'O partido leninista enquanto intérprete da realidade nacional' (João Drey)

A tarefa que se coloca diante é partir da nossa realidade nacional para fundamentar com excelência a nossa estratégia, as nossas táticas, os nossos métodos de trabalho e o nosso programa.

'O partido leninista enquanto intérprete da realidade nacional' (João Drey)
Fonte da imagem em anexo: Candido Portinari, 1950.

Por João Drey para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Camaradas!

Há algum tempo penso na pertinência de contribuir, dentro dos meus limites, para as tribunas de debates, ferramenta indispensável para desenvolver, de maneira sistemática e organizada, as nossas polêmicas internas, parte constitutiva da nossa literatura comum.

Por meio dessa tribuna, julgo poder oferecer uma modesta e sintética contribuição para ampliar nosso horizonte de possibilidades perante nossa classe, nossa conjuntura e nossa responsabilidade histórica enquanto comunistas brasileiros. Sintam-se plenamente livres para polemizar com quaisquer questões que considerem equivocadas. 

A realidade nacional

Falar em realidade nacional significa falar, objetivamente, das relações materiais de produção (e todas as demais relações advindas, em última instância, dessa última) historicamente imbricadas na formação social de uma nação. É necessário, aqui, nos determos brevemente na conceituação de nação e de formação social, categorias imprescindíveis para a apreciação do nosso objeto de análise.

Por um lado, no que tange a conceituação de nação, Stalin a define enquanto uma “comunidade estável, historicamente formada, de idioma, de território, de vida econômica e de psicologia, manifestada na comunidade de cultura”[1]. O autor salienta, também, que é justamente no período histórico de desmantelamento da ordem feudal e de desenvolvimento do modo de produção capitalista que os seres humanos passaram a se agrupar em nações. Portanto, a nação “não é apenas uma categoria histórica, mas uma categoria histórica de uma época determinada, da época do capitalismo ascendente”[2].

Por outro lado, no que tange a conceituação de formação social, diz Lenin, se assentando nas formulações de Marx:

“[...] a análise das relações sociais materiais pela primeira vez tornou possível observar a recorrência e a regularidade, e generalizar os sistemas dos vários países em um único conceito fundamental: a formação social. Foi somente essa generalização que possibilitou proceder da descrição dos fenômenos sociais (e sua avaliação do ponto de vista de um ideal) para sua análise estritamente científica, que isola, digamos, a título de exemplo, aquilo que distingue um país capitalista de outro, e investiga o que é comum a todos eles.[3]”

Dentro dos limites textuais de uma tribuna que procura ser sintética, creio que essas duas definições são satisfatórias para o ponto de partida do nosso debate: destrinchar em termos teórico-metodológicos o significado de “compreender o Brasil”, uma tarefa histórica do marxismo-leninismo brasileiro que está, felizmente, sendo reforçada e retomada pela militância.  

Em tais termos, compreender a formação social da nação brasileira significa analisar, em longa metragem histórica: a) as suas relações sociais de produção e de distribuição da riqueza social e, em decorrência disso, a configuração das classes e grupos sociais; b) a interdependência entre essas relações sociais e o seu respectivo sistema jurídico-político-militar (Estado); c) a relação desse Estado com o seu território e com outros Estados; d) a relação desse Estado com as diversas classes sociais; e) a relação das classes sociais entre si; dentre outros fatores histórico-sociais.

Sem uma análise minuciosa do que é o Brasil, atual e historicamente, não teremos condições para elaborar a estratégia, as táticas e os métodos de trabalho adequados ao contexto dessa formação social. Prescindindo de tal análise não poderemos, igualmente, definir o sujeito revolucionário da revolução socialista no Brasil.

Nesse ponto, Amílcar Cabral é certeiro:

“Qualquer que seja o lugar onde tenhamos a nossa cabeça, os nossos pés estão fincados no chão da nossa terra, na Guiné e Cabo Verde, na realidade concreta da nossa terra, que é o fato principal que pode guiar o trabalho do nosso Partido[4]”.

Cabral nos ensina que a realidade existe a priori da consciência humana em geral e da consciência do partido leninista em particular. Independente do conteúdo da nossa análise, o estado atual de coisas está aí, o sujeito revolucionário do Brasil está aí. Cabe a nós, por meio do trabalho teórico e do trabalho prático, adquirir conhecimento da realidade, dominar esse conhecimento para podermos, com menor chance de falharmos, agir perante às demandas político-organizativas do proletariado. Nossa tarefa é conhecer tanto a ambientação histórica e o caráter fundamental dos mecanismos responsáveis pela desgraça social do povo brasileiro quanto as particularidades do sujeito revolucionário capaz de levar até o fim a luta contra esses mecanismos.

A incorporação da realidade nacional pelo partido leninista

Lenin desenvolveu sua teoria do partido revolucionário num contexto permanente de disputas políticas, dentro e fora do seu partido. Em trinta anos de militância sistêmica, Lenin destacou a necessidade imperiosa da organização do proletariado, verdadeira arma para a tomada do poder político. É isso que é, por definição, o partido leninista: uma organização revolucionária para a tomada do poder político por parte da classe trabalhadora (sob a direção do proletariado), a fim de consolidar a ditadura do proletariado sobre a burguesia, no rumo da sociedade sem classes. 

