O Partido dos Panteras Negras para além do assistencialismo

Falar em Panteras Negras não é somente citar uma organização qualquer dos EUA, é falar da brutal repressão que o movimento revolucionário enfrentou no centro do império em paralelo a repressão ao redor do mundo.

O Partido dos Panteras Negras para além do assistencialismo
"A ligação entre a população negra estadunidense, do Caribe e da América Latina é nítida e quanto mais nos aproximarmos de seu legado, mais próximos estaremos de construir um processo revolucionário verdadeiramente ligado à nossa realidade."

Por Guilherme

Está em andamento, em determinado setor da esquerda radical brasileira, um esforço para o resgate das experiências socialistas e de movimento revolucionários do século XX. Este resgate se baseia tanto na desmistificação do marxismo enquanto uma teoria eurocêntrica e fundamentalmente desligada da questão racial, de gênero ou dos problemas ambientais, quanto pela tentativa de buscar nestas experiências elementos positivos para somar na atuação em solo brasileiro. É notório que revolucionário africanos, latino-americanos e de toda periferia do sistema capitalista estejam ganhando mais atenção. A partir deste panorama, textos, artigos, documentários, vídeo e filmes sobre o Partido dos Panteras Negras passaram a ter uma maior circulação entre o conjunto da militância e simpatizantes.

Contudo, apesar do fator positivo nesse resgate e nesse contato, não há ainda uma análise e um balanço robustos da atuação e da linha política dos Panteras Negras, de tal forma que sua apropriação se faz de forma difusa e baseada mais numa identificação superficial e sentimental do que com base em princípios políticos. Sabemos que eram marxista-leninistas, mas até que ponto se compreende o papel do maoismo naquela organização? Para além de um balanço formal das experiências socialistas do século passado, como encaramos as contradições da URSS, alvo de críticas contundentes por parte dos Panteras Negras? Sabemos qual era posição dos Panteras Negras acerca da Frente Ampla contra o Fascismo? No que se baseava o internacionalismo, ponto essencial na prática do partido? Como encaramos os Programas de Sobrevivência colocados em prática no final da década de 1960, como o Café da Manhã para as Crianças?

Os programas assistenciais e a presença dos Panteras Negras nos bairros e guetos negros, somadas a sua seriedade e disciplina, geram a simpatia de uma considerável parcela da militância da esquerda radical brasileira, uma vez que se aproxima, neste quase consenso, do que deveria ser nossa atuação enquanto comunistas. Porém, longe de ser apenas uma mera assistência, os programas de sobrevivência são fruto de uma linha política muito mais ampla. O Partido dos Panteras Negras, assim, não se encerra nestas ações, pelo contrário. Um dos pontos mais negligenciados quando se fala nesta organização, por exemplo, é o papel desempenhado por seu jornal, o The Black Panther.

O fato de estarmos em uma conjuntura totalmente distinta cria, por parte de uma parcela branca, masculina e de classe média, uma fetichização da atuação dos Panteras Negras e, por consequência, um erro na análise do que foi o movimento revolucionário nos EUA. Como podemos superar essa fetichização e encarar com seriedade a necessidade de servir o povo, de criar uma tática para atenuar os problemas imediatos da classe trabalhadora e sua parcela mais precarizada, abandonando a perspectiva sectária e dogmática de que a luta pelo socialismo não abarca a assistência e atuação institucional, pressionando por todos os meios o Estado burguês?

Tendo em vista essa problemática e buscando traçar um caminho para que comecemos a pensar a estruturação de um balanço que dê conta de incorporar os pontos positivos colocados em prática pelo Partido dos Panteras Negras, apresento uma pequena contextualização histórica e uma análise que percorre as questões apresentadas anteriormente.

Esta não pretende ser, porém, a resposta final ou caminho definitivo a se seguir, sendo apenas a abertura de um profundo debate a ser tocado por nossa militância e pelo movimento comunista brasileiro no geral.

