'O que é Trabalho Plataformizado? A nova etapa de acumulação do capital e como combatê-la (proposta de Tese para o XVII Congresso Extraordinário)' (FHComunista)

Diante da leitura das pré teses, ficou evidente nossa deficiência em caracterizar o fenômeno capitalismo de plataforma e, consequentemente, em delinear ações concretas para o seu combate.

'O que é Trabalho Plataformizado? A nova etapa de acumulação do capital e como combatê-la (proposta de Tese para o XVII Congresso Extraordinário)' (FHComunista)
Fonte: Agência O GLOBO

Por FHComunista para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Em nosso Caderno de Teses, no Programa do Partido, O mundo contemporâneo e a posição do Brasil na cadeia imperialista, item C, parágrafo 7, lê-se:

“Proibição de todas as formas de exploração privada da intermediação de força de trabalho por meio de ”plataformas” (como as que exploram os entregadores e motoristas). Unificação de todos esses serviços em uma plataforma única e pública, sob controle dos próprios trabalhadores.”

Não obstante a oração confusa, ela limita a plataformização como apenas um “intermediário” na exploração do trabalho e aponta uma solução mistificante que se resume a uma plataforma nacional pública unificada. Logo, apresento nesta Tribuna o debate que levantei na minha etapa de base, onde fundamento com base na literatura atual, o que é a plataformização do trabalho e como esse conceito se insere no cenário maior de plataformização da sociedade, assim como quais alternativas estão postas, para nós, comunistas, concluindo com o destaque que foi aprovado pela minha célula.

Espero que esta tribuna seja esclarecedora e que avance nossa discussão sobre o tópico.

Plataformização

Entre nossa militância ainda existe um debate sobre o uso dos termos “uberização do trabalho”, como caracteriza Fontes[1], e “plataformização do trabalho”. Utilizo o termo plataformização pois descreve: 

[…] melhor o atual cenário do trabalho digital do que “uberização”, que tem sido circulada nas diversas esferas como metáfora, mas não recobre a multiplicidade de atividades de trabalho mediadas por plataformas além da própria Uber, pois há variedade de lógicas de extração de valor (SRNICEK, 2016) e características de trabalho (CASILLI, 2019; GRAHAM; WOODCOCK, 2018).[…] então, trata-se de pensar a plataformização do trabalho como a dependência que trabalhadores e consumidores passam a ter das plataformas digitais – com suas lógicas algorítmicas, dataficadas e financeirizadas – em meio a mudanças que envolvem a intensificação da flexibilização de relações e contratos de trabalho e o imperativo de uma racionalidade empreendedora (DARDOT; LAVAL, 2016) como vias de justificação dos modos de ser e aparecer do capital”.[2]

Ou seja, a plataformização do trabalho faz parte de um fenômeno maior que atravessa a sociedade, que Srnicek[3] chama de Capitalismo de Plataforma, que só é possível pelo enclave entre a financeirização, os algoritmos e a dataficação, viabilizados pelo neoliberalismo. 

Os algoritmos são unidades básicas de cálculo na matemática e na computação que servem para a solução de problemas, não sendo uma novidade, mas que sob o capitalismo financeirizado se transforma numa ferramenta essencial para a estruturação dessa nova forma de acumulação. Com a ascensão do neoliberalismo nos últimos 30 anos e a necessidade de contabilizar, metrificar e avaliar os mais diversos dados (incluindo pessoas), os algoritmos se tornaram a base dessa estrutura.

Os algoritmos não são necessariamente softwares: em seu sentido mais amplo, são procedimentos codificados que, com base em cálculos específicos, transformam dados em resultados desejados. Os procedimentos dão nome tanto ao problema quanto aos passos pelos quais ele precisa passar para ser resolvido.[4]

A dataficação é o processo no qual os dados são coletados e tratados pelos algoritmos. Os dados são unidades de informação fundamentais para a plataformização da sociedade. Eles tem papel fundamental na crescente centralidade dos dados no dia a dia. A coleta massiva de dados, ou bigdata, se mostrou uma nova forma de capital para as empresas e em poucos anos a extração de dados se tornou uma das formas mais eficientes de acúmulo de capital.

