha correta e à relevância organizativa. PCdoB, PPS e P.C.B. em momentos e por razões distintas mostram como o rompimento com os soviéticos nada significa de positivo, em si.

O arremate do meu argumento é: nenhuma ferramenta em nosso arsenal é tão poderosa quanto a crítica, e seu escopo deve ser “de tudo que existe”. O que inclui nossos símbolos, para não nos conformarmos em ser um grupo de saudosistas em torno de uma identidade e uma estética, de enormes quadros históricos (quase todos mortos tendo abandonado a organização e mesmo a causa, ou sido abandonados por ela) e grandes feitos (há muito desfeitos e esquecidos). Usemos da crítica, mesmo naquilo que nos toca afetivamente, pois nossas conquistas do passado estão muito aquém de nossos desafios presentes e futuros e ter a linha mais correta em um racha nunca protegeu ninguém dos piores desvios.


[1] https://emdefesadocomunismo.com.br/rever-e-discutir-o-artigo-2/

[2] IBGE, Pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, por grupamento de atividade no trabalho principal, PNAD contínua 2023.3. Acesso em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5434.

[3] Soboleva, N. A. (2008). From the History of Soviet Political Symbolism. Russian Studies in History, 47(2), 59–91. doi:10.2753/rsh1061-1983470204, pp. 65-67, 76-78.