Continuação e superação do pensamento de Malcolm X

Quando Malcolm rompe com a Nação Islã em 1964, seu pensamento passou por diversas incorporações e revisões, saindo de um sectarismo em relação a outras organizações e uma determinada perspectiva de luta racial para encarar alianças pontuais que buscassem o bem-estar imediato da população negra dos guetos das cidades norte-americanas, entendendo o racismo na sua dimensão econômica e social. É também neste contexto que Malcolm estrutura uma posição internacionalista mais contundente, consequência de suas viagens à África e seu contato com figuras como Nasser, Ben Bella e Abdulrahman Mohamed Babu, com este último tendo papel central no aprofundamento de Malcolm no pensamento socialista.

Nos meses antes de sua morte, Malcolm propõe uma unidade entre a população negra nos EUA e se afasta da noção abstrata de retorno à África, baseada no entendimento de que os negros norte-americanos constituíam uma nação à parte. Além disso, continua a delinear a questão da não violência e da autodefesa, aspectos que mais tarde se materializariam no Partido dos Panteras Negras. Em seu discurso onde declara independência da Nação Islã, Malcolm aponta:

“Quanto à não violência: é criminoso ensinar um homem a não se defender quando é vítima constante de ataques brutais. É legal, nos termos da lei, possuir uma espingarda ou um rifle. Acreditamos na obediência à lei.

Em áreas onde nosso povo é vítima constante de brutalidade, e o governo parece não ter capacidade ou intenção de protegê-lo, devemos formar grupos armados que podem atuar para defender nossa vida e nossa propriedade em tempos de emergência, como aconteceu ano passado em Birmingham; em Plaquemine, na Louisiana; em Cambridge, Maryland; e em Danville, na Virginia. Quando nosso povo está sendo mordido por cães, tem o direito de matar esses cães.

Devemos ser pacíficos, cumpridores da lei – mas chegou a hora de o negro americano lutar em sua autodefesa quando e onde quer que esteja sendo injusta e ilegalmente atacado.” [1] (destaques meus)

Neste trecho são latentes aspectos centrais na fundação do Partido dos Panteras Negras. Bobby Seale e Huey Newton, quando formam os primeiros grupos de vigilância nos bairros e passam a portar armas, se ancoram na constituição. Manter uma conduta séria e seguir a lei era, desde os tempos da Nação Islã, uma retorica marcante de Malcolm. Se a população negra estava juridicamente amparada, os policiais e o sistema judiciário não estariam com a razão e isso escancararia as contradições da repressão. Este era um recurso central para evitar a prisão. Com o tempo, porém, o formalismo jurídico burguês é, como de costume, totalmente ignorado em favor do genocídio da população negra. Em seu discurso O Voto ou a Bala, Malcolm aponta:

“A única coisa que eu já disse é que, em áreas onde o governo se mostrou relutante ou incapaz de defender a vida e a propriedade dos negros, é hora de os negros se defenderem. O artigo número 2 das emendas constitucionais concede a você e a mim o direito de possuir um fuzil ou uma espingarda. É constitucionalmente legal possuir uma espingarda ou um fuzil. Isso não significa que você vá pegar um fuzil, formar um batalhão e sair à caça de brancos, embora você esteja no seu direito – quero dizer, você teria razão; mas isso seria ilegal, e nós não fazemos nada ilegal. Se o homem branco não quer que o homem negro compre fuzis e espingardas, então que mande o governo fazer seu trabalho. Isso é tudo.” [2]

m outro aspecto da fundação e da linha política dos Panteras Negras é o Nacionalismo Negro. Aqui ele encontra duas dimensões, a primeira se refere ao que Malcolm definia como Nacionalismo Negro, uma tentativa de promover a autonomia e a organização da população negra nos EUA, influenciada pelo nacionalismo revolucionário na China, Vietnã e Argélia e pelo pensamento de Marcus Garvey. Já a segunda dimensão é o nacionalismo cultural que se desenvolve com a simpatia dos liberais, baseado no retorno à África e valorização da cultura africana, que se manifestava materialmente em vestimentas e comportamentos. O primeiro foi o que inspirou os Panteras Negras e o segundo foi combatido energicamente por eles.

