'Os comunistas devem assumir posição vanguardista em temas caros a esquerda' (Marcos Honório)

É sintomático que alguns partidos do campo marxista tenham empreendidos desvios a direita, o que também é verdadeiro, em maior ou menor grau, em partidos sociais-democratas

'Os comunistas devem assumir posição vanguardista em temas caros a esquerda' (Marcos Honório)
"A crise em curso do PCB demonstrou que a maioria dos militantes do complexo partidário tem capacidade de crítica aguçada, com um alto grau de combatividade, não permitindo nem mesmo abusos da dirigência do partido. Essas características se‌ ‌mostrarão valiosas, mais um vez (mas não pela última vez), na hora de nós, os comunistas brasileiros, começarmos a assumir a posição de vanguarda em diversas discussões que permeiam o ambiente político brasileiro."

Por Marcos Honório para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Após a suposta celebração fúnebre da qual Marx teria participado (com a dissolução do bloco do leste e uma economia chinesa sem a pujança que alcançou nas últimas duas décadas), as esquerdas mundiais passaram por custosas situações onde imperavam um só objetivo — fazer sobreviver, um dia após o outro, a posição mantenedora do campo progressista frente ao neoliberalismo.

Com maior ou menor disposição para o enfrentamento ao capitalismo, alguns partidos comunistas penaram para conservar qualquer perspectiva revolucionária, muitos deles apenas tentando manter-se operantes. Outros partidos, nos quais não se sobrepôs a orientação revolucionária, deram de cara com a degenerescência naqueles terríveis anos de final de século.

É sintomático que alguns partidos do campo marxista tenham empreendidos desvios a direita, o que também é verdadeiro, em maior ou menor grau, em partidos sociais-democratas. Essas mudanças de direção deixaram pra trás valiosíssimos artigos passíveis da espoliação por pessoas ou organizações mal-intencionadas. Uma reivindicação subjugada, uma pauta vista com aspereza, um grupo mal compreendido, um erro de avaliação— tudo isso, a depender do observador, valia mais que ouro.

A pauperização que acomete certos grupamentos com intensidade distinta, as contradições de gênero e raça que ganharam novas correntes de compreensão analítica, os novos desafios da classe postos pelas condições do tempo presente, a suposta nova dinâmica em torno da posse dos meios de produção (com a expansão das bolsas de valores e o “desaparecimento” da figura caricaturesca do burguês) e outras questões pontuais mais dispersas são temas onde, por vezes, escapam das nossas mãos a capacidade de pautarmos debates que permeiam a cosmologia política, tanto institucional como a que se dá em ambientes variados.

"O oleiro faz um vaso manipulando a argila

Mas é o oco (a vacuidade!) do Vaso que lhe dá utilidade"

Lao Zi (576-490 a.C)

Subvertendo o filósofo fundador do taoísmo, podemos assumir algo como: “a vacuidade representativa dos marxistas em temas vitais da vida humana’ é o que confere grande poder a aquelas pessoas, organizações ou movimentos que citei no início do texto. É imprescindível que o movimento comunista brasileiro tenha o tipo de inserção necessária para conseguir fazer gravitar em torno de si as aspirações antissistêmicas do povo; na onde houver a demanda por uma proposta de reforma política, lá devemos estar apresentando nossas concepções revolucionárias. Caso contrário, outros agentes políticos podem tratar de catalisar esse ímpeto insurreto, fazendo com que aquela massa de corações descontentes provenha a legitimidade político-social que um movimento fascista de massas precisa.

É necessário dizer, também, que eu não sou signatário da acepção que propõe que essas parcelas da classe trabalhadora com predisposição para a radicalidade são somente isso: observadores passivos do desenvolvimento histórico. Confronto essa percepção frontalmente com a ideia de que é nesses setores da classe onde há a maior candência mobilizadora, aquela que reunirá em torno de si as condições historicamente colocadas da Revolução Brasileira. É verdade, porém, que na ausência do nosso envolvimento — do envolvimento dos 6comunistas — surgem novas propostas, novas dimensões político-organizativas, que desembocam em outros cenários que não o da emancipação do proletariado. A bem da aferição, há na história recente do Brasil experiências pregressas que confirmam essa tese.

Acerca desse último tema: não advogo, também, pra ideia de tutelagem da classe trabalhadora por parte dos comunistas — para que isso não aconteça, é necessário que o instrumento maior da luta de classes, o partido comunista, seja um partido da classe trabalhadora e a seu serviço, como genialmente propuseram outros camaradas.

