Os 100 anos da morte de Lênin e a reconstrução da teoria revolucionária

O “senso comum” de que o leninismo não seria mais do que a “materialização” do marxismo, espécie de teoria posta em prática, motivo pelo qual “a defesa do partido de revolucionários profissionais, organizados sob o centralismo democrático” se tornou sua formulação mais “revisitada”.

Os 100 anos da morte de Lênin e a reconstrução da teoria revolucionária
"Para nós, retomar e rememorar Lênin é, dentre outras árduas e imperiosas tarefas, reconstruir a teoria revolucionária para reconstruir o Partido de vanguarda que será capaz de conduzir e construir a Revolução Brasileira."

Parte 1 — Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário

Editorial – Por ocasião dos 100 anos da morte de Lênin, revisitamos neste editorial uma de suas obras mais conhecidas e estudadas. Não o fazemos como mero exercício escolástico, nem com o ensejo de oferecer ao público uma espécie de fichamento teórico ou coisa que o valha. Nos debruçaremos sobre o Que Fazer? (1902) para combater a estreiteza e o oportunismo daquela que se tornou a face mais conhecida da obra teórica de Vladímir Ilitch Uliánov Lênin. Essa face, a saber, o “senso comum” de que o leninismo não seria mais do que a “materialização” do marxismo, espécie de teoria posta em prática, motivo pelo qual “a defesa do partido de revolucionários profissionais, organizados sob o centralismo democrático” se tornou sua formulação mais “revisitada”. [1]

Com o tempo, a célebre afirmação de Lênin, “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”, foi reduzida à estreita compreensão de uma suposta exaltação da práxis — por vezes desembocando num praticismo —, omitindo-se o conteúdo expresso pelo complemento dessa afirmação (e também seu contexto no livro): “Nunca será demasiado insistir nessa ideia em uma época em que a propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática”[2]. A propaganda oportunista e a profusão de formas rebaixadas de atividade prática são os temas fundamentais contra os quais Lênin se ergue em combate no Que Fazer?; de maneira que a oposição inconciliável entre os métodos de trabalho economicistas e revolucionários e suas distintas propostas de organização partidária — por exemplo, jornais locais versus um jornal único para toda a Rússia — são decorrências da reconstrução histórico-teórica operada por Lênin, no sentido de defender ortodoxamente a unidade inabalável da teoria marxista.

Nas páginas seguintes, Lênin dá continuidade ao seu raciocínio, retomando as formulações de Engels, reafirmando a existência de três formas de luta fundamentais, e não duas, como habitualmente defendiam os economicistas russos. Nas palavras de Engels, “a luta é conduzida metodicamente nas suas três direções — teórica, política e econômica-prática (resistência contra capitalistas) —, coordenadas e articuladas entre si”[3]. Ao recorrer ao velho mestre alemão, já se demonstrava implicitamente os limites precisos do rebaixamento da atividade prática dos revolucionários ao terreno único da luta econômica, “resistência contra capitalistas”. Mas sobretudo, buscava-se colocar no centro do debate o marxismo não como uma teoria revolucionária, mas como a teoria revolucionária do proletariado.

Em seguida, Lênin destrincha brevemente a gênese da teoria marxista, nascida “das teorias filosóficas, históricas e econômicas formuladas por representantes instruídos das classes proprietárias, por intelectuais”. De fato, seus próprios fundadores, Marx e Engels, “pela sua situação social, pertenciam à intelectualidade burguesa”. Ele destaca, desse modo, que a teoria revolucionária do proletariado “surgiu de uma forma completamente independente do avanço espontâneo do movimento operário”[4].

Não à toa, Marx e Engels travaram uma luta teórica incansável contra todo tipo de ecletismo e tendências burguesas e pequeno-burguesas no movimento operário do século XIX. Mas também partiram da análise crítica das teorias socialistas que os precederam, chamadas por eles de socialismo utópico. Essas se tratavam, em geral, de tentativas filosófico-políticas de superar as mazelas da luta de classes capitalista mantendo as bases do modo de produção social vigente, portanto, preconizando uma teoria burguesa para o proletariado (Owen), ou uma teoria pequeno-burguesa reacionária para o proletariado (Proudhon). No entanto, essas teorias falharam em oferecer uma teoria revolucionária do proletariado, na medida em que falharam em identificar a gênese do modo de produção capitalista e construir a partir dela uma teoria fundamentada na independência política do proletariado e na sua luta pela hegemonia na revolução, ao invés de todo tipo de concessões conciliatórias e reboquistas em termos políticos.

