Ocupação Marielle Franco: Um conflito silenciado na região Amacro

Paulo Sérgio, uma das lideranças da ocupação Marielle Franco, depois de dois meses de sua soltura em prisão preventiva, em uma entrevista ao Em Defesa do Comunismo (EDC), conta sobre os conflitos de terra da região Amacro e sobre sua intensa luta.

Ocupação Marielle Franco: Um conflito silenciado na região Amacro
Famílias da comunidade Marielle Franco esperam ser assentadas após reunião com Incra, MPF e PF (Foto: Comunidade Marielle Franco).

Por Redação

A ocupação Marielle Franco, situada na divisa do município de Boca do Acre com Lábrea, sul do estado do Amazonas, próximo da divisa com o Acre, se tornou um dos pontos de estopim para alguns conflitos de terra na região e um exemplo de como a grilagem de terras é omitida e perpetuada pelas instituições públicas e o estado burguês.

Sobre a Região

A região conhecida como Amacro, oficialmente denominada Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, é composta por 32 municípios que abrangem o sul do Amazonas, o leste do Acre e o noroeste de Rondônia, com uma área total de 454.220 km². Criada para ser um modelo de desenvolvimento sustentável, a região busca manter a sociobiodiversidade enquanto incentiva os latifundiários a produzirem "carne verde", cede florestas para grandes madeireiras e para o mercado de carbono. E,  nos últimos anos, tem-se observado um aumento significativo no cultivo de soja na área. O supostamente sustentável resultou em crescentes índices de desmatamento, queimadas, grilagem de terras e conflitos na região,  que concentrou 10% de todos os conflitos por terra registrados no país no ano passado.  Em 2023 nesta região ocorreram 26% do total de assassinatos ocorridos em contexto de conflitos no campo de todo o Brasil. Embora a quantidade desses assassinatos tenha reduzido de 34% de 2022 para 2023 considerando o país, para essa região o índice de violência continua o mesmo desde o governo Bolsonaro. Nessa região, ocorreram 8 assassinatos do total de 31 registrados, e destes 8, 5 eram de pessoas sem-terras. Cerca de 3 lideranças sem-terra foram assassinadas entre Boca do Acre e Lábrea nos últimos anos, incluindo o advogado Fernando Ferreira da Rocha que advogava a favor da comunidade Marielle Franco e de outros posseiros.

Os municípios de Boca do Acre e Lábrea registram, respectivamente, o maior índice de trabalho escravo no estado e apresentam forte concentração fundiária resultado de grilagem. De acordo com agentes da CPT em Boca do Acre apenas 3% das terras na cidade são regularizadas. Em Lábrea, grandes esquemas de grilagem foram descobertos para a venda de créditos de carbono e extração ilegal de madeira, conforme revelou a operação da PF conhecida como Greenwashing. O esquema envolvia empresários, servidores públicos de órgãos como o Incra e o IBAMA, além de policiais militares, utilizando a duplicação e falsificação de títulos de propriedade para apropriar-se ilegalmente de cerca de 538 mil hectares de terras públicas. A investigação começou em Lábrea e agora se estende a cidades do sul do Amazonas e a outros estados amazônicos.

Vale ressaltar que a grilagem de terras, segundo dados do IBGE se intensificou a partir de 2003, e entre 2006 à 2017, os latifúndios aumentaram sua área em 16,5 milhões de hectares.   Em 2018, conforme o INCRA, as grandes propriedades correspondiam a 471,2 milhões de hectares. Isso quer dizer que os latifúndios ultrapassam metade do território nacional.

A luta da comunidade Marielle Franco

A comunidade Marielle Franco está localizada no sul do Amazonas, no município de Lábrea, com acesso terrestre por Boca do Acre, próximo ao leste do Acre. Está situada em terra devoluta,  ou seja, terra que nunca foi patrimônio particular e deve ser arrecadada pelo estado. Ela faz divisa com a “Fazenda Palotina” que nada mais é que uma área  grilada por Zamora Filho e seu pai, Sidnei, latifundiários paulistas que vivem em Rio Branco (Ac). A ocupação começou em 2015, mas o uso dessa área é realizado há décadas pelos extrativistas. Hoje, 200 famílias vivem na comunidade. Desde o início, os ocupantes enfrentam ameaças, corrupção, violência e repressão policial, uma situação que se intensificou nos últimos meses.

