“Olha o pesado!” A dura realidade dos ambulantes no Carnaval

A realidade de trabalhadoras e trabalhadores ambulantes nas grandes cidades revela a exploração por trás da maior festa do Brasil: “A nossa luta é por trabalho o ano todo”.

“Olha o pesado!” A dura realidade dos ambulantes no Carnaval
Na cidade de Olinda, famosa por seu Carnaval, trabalhadoras ambulantes garantem a alegria dos foliões durante os ensaios dos cortejos. Fotos: Jornal O Futuro.

Por Redação

O Carnaval de 2025 começa na primeira semana do mês de março. Os grandes centros urbanos se preparam para receber contingentes enormes de foliões. No ano passado, enquanto cerca de 8 milhões de pessoas festejavam no Carnaval do Rio de Janeiro, 11 milhões lotavam as ruas de Salvador e 3,4 milhões celebravam em Recife, uma outra face da festa passava despercebida: a rotina exaustiva e invisível dos trabalhadores que fazem a festa acontecer. Enquanto uns se deslumbram com o brilho dos blocos e o luxo dos camarotes, outros enfrentam jornadas exaustivas, riscos constantes e condições precárias de trabalho para tornar esse espetáculo possível. Como demonstra o documentário “Cidade Ambulante”, de Alex Teixeira e Victor Belart, que acompanhou o trabalho de ambulantes durante o Carnaval de 2024 no Rio de Janeiro, em sua abertura, “o Rio de Janeiro é uma cidade ambulante; boa parte das coisas que fizeram essa cidade ser reconhecida no mundo vão ter a ver com a rua e com o trabalho de pessoas que dificilmente são reconhecidas por isso”.

Falando das condições de vida e de trabalho em entrevista ao Jornal O Futuro, Jorge (43), ambulante há mais de 20 anos na cidade do Rio de Janeiro, conta como a luta da categoria dura o ano todo, não apenas no Carnaval - apesar das condições, nessa época do ano, serem muito mais precárias por conta da intensidade e da pressão do trabalho nas ruas. Sobre o que poderia ser melhorado para o trabalho dos ambulantes, Jorge ressaltou: “Melhorar o ano todo é a luta dos ambulantes, ter acesso à cidade, poder circular livremente, porque o ambulante é isso, é andar, viver dos eventos na rua. Queremos poder circular na cidade e trabalhar tranquilos”. Jorge, que trabalha desde muito jovem, também contou como a situação dos eventos de rua, cada vez mais privatizados e com vários blocos tradicionais encerrando atividades, acaba por piorar ainda mais as formas de trabalho dos ambulantes, que enfrentam as piores condições de segurança, higiene e saúde no trabalho informal, sujeitos à apreensão das mercadorias pela polícia a todo momento.

Mesmo com os kits fornecidos pela patrocinadora, Ambev, para os vendedores credenciados (compostos por isopor, guarda-sol e descontos em produtos), os ambulantes não têm qualquer garantia trabalhista e previdenciária ou suporte para enfrentar os riscos inerentes à atividade. “A credencial só serve para limitar o trabalhador”, apontou Jorge, já que o material fornecido é não apenas insuficiente para quem vive disso, como cria uma situação em que os ambulantes são tratados como empreendedores autônomos, sem acesso a direitos fundamentais, mesmo desempenhando uma função essencial à operação e à lucratividade da patrocinadora nos dias de folia. Essa lógica deslegitima o trabalho dos ambulantes, porque funciona como se a atividade fosse apenas algo para complementar renda, não como o trabalho de uma categoria trabalhista. Sobre esses certificados dados pela Ambev, Jorge afirma que essa medida não funciona para quem realmente vive do trabalho ambulante, já que os isopores são muito pequenos e não dão conta da quantidade demandada pelas festas e blocos carnavalescos.

Já em São Paulo, segundo a juíza Patrícia Almeida Ramos, da 69ª Vara do Trabalho de São Paulo, ouvida pelo Brasil de Fato, essa dinâmica é particularmente preocupante, pois os trabalhadores são “jogados à própria sorte”. Ramos destaca que a relação entre a Ambev e os ambulantes simula um contrato entre empresas, com a Prefeitura de São Paulo atuando como mediadora, mas sem qualquer responsabilidade trabalhista envolvida. Assim, os ambulantes ficam expostos a acidentes, violência e prejuízos financeiros, sem apoio de nenhuma das partes.

Além do trabalho por longas horas, expostos diretamente ao sol, os trabalhadores ambulantes também precisam separar muitas horas dos dias para o planejamento, compra e organização dos materiais. Apesar desse cenário, os trabalhadores que se empenham para a realização das festas de Carnaval são profundos conhecedores da história da cidade e da história das manifestações culturais e populares. O ofício dos vendedores ambulantes não só é fundamental para o acontecimento do Carnaval, como são eles que carregam boa parte das características fundamentais dessa expressão cultural e popular.

Em muitos casos, as condições de trabalho colocam a saúde dos ambulantes em risco, podendo ser caracterizadas como insalubres. Embora a legislação brasileira exija a oferta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) em situações similares, a informalidade do trabalho no Carnaval dificulta o cumprimento dessas obrigações.