Falando sobre o Nacionalismo Negro e como ele era um aglutinador da população negra que buscava autonomia, Malcolm cita a possibilidade de, mais tarde naquele ano de 1964, esta filosofia se converter na fundação de um partido:

“Queremos ouvir novas ideias, novas soluções e novas respostas. E, nessa ocasião, se acharmos adequado formar um partido nacionalista negro, formaremos um partido nacionalista negro. Se for necessário formar um exército nacionalista negro, formaremos um exército nacionalista negro. Será o voto ou a bala. Será a liberdade ou será a morte” [3]

Para além do caráter político, o Nacionalismo Negro, neste estágio do pensamento de Malcolm, se preocupava com a moral e o bem-estar da população negra, chamando atenção para restrição do uso de entorpecentes para elevação da comunidade:

“A filosofia social do nacionalismo negro entende simplesmente que temos que nos juntar e combater os males, os vícios, o alcoolismo, a dependência de drogas e outras mazelas que estão destruindo a fibra moral de nossa comunidade. Nós mesmos temos que elevar o nível de nossa comunidade, o padrão de nossa comunidade, a um patamar mais alto, tornar bonita nossa própria sociedade, para que possamos ficar satisfeitos em nossos próprios círculos sociais, e não correndo por aí, tentando forçar a entrada em um círculo social onde não somos bem-vindos.” [4]

A preocupação de Malcolm se centra na tentativa de aniquilação da população negra através da introdução das ditas mazelas pela própria burguesia estadunidense, que agrava propositalmente as consequências desse cenário com a negligência à saúde pública, educação, saneamento, moradia, emprego e lazer, além de instigar a violência policial e promover a segregação racial. Neste caso a religiosidade de Malcolm também atua nesta premissa moral sobre a comunidade negra, em certa medida.

Um último elemento central para compreensão do processo que dá origem ao Partido dos Panteras Negras, é a aproximação de Malcolm com o socialismo e o internacionalismo. Malcolm enfatizaria cada vez mais o fato de que a população negra nos EUA não era uma minoria se posta ao lado da luta dos povos do terceiro mundo. Malcolm colocava que Revolução Negra naquele país tinha potencial explosivo:

“Qualquer tipo de explosão racial que ocorra neste país hoje, em 1964, não é uma explosão racial que vai ficar confinada às fronteiras da América. É uma explosão racial que pode inflamar o barril de pólvora racial em todo o planeta que chamamos de Terra. Acho que ninguém discorda do fato de que as massas de pele escura da África, Ásia e América Latina estão a ponto de explodir de amargura, ressentimento, hostilidade, aflição e impaciência com a intolerância racial que vêm vivenciando nas mãos do Ocidente branco.” [5]

As “massas de pele escura” incluíam, segundo Malcolm, os povos amarelos, vermelhos, marrons e negros. A “Revolução Negra” era, portanto, uma Revolução de todos os povos não brancos. Nesse caminho, não foram poucas as vezes que Malcolm fez referência à China e a Revolução de 1949.

Numa concepção próxima a de Engels em “Sobre a Autoridade”, o que não infere que houve o contato ou foi usada como referência, Malcolm delineia o que é uma Revolução:

“Revoluções são baseadas em derramamento de sangue. Revoluções nunca fazem concessões. Revoluções nunca são baseadas em negociações. Revoluções nunca são baseadas em nenhum tipo de tokenismo. Revoluções nunca são, menos ainda, baseadas em implorar a uma sociedade corrupta ou a um sistema corrupto que nos aceitem dentro deles. Revoluções derrubam sistemas. E não há neste mundo sistema que se tenha provado mais corrupto, mais criminoso, do que este sistema que em 1964 ainda coloniza 22 milhões de afro-americanos, ainda escraviza 22 milhões de afro-americanos.” [6]