Lênin ressalta que o surgimento da teoria marxista na Rússia não foi muito diferente desse processo. Se, por um lado, analisa o surgimento da teoria revolucionária em seu país, por outro, analisa a história do movimento operário na Rússia do século XIX, para então extrair da síntese desses dois momentos as tarefas imediatas de seu período histórico. Lênin, então, parte sua análise da disseminação do movimento operário por todo o país na década de 1890, a partir do renascimento do movimento com as greves pela redução da jornada de trabalho de 1896 em São Petersburgo. Segundo Lênin, ainda que tenham atingido um caráter de certa forma geral, as greves dos anos 1890 não deixavam de se caracterizar profundamente pelo “elemento espontâneo”. Em comparação com os motins que culminaram na destruição de máquinas na Rússia das décadas de 1860 e 1870, as greves de 1890 pareciam mais atrasadas, na medida em que os motins “já expressavam um relativo despertar do consciente”, tamanho foi o progresso do movimento naquele período[5].

Ao destacar o caráter desigual do desenvolvimento da consciência, Lênin se opõe aos economicistas que preconizavam um ascenso quase linear da consciência espontânea para a consciência revolucionária por meio da predominância da luta econômica e do sindicalismo como sua forma predominante  Analisando o movimento operário russo do século XIX, ele conclui que o “elemento espontâneo” é apenas a forma embrionária do consciente. As greves de 1890, assim, representavam “mais uma manifestação de desespero do que uma luta”, sendo, no máximo, “lampejos de consciência”. Se os motins eram revoltas dos oprimidos, as greves sistemáticas representavam os embriões da luta de classes, nada mais que embriões[6]. As greves sindicais dos anos 1890, embora representassem um enorme progresso em relação aos motins das décadas de 1860 e 1870, permaneciam, ambos, no terreno “essencialmente espontâneo”. Por fim, as greves dos anos 1890 não eram ainda luta de classes revolucionária, eram apenas a forma embrionária do consciente, isto é,

assinalavam o despertar do antagonismo entre os operários e os patrões, ainda que os operários não tivessem, e nem poderiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre seus interesses e a ordem política e social existente [...] os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata [revolucionária]. Esta só podia ser introduzida de fora[7].

A consciência revolucionária só pode ser introduzida de fora do desenvolvimento espontâneo do movimento operário porque o proletariado “valendo-se exclusivamente de suas próprias forças, só é capaz de elaborar uma consciência trade-unionista [sindical]”, isto é, a consciência da necessidade de se organizar em sindicatos, de lutar contra seus patrões por melhores condições de reprodução de sua força de trabalho e lutar contra o governo por leis necessárias aos operários[8]. Dessa formulação é que parte a constatação da necessidade de um partido de vanguarda que marche à frente das massas, justamente para que a vanguarda revolucionária não seja ultrapassada pelo ascenso espontâneo das massas e o movimento se perca na espontaneidade ao invés de assegurar seu desenvolvimento consciente até a tomada do poder.

Precisamente porque "a multidão não é nossa", é insensato e indecoroso bradar pelo “assalto” imediato, uma vez que o assalto é o ataque de um exército regular e não a irrupção espontânea de uma multidão. Precisamente porque a multidão pode ultrapassar e desestruturar o exército regular é que se faz absolutamente necessário que o nosso trabalho de "organização extraordinariamente sistemático" no exército regular se desenvolva no mesmo passo do ascenso espontâneo, pois que, se isso for obtido, será maior a probabilidade de o exército regular não ser ultrapassado pela multidão, marchando à sua frente, na sua vanguarda[9].

O inicial desenvolvimento da teoria marxista de maneira relativamente independente do desenvolvimento espontâneo do movimento operário russo, fazia com que Lênin concluísse pela necessidade de fusão do socialismo com o movimento operário por meio de um trabalho que tenda "a aproximar e fundir num todo a avassaladora força espontânea da multidão e a avassaladora força consciente da organização dos revolucionários"[10].

É por conta da necessidade imperiosa de uma defesa intransigente da rigorosa unidade da teoria marxista que Lênin se concentra nos problemas práticos da organização da revolução, é na medida em que a luta teórica fundamenta a organização política da vanguarda revolucionária que Lênin se centra, em especial no capítulo cinco do livro, no problema de como efetivamente educar as massas para a revolução.