Não são apenas os fascistas que se apropriam da capacidade organizacional em repouso (mas que pode despertada nas condições corretas) de vários grupos. Essa mesma estratégia também é empregada pela centro-esquerda e pela esquerda liberal. Figuras vacilantes, com passados incautos e afiliações torpes podem chegar depois — ou até mesmo antes — dos fascistas para atender ao clamor por representação dos inconformados. Dilma Roussef foi eleita com 54.501.118 votos nas eleições de 2014. Em 2016, ela sofre um golpe levado a cabo pela direita, com ajuda até mesmo de forças internacionais. Muito importante para a consumação e legitimação do golpe, foi o aparato midiático fornecido aos golpistas pelo Grupo Globo. Em 2017, o então Ministro da Justiça, agora Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, apresentou seu Plano Nacional de Segurança, que fincava ao solo a posição do Estado como gestor da violência institucional contra grupos à beira da marginalização, encarcerando e executando a população preta e periférica em nome de uma “guerra às drogas”.

Com a mudança da linha editorial da rede Globo durante o período Bolsonaro (não expressa por conta de uma repentina tomada de consciência ou iluminação divina, e sim afim de retomar algum tipo de cenário de estabilidade, visando o aprimoramento dos resultados econômicos, já que o governo de ocasião tinha declarado guerra à emissora) e com o papel que Moraes desempenhou nas eleições de 2022, no pós-pleito e, mais recentemente, na decisão pela inelegibilidade de Jair Bolsonaro, alguns setores da esquerda parecem ter esquecido das atuações perversas desses que citei.

Glenn Greenwald, diferentemente, parece enxergar a hipocrisia das parcelas da esquerda que agora cultuam, de alguma maneira, Alexandre de Moraes, como se ele, na figura de Ministro da Suprema Corte, tivesse blindado a “democracia brasileira”. Vejam bem: essa compreensão é absurda, além de ser grotesca. Alexandre de Moraes, junto de Nuno Marques (indicado de
Bolsonaro à vaga no Supremo), Dias Toffoli, Roberto Barroso e Cármen Lúcia, é o Ministro do STF que tem a maior tendência de votar contra o trabalhador, como expôs o ConJur. Alexandre de Moraes é um aliado tático dos trabalhadores? Seria Moraes um arauto da democracia, como apontam alguns setores da esquerda? Para o autor, as respostas para essas duas perguntas é não.

A Globo parece, também, ter tido sua sentença relaxada pela esquerda após a realização das eleições de 2022, por motivos semelhantes aos de Moraes, mas com o acréscimo de outra variável: é fácil enxergar que a Globo, desde a segunda metade dos anos 10, tem mudado suas escolhas editoriais. Me refiro principalmente aos conteúdos voltados ao entretenimento, onde, na minha visão, há um maior cuidado com as decisões de roteiro e abordagem. Em 2023, completamos dez anos desde que foi exibido, em rede nacional e em horário nobre, o primeiro beijo gay em uma telenovela da Globo. É imperativo que pessoas LGBTQIA+ tenham representatividade em todos os segmentos da indústria cultural, mas a Rede Globo vacila na hora de confirmar essa posição quando, nesse ano, censurou por duas vezes cenas de beijo lésbico, na série “Aruanas” e na telenovela “Vai na Fé”. Para além disso, a representatividade vazia, para o autor, não gera avanços práticos na luta civilizatória da população LGBTQIA+¹.

Ora, é Glenn Greenwald que deve pautar esses questionamentos? O mesmo Glenn Greenwald que saiu em defesa do YouTuber Monark, após este ter tido suas contas suspensas das redes sociais, através de uma decisão de Alexandre de Moraes? Um absolutista da liberdade de expressão, com filiações trêmulas, que defendeu que o massacre na boate Pulse, em Orlando, Flórida, não se tratou de um crime de ódio motivado por homofobia, deve ser o responsável por puxar esse carro de boi? Eu estou convencido que não, camaradas.

Para que outros Glenns — ou gente ainda mais mal intencionada, fascistas stricto sensu — não continuem mais tomando posição vanguardista em temas históricamente caros as esquerdas, precisamos fazer com que o movimento comunista brasileiro cresça quantitativa e qualitativamente. A crise em curso do PCB demonstrou que a maioria dos militantes do complexo partidário tem capacidade de crítica aguçada, com um alto grau de combatividade, não permitindo nem mesmo abusos da dirigência do partido. Essas características se
mostrarão valiosas, mais um vez (mas não pela última vez), na hora de nós, os comunistas brasileiros, começarmos a assumir a posição de vanguarda em diversas discussões que permeiam o ambiente político brasileiro.

¹ o autor, na sua condição de homem branco, cis e hétero, tem interesse de aprofundar esse debate junto de camaradas versados nesse tipo de discussão. Aqui, corro o risco de fazer parecer que eu subjugo a importância da representatividade, o que não é o caso, apenas faço uma avaliação da capacidade desse tipo específico de representação de imprimir mudanças na realidade concreta. Mas é um debate que eu adoraria ter com camaradas que possam me fazer uma exposição mais acertada sobre o assunto.


Marcos Honorio, militante do Comitê de Luta Pelo Poder Popular de Mogi-Mirim
Itapira, 21 de agosto