De acordo com Paulo, a família de fazendeiros possui uma ampla rede de influência que abrange a polícia de Boca do Acre, a polícia do estado e juízes federais na Amazônia, além do apoio político de figuras como o deputado estadual Emerson Jarude (Novo) e o deputado federal Roberto Duarte (Republicanos), que frequentemente manifestam seu suporte à família em redes sociais.

A família chegou à Amazônia durante a ditadura empresarial-militar. Com a política de "ocupar para não entregar", o governo concedeu crédito aos latifundiários do Sul e Sudeste do Brasil e expulsou comunidades tradicionais de suas terras. A família Zamora fez parte desse processo e, hoje, possui várias fazendas no Acre e no Amazonas, destacando-se como um dos maiores pecuaristas do Brasil.

Da esquerda para direita, Sidney Zamora e Sidney Zamora Filho (Reprodução: Instagram Sidnei Sanches Zamora Filho).

 Na área em conflito, desmataram mais de 10.400 hectares para a pastagem e o cultivo de soja, e não quiseram abrir mão da área da mata onde fica a comunidade. Desde o início as movimentações policiais enquadraram os posseiros como criminosos ambientais, alegando que eles estavam invadindo a Floresta Nacional do Iquiri, que faz divisa com a área da comunidade. Nos primeiros contatos que Paulo teve com os posseiros, que até aquele momento não estavam muito organizados, ele foi preso com 29 pessoas, incluindo dois adolescentes. Uma prisão arbitrária que tinha o objetivo de aterrorizar os ocupantes.

Desde o início da ocupação, todas as violências foram denunciadas ao ministério público e todos os esclarecimentos sobre a localidade da área foram feitos, deixando claro que não se tratava de área de reserva ambiental. O fazendeiro tentava fazer uma manobra apresentando a área como uma “reserva florestal” privada da fazenda. Durante o Governo Genocida de Bolsonaro-Mourão, a Força Nacional era acionada para “patrulhar” o local.

Integrantes da força nacional em uma das “patrulhas realizadas na comunidade” (Fotos: Fonte anônima).

A polícia do Amazonas e do Acre tem atuado de maneira violenta na região. A Polícia Militar de Boca do Acre, comandada por Bruno Almeida, conhecido por praticar o terror na cidade, está envolvida diretamente no assassinato do advogado popular Fernando Ferreira da Rocha, mas as investigações do caso estão paralisadas.

O poder deste fazendeiro garante para ele usar do estado burguês de forma descarada. Fez o cartório de Lábrea omitir informações solicitadas pelo Incra: as páginas do livro de registro do cartório que tratavam sobre a área desapareceram misteriosamente. Fez órgãos públicos emitirem documentos falsos que garantiam a posse do fazendeiro da área em disputa. Além disso, o fazendeiro possui uma licença ambiental de 42 mil hectares, mesmo acumulando 15 milhões de multa por crimes ambientais.

Em fevereiro, após denúncias feitas pela comunidade acerca da extração ilegal de madeira e ataque de “jagunços” onde um extrativista foi esfaqueado com golpe de terçado (facão) e outros agredidos, o líder da comunidade, Paulo Sérgio, foi preso com a determinação do juiz Danny Rodrigues Moraes, da 1ª Vara da Comarca de Lábrea. Foi levado para  a delegacia de Boca do Acre e depois transferido para Humaitá, por último, mandado para Manaus. Conta Paulo: “Em Manaus, Porto Velho, os presos são transferidos de avião, entendeu? Eu fui transferido de ônibus prisional, porque eles queriam, eles queriam ver meu sofrimento, entendeu? Judiar de mim, para nunca mais pisar lá dentro (...) mas em nenhum momento eu baixei a cabeça para isso”.

Quebrador de castanha esfaqueado em 28 de fevereiro (Foto: Comunidade Marielle Franco).

Com a prisão, o fazendeiro convocou a Polícia Militar de Boca do Acre para tentar retirar as famílias novamente, em março. Os camponeses não se intimidaram e permaneceram ocupando o local. Isso aconteceu enquanto ainda se aguardava a decisão de reintegração de posse pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM).