Na polêmica do Iskra com os economicistas, estes destacavam a necessidade imediata de organizar o movimento operário na luta sindical de modo mais amplo possível, a agitação política e os organismos locais deveriam ter, portanto, prioridade, na medida em que garantiriam a difusão dos social-democratas de maneira abrangente a nível nacional. A proposta de um jornal único para toda a Rússia, nessa visão, seria um exercício diletante de teorização, quando o que se precisava era de um trabalho prático sistematicamente amplo e difundido em múltiplos centros de agitação locais; defendia-se, desse modo, a oposição entre "o trabalho no papel" (teórico) e "o trabalho político vivo na base" (prático), bem como a oposição entre o trabalho "entre os operários instruídos" e "as massas"[11]. Por sua vez, Lênin sustentava que a única maneira de superar o caráter artesanal do trabalho partidário era pelo combate a dispersão e fragmentação das forças revolucionárias, que deveriam ser organizadas e concentradas por meio de um trabalho comum a todos que permitisse a formação sistemática de quadro revolucionários para o trabalho de agitação política. A dispersão das forças em centros de difusão publicista locais não apenas era contraproducente, como também limitava o trabalho do partido junto do proletariado ao desenvolvimento espontâneo do movimento operário, portanto, impedindo o fomento de de uma consciência revolucionária vinda de fora e relegando o próprio partido a um caráter reboquista de retaguarda do movimento operário, e não de vanguarda. Por isso, era falsa a oposição defendida pelos economicistas entre o trabalho teórico e o trabalho prático.

as massas nunca aprenderão a travar a luta política se não ajudarmos na formação de dirigentes para essa luta, oriundos tanto dos operários instruídos quanto dos intelectuais; tais dirigentes podem ser formados, exclusivamente, quando iniciados na apreciação sistemática e cotidiana de todos os aspectos da nossa vida política, de todas as tentativas de protesto e de luta das diferentes classes e por diferentes motivos. Por isso, falar de "educação de organizações políticas" e, ao mesmo tempo, opor "o trabalho no papel" de um jornal político ao "trabalho político vivo na base" é simplesmente ridículo! [...] Num momento em que a importância das tarefas da social-democracia é rebaixada, o "trabalho político vivo" só pode começar exclusivamente através de uma agitação política viva, impossível de se realizar se um jornal para toda a Rússia, que apareça frequentemente e se difunda de forma regular[12].

Parte 2 — Reconstruindo o movimento comunista brasileiro

O declínio do marxismo-leninismo como instrumento teórico e prático para a ação dos comunistas no cenário político brasileiro durante a segunda metade do século XX constitui uma narrativa familiar ao atual movimento comunista brasileiro. Em um período de crise da alternativa socialista como fundamento político-ideológico da atuação comunista em todo o mundo após a contrarrevolução na União Soviética e, em particular, na tentativa de liquidação do Partido Comunista Brasileiro nos anos 1990, coube a um restrito grupo de militantes a tarefa histórica de resistir contra  a ofensiva liquidacionista que acometia não apenas o PCB mas também as organizações revolucionárias e partidos comunistas de todo o mundo.

Contudo, a clareza teórica das divergências ideológicas fundamentais que cindiam os oportunistas e os comunistas, naquele tempo histórico, ainda não havia se deparado com o desenvolvimento histórico da crise estrutural e global do capitalismo que possibilitaria a tomada de consciência de tais divergências no seio do movimento comunista internacional. No período que antecede a definição e o delineamento da estratégia socialista no XIII Congresso do Partido Comunista Brasileiro, a Reconstrução Revolucionária do PCB — apesar de sua inegável relevância e importância histórica — assentava-se em bases teóricas não tão sólidas; por um lado, sustentando-se em um apego  à sigla,  à história e ao nome do PCB, que acabou por denominar-se “pecebismo” e, por outro, incorrendo em um praticismo economicista centrado em manter o Partido vivo, ganhar corações e mentes para poder continuar existindo, sobretudo, em seus moldes jurídicos e eleitorais.