Daí que em maio de 1964, após a viagem à África, Malcolm, ao ser questionado sobre qual sistema seria ideal, dá a famosa resposta relacionando o capitalismo ao racismo:

“Não sei. Mas sou flexível. Como eu disse antes, todos os países que hoje estão se libertando dos grilhões do colonialismo estão se voltando para o socialismo. Não creio que isso seja mera casualidade. A maioria dos países que foram potências coloniais eram países capitalistas, e o último baluarte do capitalismo hoje é a América. É impossível para uma pessoa branca acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo. Não pode haver capitalismo sem racismo. E, se você por acaso encontrar para conversar uma pessoa que manifeste uma filosofia em cuja visão de mundo não haja racismo, geralmente se trata de um socialista ou de alguém cuja filosofia política é o socialismo.” [7]

Todo esse conjunto de fatores faziam de Malcolm X um dos quadros mais avançados no pensamento revolucionário da segunda metade do século XX. Certamente, caso sua vida não tivesse sido interrompida, veríamos uma aproximação cada vez mais contundente com os movimentos de libertação que seguiam a linha marxista-leninista e que se inspiravam na Revolução Chinesa e no pensamento de Mao Zedong. Não demorou muito para que surgisse uma organização que colocaria em prática o que Malcolm expôs como o caminho para libertação da população negra mundialmente.

O Partido dos Panteras Negras para Autodefesa

É claro que o pensamento de Malcolm X é uma das várias peças que formaram a linha política do Partido dos Panteras Negras. W.E.B. Du Bois, Fanon, o Partido Comunista no Alabama [8], além de outras diversas figuras e movimentos, estadunidenses e internacionais estiveram presentes neste processo. No entanto, Malcolm X e o cenário da luta pelos direitos civis, somadas as grandes revoltas que ocorreram em Los Angeles em 1965 e a morte de Martin Luther King em 1968, tornam a conjuntura dos anos 1960 primordiais na compreensão do surgimento e estruturação dos Panteras Negras. O Programa de 10 pontos de 1966 é iniciado justamente na premissa de determinação do próprio destino da comunidade negra, elemento debatido exaustivamente por Malcolm em seus últimos discursos.

A aproximação com o pensamento de Mao Zedong e a Revolução Chinesa, levando em conta a enfática referência que Malcolm faz a ela em seus discursos, teria papel central na linha ideológica dos Panteras. A linha maoista se materializou tanto na forma organizativa como na linha internacionalista que guiou diversos povos do terceiro mundo. Assim como Giap e Ho Chi Minh tinham profunda admiração pelo Exército Vermelho chinês, os Panteras Negras tinham em mente o gigante significado de uma Revolução num país oriental, vítima do colonialismo europeu e nipônico; um povo considerado inferior e que sofreu com a segregação.

O programa de 10 pontos não foi o mesmo, no entanto, com o passar dos anos. Em 1972 houveram modificações que atribuíram ao programa um caráter mais amplo, que abarcava toda população pobre e oprimida dos EUA, como os latinos e os pobres brancos do sul. Este fato demonstra não uma simples compreensão de que “juntos somos mais fortes”, mas uma profunda ligação com a realidade concreta norte-americana e o histórico de opressão vivido por outras populações. Os Jovens Patriotas, organização formada por sulistas migrantes que historicamente saíram dos Apalaches para o Norte em busca de emprego nas industrias, se inspiraram nos Panteras Negras e compuseram a Coalização Arco Íris posteriormente. Os caipiras (hillbillys), eram encarados como uma minoria distinta dos WASPs (Branco, Anglo Saxão e Protestante), o que os fez adotar uma postura solidaria a outras populações oprimidas ao longo do tempo.

Bobby Rush e um membro dos Jovens Patriotas em uma reunião na sede dos Panteras Negras em Chicago.