Nas últimas semanas o fazendeiro tem utilizado drones para monitorar os moradores. O movimento de mulheres da comunidade tem denunciado essa situação que ataca principalmente elas, que são monitoradas enquanto realizam tarefas domésticas e de higiene na fonte de água.

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Jagunços disparam tiros contra extrativistas na comunidade Marielle Franco/ Fevereiro de 2024 (Fonte: Arquivo pessoal do Paulo Sérgio).

O diretor de governança fundiária do Incra, de Brasília, João Pedro Gonçalves, afirmou que o local onde está o assentamento pertence à União. O Incra  iniciou o estudo cartográfico em setembro de 2023 e foi verificado que a área de pouco mais de 48 mil hectares que contempla tanto a área ocupada e a área degradada pelo fazendeiro, está dentro da Gleba Novo Natal e é terra devoluta. O Incra então iniciou o processo de arrecadação da terra para a Reforma Agrária.

Apesar das terras serem devolutas, a juíza da 1ª Vara Federal propôs nas últimas audiências a conciliação entre o fazendeiro e a comunidade, retirando do Incra a responsabilidade de arrecadar a área e sugerindo que a comunidade possa “viver em paz” permanecendo ao lado do fazendeiro. Dando aval ao crime de grilagem que resultou no desmatamento e nas queimadas de mais de 10 mil hectares de terra. O seguimento da audiência está previsto para 03 de setembro.

Sobre o entrevistado

A vida de Paulo reflete a realidade de muitos trabalhadores da Amazônia que, ao longo de suas vidas, nunca tiveram direito à terra. Ele morou toda a sua vida no campo, entre o Acre e o Amazonas, onde sua família produzia mel de cana, rapadura, arroz e farinha. No entanto, foram forçados a abandonar sua terra quando um fazendeiro italiano comprou uma propriedade vizinha e os expulsou, roubando as terras e os materiais de produção da família.

Paulo Sérgio Araújo (Foto: Arquivo pessoal do Paulo Sérgio).

Depois, Paulo se mudou para a comunidade Boa Água, no Acre. Lá, ele enfrentou problemas com o Incra e a associação de moradores, que cobravam taxas abusivas e firmavam parcerias questionáveis com lojas. Ao denunciar essas práticas, Paulo recebeu ameaças e se desanimou em permanecer na área. Em 2015, iniciou sua trajetória na comunidade, que só recebeu um nome oficial em 2018.

O nome Marielle Franco é em homenagem à luta da vereadora socialista que se assemelha à luta da comunidade “contra a prefeitura, contra a secretaria(...) a gente tava  bem parecido na situação, né?”. Paulo conta que defendeu o nome, em meio a uma forte onda bolsonarista, alguns camponeses temiam que este nome resultasse em mais ódio contra a comunidade e trouxesse prejuízos políticos. Para Paulo, isso não era uma preocupação, mas acredita que o nome teve um “peso maior”   para a repressão, porque a partir disso a comunidade passou a ser monitorada pela Defesa Nacional. 

Escoamento de castanha na comunidade (Foto: Arquivo pessoal do Paulo Sérgio)

Paulo sofreu detenções, agressões, ameaças da família Zamora  e de outros fazendeiros da região e foi acusado por formação de quadrilha e por crimes ambientais. Mesmo assim, construiu duas grandes greves e fechamentos da BR317, ao lado de várias comunidades e povos indígenas, o que chamou a atenção para investigações da Polícia Federal na região. Foi preso em 5 de março deste ano e ficou 51 dias detido. Hoje segue em prisão domiciliar sem poder voltar à comunidade Marielle Franco.

O movimento político mais próximo de Paulo e o que o auxilia é a Comissão Pastoral da Terra no estado do Amazonas (CPT-AM). Apesar de nunca ter recebido formação política formal, sua luta é impulsionada pela indignação diante das injustiças que afetam o trabalhador do campo. Além de lutar  pelo acesso à terra para as pessoas da comunidade Marielle Franco, Paulo também orienta outros camponeses fora de sua comunidade em suas lutas.