'Ode(o) à Deus: crítica às concepções de setor estratégico do proletariado e o que realmente são' (Raul Araújo)
O problema, entendemos, é que não temos em nossa literatura revolucionária uma definição bem estruturada e socializada do que são os setores estratégicos do proletariado; não é possível discutir quais são os setores se não definirmos e não socializamos a polêmica de como se define.
Por Raul Araújo para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Introdução
Na Etapa Regional do XVII Congresso (Extraordinário) do PBC-RR em São Paulo, muito se discutiu sobre quais são os setores estratégicos do proletariado. Como foi destacado por Zenem, a discussão foi permeada, por um lado, de objetivismo e, do outro, dum subjetivismo (e principismo) pueril – esse último ocorreu de forma generalizada nos debates relacionados com Movimentos Estudantis e educação.
Após defesas porcas e contra-defesas um tanto rasas, o pleno decidiu por maioria a aprovação da educação como setor estratégico do proletariado. O problema, entendemos, é que não temos em nossa literatura revolucionária uma definição bem estruturada e socializada do que são os setores estratégicos do proletariado; não é possível discutir quais são os setores se não definirmos e não socializamos a polêmica de como se define. Como veremos, isto é um erro não é isolado, mas sistemático de como tem-se dado a condução de nossa estratégia.
I. Ode à deus: a farsa do setor da educação como estratégico
As defesas, encharcadas de subjetivismo, reduziram a questão de setores estratégicos à mera condição da experiência individual. Sem uma análise materialista do setor da educação, não compreendemos nem o que ele é, nem quem o compõe.
Uma camarada, por exemplo, argumentou – se é que pode-se dizer que isso é argumento – que o “outro lado” poderia estar contra a proposta por terem “experiências ruins” com o Movimento Estudantil.
“Esse lado” (defesa) deteve-se a acusar o outro, sem se ater ao que poderia concorrer para a definição da educação como setor estratégico do proletariado. Criando espantalhos, assim manteve-se de pé a defesa.
Aqui também foi defendido que a saúde tem a mesma capacidade, ou, de certa forma, é da mesma ordem que a educação, que seria hipocrisia aceitar uma proposta mas não a outra. Retornaremos a essa comparação ridícula em momento mais oportuno.
Aqueles que defendem a educação como setor estratégico não apresentaram compreensão da economia política do capitalismo, ou, no mínimo, não souberam e não sabem lidar com as contradições materiais incubidas no modo de produção dominante na sociedade burguesa, na qual o capital é o próprio deus: “O capital é a força que tudo domina na sociedade burguesa” (Marx, 2021 p. 77). Definir setor estratégico como aquele que não pode abalar sua estrutura é apenas torcer pela revolução atuando contra a mesma.
II. Ódio à deus: pontapé para a linha correta nas contra-defesas
Aqui, o desprezo pelo convencimento político também foi expressado, porém, após alguns apelos, começaram a dar importância para explicar o que é um setor estratégico. Ao contrário, a defesa não acatou os apelos da plenária e continuou jogando sozinha o seu próprio jogo.
Apesar de terem-se dado o trabalho de explicar, o debate manteve-se raso: foi reiterado inúmeras vezes um mesmo pressuposto teórico, o qual não dá conta da definição de “setores estratégicos do proletariado” na íntegra. Foi dito nas intervenções que “estratégico é aquele setor que consegue parar o capital”, mas pouco se aprofundou nisso. Pouco se expôs da lógica do capital para que a defesa pudesse entender que a educação não tem capacidade de atentar contra aquele deus.
Entendemos que a plenária não era o melhor espaço para aprofundar essa questão, que devemos debater incansavelmente em nossa literatura para que tenhamos unidade teórica; mas isso não exime os camaradas do erro de repetir a mesma frase em vista de conseguir alguma reação diferente da primeira.
Aqui, “o [assim chamado] outro lado” (o que teve “experiências ruins com o movimento estudantil” e por isso o odeia em sua subjetividade – segundo a camarada citada) se apresentou melhor qualificado, tanto pela concepção; novamente, apesar de rasa; quanto pelo lembrete do camarada Gabriel Lazzari de que uma paralisação geral do setor da educação não chega a causar cócegas no capitalismo brasileiro.