Com relação a Coalizão Arco Íris, é fato que a aliança se deu baseada numa frente chamada de antifascista frente ao Estado burguês, especialmente a administração de Chicago e suas forças repressivas. No entanto, longe de ser uma tática etapista ou que incluísse um rebaixamento da linha política, a Coalizão Arco Íris representou o mais avançado passo adiante na demarcação do campo revolucionário nos EUA. Em 1969, na Conferência da Frente Unida contra o Fascismo, o dirigente dos Jovens Patriotas, William “Pregador” Fesperman, coloca em termos claros a linha de sua organização que dava a tônica da Coalizão:

“Uma arma do lado de um porco significa duas coisas: significa racismo e significa capitalismo. E a arma do lado de um revolucionário, do lado do povo, significa solidariedade e socialismo.” [9]

A partir do exposto acima, as bases de fundação do Partido dos Panteras Negras estão no mais avançado pensamento radical estadunidense, a saber, a continuidade do pensamento de Malcolm X e a ligação fundamental com o internacionalismo, construído a partir da linha marxista-leninista-maoista. Esta última guia a estratégia e tática do partido a partir do princípio de “Servir ao povo de todo coração”. Neste sentido, a construção deste instrumento da vanguarda da população negra também vai no caminho de atender as necessidades imediatas da população. Mas não fazem isso de forma isolada, muito menos de forma espontânea. Antes de tudo, uma das primeiras ferramentas do Partido dos Panteras Negras para ingressar na luta efetiva, para além da autodefesa em prática, é o jornal.

The Black Panther

Em 25 de Abril de 1967 é lançado o primeiro número do jornal do Partido dos Panteras Negras, o The Black Panther. Contando com 4 páginas, o jornal denunciava o assassinato de Denzil Dowell, morto por um policial em Richmond, California. A matéria apresentava diversas inconsistências do caso, que foi concluído com a absolvição do policial. Neste sentido, a edição chama todos a se concentrarem para apoiar a família de Dowell e se organizar para autodefesa.

No mês seguinte, na Assembleia Estadual da Califórnia, sediada em Sacramento, é debatida a proibição do porte de armas, uma vez que grupos de jovens negros armados, os Panteras Negras, estaria ameaçando a lógica racista da polícia local. 30 Panteras Negras ocuparam, armados, as instalações da Assembleia. O fato e as imagens geraram uma enorme repercussão e impulsionou enormemente o Partido. O segundo número do jornal desmentia a narrativa da imprensa sobre Sacramento, bem como apresentava declarações e artigos de Huey Newton, Ministro da Defesa do Partido, cargo mais alto da organização.

Este segundo número do jornal dá o tom para todo primeiro volume. São apresentados artigos de outros militantes e um chamamento para as mulheres negras se organizarem. É exposto o Programa de 10 pontos e no final da edição há um pequeno formulário para contribuições financeiras e assinatura do jornal. Também há um trecho de “O voto ou a Bala”, discurso de Malcolm X. As citações de Malcolm apareceriam em diversas edições a partir dali, relembrando seu assassinato e demonstrando que a centralidade de seu pensamento para o Partido não deve ser subestimada ou esquecida.

No fim do primeiro volume, Huey Newton é preso e a palavra de ordem Free Huey (Libertem Huey) passa ao centro da agitação do Partido. Passando ao segundo volume, é adicionada e reproduzida uma seção internacional que contem matérias sobre os Tupamaros (guerrilha uruguaia) e protestos de estudantes iranianos. É conhecido que estes primeiros e Carlos Marighella também influenciaram a linha política dos Panteras. [10]

A seção internacional é baseada num marcante anticolonialismo. Não foram poucas as oportunidades em que Os Condenados da Terra de Fanon foi exaltado e tomado como ponto de partida para solidariedade internacional. Não atoa muitos Panteras Negras conservavam uma estreita ligação com a Argélia e buscaram refúgio neste país. Os laços com os Movimentos de Libertação, principalmente os localizados em África demonstram que mesmo negando o retorno ao continente, o nacionalismo cultural, o uso das vestimentas e criticando o caráter liberal deste fenômeno, os Panteras Negras não deixam de enxergar a centralidade do que ocorria lá para a Revolução Mundial, valorizando quando possível suas raízes étnicas e relembrando o papel marcante da escravidão nas Américas. Este último ponto os aproximou, ademais, da Revolução Cubana, dirigida por Fidel Castro, e outros países do Caribe, da América Central e da América Latina.