O partido revolucionário em Lenin adquire uma fisionomia profundamente prática, isto é, capaz de se adaptar às mais diversas condições políticas, sejam essas condições o florescimento da legalidade burguesa ou o recrudescimento da clandestinidade. Mantendo firme a sua estratégia revolucionária (tomada do poder político), as táticas do partido podem ser as mais variadas, ou seja, os meios que o partido emprega para realizar sua estratégia podem se adaptar a cada época; mas se adaptar não no sentido de responder passivamente a conjuntura, e sim de ter as ferramentas teórico-metodológicas adequadas para realizar uma análise minuciosa da correlação de forças e ser vanguarda (isto é, estar à frente das demais classes) na luta política, econômica e teórica, ou seja, ser vanguarda na elevação do proletariado em classe dirigente da revolução social e, após a tomada do poder, da sociedade como um todo, na perspectiva, claro, da sociedade sem classes. 

O partido leninista sabe que a revolução não tem dia ou hora marcada, mas que pode ser desencadeada pelas mais diversas movimentações políticas, sejam elas organizadas, sejam elas espontâneas. No que diz respeito ao caráter espontâneo das lutas da classe trabalhadora (as lutas econômicas, principalmente), Lenin advoga pela necessidade do partido revolucionário estar munido de condições (teóricas e organizativas) a ponto de poder transformar uma luta espontânea (luta pelo aumento salarial ou pela redução da jornada de trabalho, por exemplo) em uma luta política permanente e consciente das suas tarefas de levar adiante a derrubada do poder burguês; um partido capaz de identificar em cada uma dessas lutas espontâneas o seu caráter embrionário de luta revolucionária, que  saiba alargar os horizontes estreitos da luta econômica para a luta política organizada de toda a classe trabalhadora (sob a direção do proletariado, nunca é demais relembrar) para a derrubada da ordem social vigente.

Um dos aspectos que podem armar o partido leninista para poder organizar a classe trabalhadora, nas mais diversas (e adversas) condições, é uma sólida análise da realidade de seu país; uma análise que considere a maneira pela qual está organizada e generalizada as relações materiais econômicas da nação; que considere a correlação de forças entre as classes (burguesia x proletariado; burguesia x pequena-burguesia; pequena-burguesia x proletariado, etc); que considere a relação entre as classes e o poder político de estado; que considere o processo histórico minucioso o qual levou essa sociedade a se organizar dessa maneira e não de outra. 

Em termos de estratégia política acabada, o partido leninista é internacional, pois constrói internacionalmente a luta de classes do proletariado; em termos do manejo instrumental das ferramentas teórico-metodológicas necessárias para a elaboração consequente dessa estratégia de tomada do poder político pelo proletariado em seu respectivo país, o partido leninista é profundamente nacional, ou pelo menos deveria ser. 

Em 1894, polemizando com os populistas russos (narodniks), Lenin aborda a tarefa dos intelectuais do partido operário:

“[...] seu trabalho TEÓRICO deve ser direcionado ao estudo concreto de todas as formas de antagonismos econômicos na Rússia, o estudo de suas conexões e sucessivo desenvolvimento; eles precisam revelar esse antagonismo onde quer que tenha sido ocultado pela história política, pelas peculiaridades dos sistemas legais ou por preconceitos teóricos já bem estabelecidos. Eles precisam apresentar um retrato integral de nossa realidade como um sistema definido de relações de produção, mostrar que a exploração e a exploração do povo trabalhador são essenciais sob esse sistema, e mostrar o caminho para fora dele [...][5]”

E no parágrafo seguinte:

“Essa teoria, baseada em um estudo detalhado da história e da realidade russas, precisa fornecer uma resposta às demandas do proletariado – e, se satisfizer os requisitos da ciência, então esse mesmo despertar do pensamento crítico do proletariado vai inevitavelmente guiar esse pensamento em direção à social-democracia. Quando maior o progresso feito na elaboração dessa teoria, mais rapidamente a social-democracia vai crescer; pois mesmo os mais astutos guardiões do atual sistema não podem impedir o despertar do pensamento proletário [...][6]”

O quão ricos e universais são os fundamentos teórico-metodológicos dessas passagens, camaradas! Lenin está esmiuçando na nossa cara as tarefas do partido revolucionário (em relação a função dos intelectuais revolucionários, no caso específico dos trechos) em matéria de apreensão de sua realidade. Uma análise certeira fundamenta a nossa ação política e atrai para nós o proletariado junto das demais camadas e grupos sociais identificados com o projeto revolucionário.