Deste modo, a lógica algorítmica faz parte atualmente da própria estruturação de uma sociedade mediada pela plataforma, no qual as “relações com trânsito, alimentação, transporte, amor e trabalho passam também por mediações algorítmicas”[5] , o que Van Djick[6] chama de “plataformização da sociedade”, ou seja, a crescente dominação das plataformas digitais na estruturação da sociedade, interferindo na política, economia e cultura.

Podemos considerar, então, que a extração de dados não é mera coleta de informações, mas extração de valor e recursos, sendo, pois, os algoritmos e os dados uma antessala para o capitalismo de plataformas (SRNICEK, 2016). Como afirma Sadowski (2019, p. 7), “quando os dados são tratados como uma forma de capital, o imperativo de coletar muitos dados a partir de muitas fontes intensifica práticas existentes de acumulação e leva à criação de novas”.[7]

Com o predomínio do neoliberalismo no mercado global e a imposição das práticas produtivas do chamado Norte Global sobre os países dependentes, como a austeridade e privatização, terceirização etc., abriu-se caminho para uma intensificação das formas de exploração do trabalho social. 

Longe de representar uma “nova” economia, distinta do “velho” capitalismo, as novas morfologias de trabalho, circulação de mercadorias e compartilhamento de informações via plataformas digitais aceleram, intensificaram e inovaram as possibilidades de extração de mais-valor, tornando a teoria do valor ainda mais atual que na época em que foi formulada. […] Teresinha Ferrari analisou as transformações técnicas, econômicas, sócias e ideológicas provocadas pela introdução da informática, das telecomunicações e da robótica nos processos produtivos capitalistas no que ficou conhecido como Indústria 3.0. Constatou que essa introdução permitiu, de uma só vez,1) o “enxugamento” das unidades fabris a partir da expulsão de milhares de trabalhadores de seus postos e 2) o controle logístico e a busca pela sincronização dos tempos sociais e espaços urbanos ocupados pela esfera da circulação de mercadorias.[8]

O que aconteceu nos últimos 30 anos foi a subsunção em geral do trabalho social a financeirização, que transformou tudo em números, dados e controle do tempo. Não obstante, sabemos que o caráter dependente dos países em desenvolvimento, como o Brasil, resulta em formas mais brutais e particulares de extração de mais-valor. Deste modo, o trabalho plataformizado também apresenta dinâmicas de exploração desigual, levando em conta as diferentes formas de extração de valor por plataforma e as clivagens de gênero, raça e território. 

O que temos atualmente é um sistema global de extração de mais-valor que generalizou as plataformas na sociedade. Vivemos em uma sociedade plataformizada e produzimos dados involuntariamente 24h por dia, que por sua vez são extraídos, processados, segmentados e mercantilizados - para nós mesmos e para outras grandes corporações.

[…] na América Latina e especificamente no Brasil, o bico, a viração, o trabalho informal foram historicamente a norma, não a exceção (RIZEK, 2006), atuando como maneiras de gestão de sobrevivência da classe trabalhadora. Isto é, de certa forma a plataformização do trabalho aprofunda o “privilégio da servidão” no “continente do labor” (ANTUNES, 2018). […] Isto é, a circulação e a extração de valor do trabalho por meio de plataformas se dão de formas desiguais em diferentes países e regiões, com lógicas de classe e obedecendo aos parâmetros da financeirização-dataficação global.[9]

Logo, diferente do que afirma nossa pré tese, o trabalho não é apenas mediado pela plataforma, mas a plataformização do trabalho faz parte do processo de plataformização da sociedade, dentro de um contexto de capitalismo de plataforma, isso é, uma etapa da financeirização que intensifica a extração de mais-valor ao dataficar a sociedade em sua integridade, comodificando as diferentes dimensões da vida e criando novos mercados. No mundo do trabalho, já transformado pelo neoliberalismo que reestruturou as cadeias produtivas, terceirizou e remodelou a sua morfologia, a plataformização surge como uma mudança de qualidade talvez tão importante quanto o Toyotismo, pois dinamiza as formas de acumulação de capital a novos patamares. Para exemplificar, as corporações do vale do silício valem, juntas, mais de 10 trilhões de dólares[10].