Entre 2015 e 2017, 55,5% das pessoas que ingressaram no trabalho ambulante eram mulheres, em sua maioria negras. Apesar de desempenharem funções similares às dos homens, elas enfrentam uma série de desigualdades, como remuneração inferior (17% das mulheres ganham menos de R$200, contra 11,2% dos homens), e menor autonomia, refletida na baixa concessão de licenças formais de trabalho. Além disso, as mulheres são mais frequentemente exploradas por redes de cobrança ilegal e enfrentam condições mais precárias, como jornadas extenuantes e ausência de suporte adequado para suas necessidades.

Katia Maria, Seyla Rabelo, Dara Maria, Adriana Francisca, trabalhadoras ambulantes em Olinda, garantem a alegria dos foliões durante os ensaios de Carnaval. Fotos: Jornal O Futuro.

Essas trabalhadoras também lidam com desafios específicos relacionados ao papel social imposto às mulheres. A falta de acesso à educação infantil para os filhos e de infraestrutura básica, como banheiros, compromete seu desempenho e intensifica o esforço necessário para equilibrar trabalho e responsabilidades familiares. Muitas vezes, as mulheres precisam levar seus filhos para os pontos de venda devido à ausência de redes de suporte. A pesquisa do Observatório das Metrópoles e do Movimento Unidos dos Camelôs (MUCA) mostra que cerca de metade delas realiza refeições na própria barraca, em razão do menor rendimento ou da falta de estrutura no local de trabalho, o que compromete ainda mais sua saúde e qualidade de vida.

Mesmo assim, o trabalho como ambulante e camelô oferece a algumas mulheres uma alternativa frente à exploração do mercado formal, permitindo maior flexibilidade para lidar com demandas familiares e escapando de ambientes frequentemente opressores em empregos de baixa qualificação. Contudo, essas conquistas individuais não são suficientes para mitigar a precariedade estrutural enfrentada por essa população, que ainda carece de políticas públicas efetivas, como creches e regularização de licenças.

A informalidade da categoria dos ambulantes é um dos motivos pelos quais esses trabalhadores estão sujeitos à repressão diariamente, tendo suas mercadorias apreendidas e sendo agredidos pelas forças repressivas do Estado, enquanto deveriam garantir a segurança e condições dignas de trabalho durante todo o ano, e não apenas no Carnaval. Jorge contou, em sua entrevista, que o trabalho dos ambulantes tem ficado cada vez mais difícil fora dos períodos de grandes eventos. Para agravar esse cenário, a gestão do prefeito Eduardo Paes, que já declarou que camelôs não poderão mais ocupar o centro da cidade, defende a criação de uma Força Municipal que recrute egressos das Forças Armadas para complementar o trabalho da Guarda Municipal, aumentando as forças policiais ostensivas que frequentemente agridem os trabalhadores.

A insegurança é outro fator alarmante: os cordeiros, trabalhadores do Carnaval em Salvador, são fundamentais para a organização dos blocos e vivem situações de trabalho desumanas e constantes agressões no exercício da função de separar aqueles que pagam dos que não pagam para acessar os blocos. Enfrentam jornadas extenuantes, sem proteção adequada, por uma remuneração irrisória de apenas R$80 por seis horas de trabalho - um aumento de apenas R$20 em relação ao ano anterior, mas que só foi possível graças a uma intensa mobilização sindical.

Historicamente, os cordeiros eram foliões, mas, com o tempo, sua função se transformou em “muros humanos”, protegendo os foliões de blocos contra populares e agressões. Hoje, são submetidos a condições degradantes, “próximas à escravidão”, segundo os próprios. Muitos abandonam os postos em meio à folia devido ao nível de humilhação enfrentado.

O Carnaval também escancara a exploração do trabalho infantil. Crianças e adolescentes são frequentemente vistos vendendo produtos ou coletando materiais recicláveis, atividades que os expõem a situações perigosas, como acidentes, exploração sexual e violência. Entre 2020 e 2022, as denúncias de trabalho infantil ao Ministério Público do Trabalho (MPT) aumentaram 65,6%, revelando a dimensão desse problema.

Apesar de movimentar cifras bilionárias, a disparidade entre o luxo e a precariedade de quem sustenta a festa é gritante. Enquanto foliões gastam valores exorbitantes em camarotes e fantasias, trabalhadores como os cordeiros e ambulantes recebem remunerações irrisórias, submetidos a condições degradantes.

A informalidade, que atinge 38,9% da população economicamente ativa no Brasil, é mascarada pelo discurso do empreendedorismo, enquanto o Estado e grandes empresas se eximem de responsabilidades. Espaços coletivos de luta, antes fundamentais, perdem força frente ao avanço de setores conservadores e do crime organizado, que ocupam esse vácuo em regiões vulneráveis.

O Carnaval é, sem dúvida, uma das maiores expressões culturais do Brasil, mas, para além do brilho e da euforia, é preciso encarar as desigualdades que sustentam essa festa. Os trabalhadores ambulantes enfrentam condições de trabalho muitas vezes desumanas, sem qualquer proteção ou direitos básicos. Essa precarização, que afeta em especial jovens e pessoas negras, reflete um mercado de trabalho informal que fragiliza a organização coletiva e perpetua ciclos de exploração.

As festas e eventos de ruas que fazem parte da manifestação cultural brasileira, construída pelo povo, reflete a celebração ampla de aspectos culturais fundamentais para o país, perdurando muitas vezes períodos superiores aos do feriado, com eventos anteriores e posteriores. A oportunidade de celebrar tudo o que vem junto com as festas do período não deve se dissociar da necessidade urgente de denunciar as condições das trabalhadoras e dos trabalhadores que criam condições para essa grande festa.