Não somente o Partido carecia de uma Reconstrução Revolucionária, como também a teoria revolucionária na qual se assentava exigia tal reconstrução. Pouco a pouco, surge uma nova compreensão — que se expressou mais vigorosamente com uma nova geração de quadros militantes — oriunda das mais contraditórias e violentas facetas do capitalismo agravadas com a crise internacional do capitalismo desde 2008. A desilusão crescente com os governos sociais-democratas, o aumento do desemprego e da informalidade, a pobreza em constante crescimento, e os conflitos bélicos interimperialistas deparam-se com um movimento comunista difuso e desorganizado, abalado pela narrativa e política neoliberal dominante no cenário internacional.

Assim, esse cenário político impulsionou uma parte significativa da militância, especialmente sua juventude, a redescobrir a importância das ferramentas históricas do proletariado e a necessidade de uma ruptura com o sistema capitalista. As contradições ideológicas que balançavam o movimento comunista brasileiro entre o economicismo e o academicismo tornam-se progressivamente insustentáveis a partir da entrada dessa nova geração de quadros. A materialização dessas contradições na prática política da atuação de parte da vanguarda comunista permite a reconstrução teórica e a tomada de consciência sobre o período de degeneração  no qual  nos encontrávamos.

Perante o desenvolvimento relativamente  espontâneo do espírito revolucionário dentre as novas gerações  do movimento comunista brasileiro, sobretudo sua juventude, não somente a prática política do Partido precisava ser reconstruída, mas também a teoria revolucionária que fundamentava tal prática. Ecoa-se, então, os primórdios da cisão, a partir das movimentações político-ideológicas que desenrolaram-se no movimento comunista internacional — tão bem expressos no Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB —, que não por acaso constituem-se como o ápice das contradições ideológicas no Partido, pois é no cenário internacional onde as tais contradições se tornam mais maduras e evidentes.

Assim como Lênin buscou combater “a união de um praticismo mesquinho com a mais completa despreocupação em relação à teoria”[13], a tomada de consciência ideológica pelo grosso de nossa militância resultou no entendimento da necessidade de superar o atual estágio do desenvolvimento partidário para edificar uma vanguarda verdadeiramente revolucionária sob princípios leninistas que há tempos se dissipavam em distorções oportunistas do arsenal teórico-prático de Lênin. Da negação da unidade de seu pensamento à cômica e trágica repreensão da leitura de seus textos anteriores a 1917, o burocratismo engessava a teoria revolucionária em prol de um taticismo e um pragmatismo estreitos.

100 anos após a morte de Lênin, para além do conjunto de sua teoria, sua análise histórica do desenvolvimento do movimento revolucionário russo se mantém com formidável atualidade. Da caracterização do "terceiro período" do Partido Operário Social Democrata Russo (1897-1902) marcado pela "dispersão, desagregação e vacilação", à necessidade de sua superação e abertura dos caminhos para um possível "quarto período", podemos extrair valiosas lições para nosso movimento hoje:

“Ignoramos quando terminará o terceiro período e começará o quarto [...]. Mas temos a firme convicção de que o quarto período levará à consolidação do marxismo militante, que a social-democracia sairá da crise ainda mais forte e mais vigorosa, de que ‘em troca’ da retaguarda dos oportunistas se colocará um verdadeiro destacamento de vanguarda da classe mais revolucionária”[14].

Para nós, retomar e rememorar Lênin é, dentre outras árduas e imperiosas tarefas, reconstruir a teoria revolucionária para reconstruir o Partido de vanguarda que será capaz de conduzir e construir a Revolução Brasileira.


[1] FAZZIO, Gabriel Landi. O Desenvolvimento leninista do marxismo. Lavrapalavra, 2023. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2023/01/16/o-desenvolvimento-leninista-do-marxismo/

[2] LÊNIN, V. I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2015, página 71.

[3] ENGELS apud LÊNIN, 2015, p. 73

[4] Ibid., p. 79-80

[5] Ibid., p. 78

[6] Ibid., p. 78-79

[7] Ibid., p. 79

[8] Ibid., p. 79

[9] Ibid., p. 242

[10] Ibid., p. 242

[11] Ibid., p. 226-227

[12] Ibid., p. 228-229

[13] LÊNIN, 2015, p. 251

[14] Ibid., p. 252


Referências

FAZZIO, Gabriel Landi. O Desenvolvimento leninista do marxismo. Lavrapalavra, 2023. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2023/01/16/o-desenvolvimento-leninista-do-marxismo/

LÊNIN, V. I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2015.