O Caribe foi, em muitas dimensões, um polo revolucionário muito próximo do movimento revolucionário estadunidense. Em especial a Jamaica, para além da figura de Marcus Garvey, era, segundo diversas figuras, um dos locais onde o movimento revolucionário estava mais avançado. A ilha de Granada, onde Maurice Bishop liderou a Revolução na década de 1980, foi muito influenciada pelo pensamento de Malcolm X e dos Panteras Negras, tendo Angela Davis estado muito próxima desta experiência. Todos esses casos, no entanto, foram alvo de ações extremamente incisivas por parte do Serviço Secreto dos EUA, que temia a reprodução da experiência cubana em outras ilhas.

Um outro exemplo do internacionalismo presente na construção no jornal era a constante abordagem da Guerra do Vietnã e do movimento pela paz que atuava nos EUA. Diversos veteranos de guerra e soldados negros eram apoiados e ouvidos pelos Panteras Negras.

Os desdobramentos da imposição do Estado de Israel ao território Palestino também foram abordados pelo The Black Panther. Numa edição de novembro de 1968, são inseridos mapas que demonstram a agressão das tropas sionistas e uma declaração de Mao condenando a política norte-americana na estruturação de Israel.

Seção Internacional do The Black Panther de novembro de 1968.

O internacionalismo era, portanto, seguido por princípio, sem que isso fosse encarado como desvio da realidade local. Raymond “Masai” Hewitt em um artigo no The Black Panther criticando o sindicalismo pelego e falando da necessidade de uma linha correta e uma autodeterminação aos trabalhadores negros militantes aponta:

“Esses mesmos sindicatos, que afirmam ser sindicatos operários, esquecem que um dos princípios básicos marxista-leninistas, que Lênin registrou, é que o interesse do proletariado local deve estar subordinado ao interesse do proletariado mundial. Assim advém o unionismo: eles começam a vender seus irmãos da classe trabalhadora em todo o mundo, mesmo os do outro lado da cidade.” [14]

Saindo da seção internacional, temos no jornal uma diversidade de artigos e textos de simpatizantes, moradores e militantes do Partido. No ano de 1968, é publicado um artigo de Wilford Holliday, vulgo Capitão Crutch intitulado Corrigindo ideias errôneas. Num dos trechos, Crutch expõe uma crítica as direções do Partido abertamente:

“Existem várias ideias adversas dentro do Partido dos Panteras Negras, no Exército de Libertação Negra, que entravam a aplicação da correta ideologia do Partido. Mas a não ser que estas ideias sejam plenamente corrigidas, o Exército de Libertação Negra não pode assumir as tarefas atribuídas para a grande luta revolucionária da América Negra. A fonte dessas ideias incorretas é o fato do Partido ser majoritariamente composto por negros de rua do gueto, junto com elementos da pequena burguesia negra. Os líderes do Partido, no entanto, falham em desempenhar uma luta determinada e planejada contra tais ideias incorretas, para educar (e reeducar) os membros na ideologia correta do Partido – que também é uma importante causa de sua existência e crescimento.” [11]

A crítica é inspirada no pensamento de Mao Zedong e expressa a preocupação em se guiar pela linha correta. O rigor quanto as premissas do Centralismo Democrático, onde o ultrademocratismo era severamente criticado, junto a concepções espontaneístas e anarquistas, não era, assim, contraditório a polêmica pública, desde que ela não fosse um ataque sem princípios a organização, obstruindo a unidade.