III. Setores estratégicos do proletariado
1. Definição
Ao pensar coletivamente em setores estratégicos, temos em mente nosso objetivo político: a Revolução Brasileira, o socialismo brasileiro. Ou seja, como certos setores do proletariado podem cumprir com esse objetivo e, por isso, tornam-se estratégicos.
Assim, precisamos socializar em toda a militância a crítica da economia política e, como já indicamos em tribuna anterior, o nosso método materialista histórico-dialético, que tem sido contornado, seja deliberada ou acidentalmente. É nossa tarefa a perpetuação de nossa literatura, de modo a socializarmos também os avanços práticos e teóricos, as polêmicas e o convencimento político.
Em suma, nossas considerações sobre tal tema não podem passar sem levar em conta os meios materiais de suprassumir a propriedade burguesa. Isso não significa apenas “parar o capital”, pois é uma formulação imprecisa. O que precisam os comunistas é de uma formulação científica.
Consideremos que
As características essenciais do capitalismo, de acordo com sua teoria [de Marx], são (1) produção de mercadoria como a forma geral da produção. [...] A segunda característica do capitalismo (2) – não só o produto do trabalho, mas também o próprio trabalho, isto é, força de trabalho humana, assume a forma de uma mercadoria. O grau de desenvolvimento da forma-mercadoria é um indicador do grau de desenvolvimento do capitalismo. (LANDI apud LÊNIN in Marx, 2021 p. 25)
O capital, a mercadoria e a propriedade privada são sagrados. Atentar contra eles é atentar contra deus. E é isso que comunistas e proletários hão de fazer para levar a luta de classes às suas últimas consequências. Nesse sentido, temos que apreender da realidade os setores que podem contribuir para isso e, dessa forma, dar cabo da revolução.
A mercadoria é essencial para o sistema capitalista. Assim, entendemos e sugerimos que setores estratégicos são aqueles que podem, encadeados na produção e distribuição (elencados a seguir em ordem crescente de importância):
- Frear[1] a realização da mercadoria (ou seja, a troca, o setor de varejo);
- Frear o fluxo monetário (o setor bancário); e
- Frear a produção (primários e secundários, agricultura e indústria) e reprodução (trabalho doméstico/não remunerado, setor da saúde)[2].
Se freamos a produção, não só é impossível concluir o ciclo da valorização do valor, mas não é possível iniciá-lo, igualmente para a coleta e distribuição do mais-valor, etc. Se freamos o fluxo monetário, não é possível a troca e a especulação, funções básicas da moeda. E, uma vez freada a realização da mercadoria (venda), a acumulação de estoque, o aumento da oferta pela mesma demanda, a queda dos preços, etc. darão cabo da crise do capital.
Em suma, os setores estratégicos do proletariado são aqueles que podem gerar uma crise do capital, que podem contribuir para aquilo que Lênin nos ensina ser primordial para a Revolução:
A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções, e particularmente pelas três revoluções russas do século XX, consiste no seguinte: para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam transformações; para a revolução é necessário que os exploradores não possam continuar vivendo e governando como vivem e governam. Só quando os “de baixo” não querem e os “de cima” não podem continuar vivendo à moda antiga, somente então é que a revolução pode triunfar. Em outras palavras, esta verdade se exprime do seguinte modo: a revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete explorados e exploradores). (LÊNIN, 2014, p. 130-131)
Portanto, precisamos de fato reduzir a valorização do valor – “parar o capital” – mas não somente isso. É necessário que tenhamos em mente aquilo que consiste em um atentado a deus, aquilo que é a transgressão mais cruel e imperdoável para a classe burguesa: o fim da propriedade privada.
2. A educação não é um setor estratégico do proletariado
Retomemos tudo o que foi dito e a comparação dos setores da educação e da saúde: a educação e a saúde – isto é, a redução da área da saúde ao hospital e unidades de atendimento como UBS, postinhos e UPA’s – não produzem valor novo, mas a saúde – reduzida – é um trabalho reprodutivo, cuja função não é mais que manter um mínimo de funcionalidade da mercadoria mais importante do capitalismo: a força de trabalho.
A educação tem sim seu papel para radicalizar a população, mas não constitui setor estratégico por não contribuir substancialmente (seja direta ou indiretamente) para a valorização do valor. Uma força de trabalho barata ainda agregará valor; a mão-de-obra bem instruída pode agregar mais valor, mas isso é uma questão relativa e aqui tratamos de termos absolutos.