Em 1899, antes de redigir O que fazer? (1902), Lenin redige Nossa tarefa imediata, analisando as deformidades do Partido Operário Social-Democrata Russo. Criticando o amadorismo nas fileiras do Partido, Lenin reitera a necessidade de superar o que ele denominava trabalho artesanal, isto é, o horizonte estreito de trabalho (predominância do trabalho “local” em detrimento do trabalho nacional “para toda a Rússia”; do caráter espontâneo do trabalho em detrimento do planejamento consciente e centralizado; da militância sindical como principal espaço de atuação da social-democracia russa; do curto alcance da agitação e da propaganda; dos entraves de comunicação interna, etc). Isso em matéria do trabalho prático. No que tange o trabalho teórico, Lenin discorre o parágrafo que me inspirou para escrever essa tribuna (lembrando que, até a Primeira Guerra Mundial, os marxistas russos se denominavam "social-democratas"):

“A social-democracia russa fez muitas críticas a teorias revolucionárias e socialistas; não se limitou ao criticismo e a teorização; mostrou que seu programa não paira no ar, mas vai ao encontro de extensivos movimentos espontâneos em meio ao povo, isto é, em meio ao proletariado das fábricas. Deve, agora, dar o seguinte, muito difícil, mas muito importante, passo - elaborar uma organização do movimento adaptada às nossas condições [...] A história do socialismo e da democracia na Europa Ocidental, a história do movimento revolucionário russo, a experiência do nosso movimento operário - esse é o material que devemos dominar para que possamos elaborar uma organização pertinente e táticas pertinentes para nosso Partido. A análise desse material deve, no entanto, ser feita independentemente, já que não existem modelos prontos em nenhum lugar[7].”

Dessa forma, que tarefa se coloca diante de nós, camaradas? Creio que só existe uma única resposta: partir da nossa realidade nacional (e de todas as implicâncias disso) para fundamentar com excelência a nossa estratégia, as nossas táticas, os nossos métodos de trabalho e o nosso programa. Destrinchar as raízes da dependência econômica; destrinchar a relação da dependência econômica com a violência racial contra a população não-branca; destrinchar as raízes históricas que impedem a nossa burguesia de ter qualquer caráter nacional; destrinchar as raízes históricas da nossa divisão territorial ser tão desigual; destrinchar como opera, em nosso país, o controle ideológico sobre a classe trabalhadora; destrinchar as raízes históricas que fizeram os comunistas brasileiros perder a batalha pelo poder político no século passado.

É tarefa fundamental para os próximos períodos que o nosso Partido forme os seus intelectuais orgânicos, capazes não só de conhecerem e compreenderem de cabo a rabo a obra de Marx no original em alemão, mas de produzir teoria revolucionária à luz das nossas tarefas de curto, médio e longo prazo; intelectuais especializados não só em produzir teoria revolucionária, mas em dirigir a luta teórica nos interesses da revolução proletária, em demolir por completo toda teoria que rebaixe política e intelectualmente o partido leninista e o papel dirigente do proletariado; intelectuais mergulhados na história social de nosso país, de nossos autores, de nossa dinâmica cultural e territorial; que disponham da arma da crítica conquanto disponham da crítica das armas!

Resguardada a importância desses intelectuais, é indispensável, igualmente, que os não-intelectuais também façam parte da produção e da luta teórica, afinal são eles a base do nosso Partido. Que o Sistema Nacional de Formação Política seja rigoroso e flexível: rigoroso nos pressupostos teórico-metodológicos fundamentais do marxismo-leninismo à realidade brasileira, pressupostos esses que nos permite observar as semelhanças entre desigualdades locais diferentes; flexível na adaptação desses pressupostos teórico-metodológicos às minúcias de cada local, na perspectiva de relacionar o local ao nacional. Ao combinar rigorosidade com flexibilidade, sendo o nosso Órgão Central o pólo que socializa nacionalmente as mais diversas interpretações e/ou considerações sobre o nosso país e o nosso trabalho político coletivo, podemos dar um salto qualitativo imenso em termos organizativos e formativos. Que possamos capacitar cada camarada, de cada localidade, de cada profissão, em cada situação, a produzir teoria revolucionária a partir de sua realidade; que possamos nacionalmente incorporar esses acúmulos para podermos, o quanto antes, nos livrarmos dessa maldita estreiteza do nosso trabalho; para podermos construir o destacamento de vanguarda da revolução socialista no Brasil, o Estado-Maior da classe trabalhadora brasileira, atuante em todos os cantos de nosso país, pois, como destacou Lenin, não podemos nos tornar vanguarda numa teoria e numa prática de retaguarda. 

Nossos sonhos estão em jogo. Que tenhamos disposição, humildade e disciplina para construir essa vanguarda.

Sob a bandeira do leninismo, venceremos!


[1]  O marxismo e o problema nacional: https://www.marxists.org/portugues/stalin/1913/01/01.htm

[2] Ibidem.

[3]  O que são os “Amigos do Povo” e como lutam contra os social-democratas, presente na coletânea Escritos de juventude de Lenin – volume 1, publicado pelo LavraPalavra.

[4]  Partir da realidade da nossa terra: https://www.marxists.org/portugues/cabral/ano/mes/43.htm

[5]  O que são os “Amigos do Povo” e como lutam contra os social-democratas.

[6]  Ibidem.

[7]  Nossa tarefa imediata: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1899/mes/41.htm