“a dataficação age como um mecanismo de gestão e controle do trabalho, que é componente inclusive de uma lógica de acumulação a partir da usurpação dos dados dos trabalhadores, que são, a um só tempo, capital fixo e circulante”[11]

A plataformização da vida se encontra em seu auge e continua avançando. Falar sobre a criação de uma plataforma nacional pública oculta as diferentes determinantes que compõem o fenômeno da plataformização da sociedade. Falar em ter uma plataforma pública é falar em soberania digital, soberania digital se constrói no processo revolucionário, pois, assim como o completo desenvolvimento das nossas forças produtivas é atravancado pelo caráter dependente de nossa economia, também não será possível pensar numa autonomia digital para o Brasil, autonomia essa que exige investimento em tecnologia, uma nova lei de patentes, a produção de microchips, um robusto complexo de telecomunicações, satélites, data centers etc. Ou seja, somos colonizados digitalmente.

O colonialismo digital não é mera metáfora ou discurso de poder, mas um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista[…] trata-se do uso da tecnologia digital para a dominação politica, econômica e social de outra nação ou território[12].

Como tal, o Sul Global e, mais especificamente o Brasil, possui um desenvolvimento próprio do trabalho plataformizado que emerge das nossas próprias contradições como formação social dependente e de ex-colonia. Assim, a plataformização do trabalho conforma o que Mölhmann e Zalmansson[13] chamam de gestão algorítmica do trabalho, caracterizada por: a) um regime de vigilância de desempenho, rastreando e avaliando constantemente o trabalho; b) automatização das decisões através de algoritmos; c) falta de transparência dos algoritmos, o que impede que trabalhadores tenham acesso aos próprios dados e ao conjunto de regras que regem a plataforma.

A automação dos algoritmos significa o processamento em massa de dados e a tomada de decisões amparadas numa suposta imparcialidade, que legitima o algoritmo no discurso público.

A cuidadosa articulação de um algoritmo como imparcial (mesmo quando essa caracterização é mais ofuscante do que a explicativa) o certifica como um ator sociotécnico confiável concede relevância e credibilidade aos seus resultados e mantém a aparente neutralidade do provedor em face as milhões de avaliações que faz[14].

Por fim, para Gillespie[15], a falta de transparência no funcionamento dos algoritmos serve a um importante propósito, pois conhecer o funcionamento de um algoritmo é uma forma de poder, tanto para outras empresas competidoras, como para formas de combater a plataformização. As empresas argumentam que seus algoritmos são “segredos comerciais”.

Diante desta conjuntura e com o agravamento das relações de trabalho cada vez mais precarizadas pelas plataformas digitais, é preciso que nosso partido se aproprie do estado da arte no que se refere aos estudos sobre plataformização. Ademais, o tema ainda parece levantar desconfiança de muites camaradas e uma formação sobre o papel das plataformas nos processos de acumulação é essencial para nos armar com as ferramentas necessárias para combater esse processo de forma científica e revolucionária.

Deixo abaixo o destaque aprovado pela minha célula e espero que esse debate avance com mais qualidade na etapa nacional do Congresso:

A plataformização do trabalho está inserida na própria plataformização da vida que é atravessada pelas plataformas digitais, que são meios de produção e meios de comunicação, simultaneamente. A plataformização do trabalho é o processo no qual trabalhadores e consumidores se tornam cada vez mais dependentes das plataformas como Google, Facebook, Amazon, Uber, Ifood etc., que operam uma intensificação da extração de mais valor e na flexibilização de relações e contratos de trabalho. Três fatores que constituem as plataformas digitais são: a lógica algorítmica que media cada vez mais a vida social; a extração, documentação e filtragem de quantidades massivas de dados, o bigdata, uma forma de extração de valor; e a financeirização. Esses três elementos compõem o que se chama de dataficação da sociedade. A extração e circulação de capitais do trabalho plataformizado se dá de formas desiguais, seja por região ou pelas diferenças de classe e marcadores sociais, como raça, gênero e território. Para combater a expansão do trabalho precarizado das plataformas no cenário mais imediato, devemos lutar pela regulamentação do trabalho plataformizado e das pla[9taformas em geral, a demanda para que empresas tenham servidores e sedes no Brasil. Como objetivo a longo prazo, devemos construir nosso próprio ecossistema de plataformas a partir do investimento em tecnologia, com um robusto complexo de telecomunicações, satélites, data centers etc., orientados aos interesses dos trabalhadores e que garanta nossa segurança digital e independência das plataformas estrangeiras.

Saudações comunistas.


[1]

[2]

[3]

[4]

[5]

[6]

[7]

[8]

[9]

[10]

[11]

[12]

[13]

[14]

[15]