Outro argumento é o de que o Movimento Estudantil produz importantes quadros. Ora, isso não está errado, mas é só a ponta do iceberg. É claro que teremos mais quadros advindos do ME se focamos nele, mas isso ainda não significa que estamos na linha política correta. É claro, também, que quanto mais focamos no ME como temos feito, menos proletarização de nossas fileiras teremos.
Por fim, relembramos que tirar o setor da educação da lista de estratégicos não é abandonar a disputa do mesmo. Não é deixar de pautar o NEM, o ME, a Universidade Popular, o sindicato dos professores. Mas significa, isso sim, que não será esse setor o que dará cabo da revolução.
3. “Setores explosivos” e o ultrarrevolucionarismo
Há ainda aqueles que acreditam que os “setores explosivos” do proletariado são estratégicos; como os uberizados, por suas greves e movimentações. Pouco há que se provar contra essa classificação após o exposto acima. A essa altura do debate julgamos que é suficiente expor que tais setores não são capazes de suprimir a forma de sociabilidade capitalista, o modo de produção e distribuição, nem dificultar a governabilidade dentro dos moldes capitalistas.
A parcela que defende tal posição apresenta ultrarrevolucionarismo ao ignorar a passagem de Lênin supracitada. Não ligam que só consciência da exploração não nos leva à revolução. Ignoram a importância da crise nacional, comum a todas as revoluções desde a Revolução Burguesa Francesa.
4. Setores estratégicos do PROLETARIADO(!)
Outro tema que pouco temos a dizer, mas que não se pode deixar em branco é a decisão em favor da inserção na Polícia Militar na Etapa Regional de São Paulo. Camaradas, o exército é um meio de inserção dos comunistas por conta do recrutamento popular em massa. A polícia não possui esse caráter. O alistamento no exército é compulsório para uma parcela da população; o mesmo não acontece com a PM.
Mais. A disputa do exército é a disputa dos soldados rasos e pobres. O objetivo dessa disputa é arrancar do exército burguês os filhos da nossa classe e os instrutores do Exército Vermelho. Não disputamos a política para termos comunistas no Congresso e assim alcançar a Revolução Brasileira; assim também é com o exército brasileiro: não o disputamos para compô-lo. Eis um dos maiores erros do pleno paulista.
IV. Conclusões
De nossa exposição, em suma, tiramos que:
- Os setores estratégicos do proletariado são aqueles que podem colocar em xeque a ordem do capital por meio da produção e distribuição;
- Aqueles setores que não atuam diretamente sobre a produção, distribuição ou reprodução não podem ser estratégicos;
- Aqueles setores que, quando freados, não têm capacidade de produzir uma crise do capital não podem ser estratégicos; e
- Aqueles setores que não são populares ou não são proletários não podem ser estratégicos para a revolução proletária brasileira. É o proletariado que arrasta consigo as outras classes. Inverter a ordem é inverter Lênin e todo o arcabouço teórico-prático das revoluções socialistas.
REFERÊNCIAS
Lênin, Vladmir. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
Marx, Karl. A Forma Mercadoria: escritos sobre a teoria do valor. São Paulo: Lavra Palavra, 2021.
[1] Pois “parar” é, na verdade, um otimismo exagerado quanto ao que é possível fazer. Não precisamos parar por completo para gerar crises, apenas frear já contribui substancialmente. Lembremos que a primeira crise amplamente reconhecida do capital data de fins do século XIX, que foi caracterizada pela redução da taxa de lucro e o aumento dos salários. Se conseguíssemos frear totalmente o capital e pará-lo, não teríamos movimento contraditório para nos impulsionar adiante.
[2] Entendam, camaradas, que aqui falamos de setor estratégico do proletariado, mas não falamos de locais onde encontrar e atuar. Procurar trabalhar com a primeira categoria não significa, necessariamente, estar presente exclusivamente em fábricas, por exemplo. Os locais de moradia podem muito bem trabalhar em mais de uma categoria. Tomemos uma favela próxima a uma linha metroviária, essa pode frear o consumo desse meio de transporte por meio de piquetes, assim como aqueles trabalhadores que ali vivem também cumprem papel na produção de mercadorias.