Em outra edição, de 1972, num artigo intitulado Os verdadeiros revolucionários brancos avançam, escrito pelo editorial, a publicação de diferentes perspectivas é defendida, mesmo que não esteja de acordo com a linha do partido:

“Em essência o Serviço de Notícias Intercomunal Black Panther é um fórum aberto, não apenas expressando a ideologia do Partido dos Panteras Negras, mas as variadas opiniões que existem em nossas comunidades pobres e negras. Se fôssemos publicar apenas o que o Partido acredita, o jornal teria apenas uma dimensão, expressaria um pensamento básico. Através de artigos enviados por muitas pessoas, o jornal permite um espectro amplo de opiniões. Na verdade, ainda que o Partido dos Panteras Negras possa não concordar com todo ou parte de um artigo, expressar uma visão particular que possa servir aos interesses do povo, publicaremos. Diferente dos medíocres jornal e mídia usuais, o Serviço de Notícias Intercomunal Black Panther pensa que diferentes opiniões são válidas de se publicar e precisam ser lidas, para que o povo possa ter informação suficiente se baseando em outras opiniões. É através da utilização de artigos escritos por diferentes pessoas que essa ideia de fórum aberto pode realmente ser implementada.” [12]

O espaço era, como se pode observar, aberto para as mais diversas perspectivas. No caso do artigo acima, é uma resposta a outro artigo que continha, segundo o editorial, diversos equívocos, que foram respondidos com base em princípios políticos.

“Nunca haverá paz entre o escravo e seu senhor até que o senhor esteja morto ou o escravo seja livre”. Na ilustração, referência a luta dos indígenas no estado de Indiana, EUA. Última página do nº 5 do vol.III do The Black Panther (1969).

O jornal também era um espaço para divulgar as demandas apoiadas por outros grupos políticos oprimidos, como os chicanos. Em uma edição de 6 de abril de 1969, uma matéria expõe 9 pontos defendidos pelos Panteras Negras de Denver em uma escola da cidade:

“A filial de Denver do Partido dos Panteras Negras, dirigida por Lauren Watson, apoiou integralmente as demandas dos estudantes chicanos da West High School de Denver. Percebendo que é de suma importância que a administração escolar e o currículo respondam às necessidades do corpo discente, os estudantes chicanos fizeram as seguintes exigências:

1. O West [High School] inclua o ensino da cultura e da língua chicana.

2. Que a escola demita Shafer por ensinamentos “racistas”.

3. Que nenhum aluno envolvido em boicote às aulas seja afastado da escola.

4. Que a educação bilíngue, desde o ensino fundamental até a faculdade, seja utilizada nas escolas públicas do Colorado.

5. Que o bairro vizinho de West High tenha seu próprio conselho escolar.

6. Que a literatura chicana seja fornecida na biblioteca escolar.

7. Que os professores se tornem mais conscientes dos problemas sociais e econômicos do bairro West High.

8. Que os professores se abstenham de aconselhar os chicanos a ingressarem nas forças armadas.

9. Que o tamanho das turmas na West seja reduzido e que métodos de ensino em equipe sejam introduzidos na escola.” [13]

The Black Panther era um importante meio do partido dialogar com a comunidade, expor diversos fatos que não estavam presentes na mídia convencional, divulgando a teoria revolucionária e as diversas ações do partido em todo país, de costa a costa. Conforme o partido crescia, mais informações continham as páginas dos jornais e mais conectada a população negra estava.

Isso não significou em nenhum momento que o jornal apelava para o simplismo. O The Black Panther era por si uma negação da subestimação da classe trabalhadora e, principalmente, da população negra. Demandas que hoje seriam encaradas como desnecessárias, desagregadoras, exageradas, eram expostas sem nenhum tipo de remorso. A linha política não era rebaixada em nome de nenhuma aliança com setores da burguesia e da social-democracia.

Mesmo que eventualmente nem toda população pudesse escrever contribuições ao jornal, os militantes estavam presentes nos locais realizando entrevistas, colhendo informações e atuando efetivamente ao lado da classe. Um dos grandes exemplos dessa atuação e articulação, paralela ao trabalho no órgão central, foram os programas de sobrevivência.

Os programas de sobrevivência

Com a alteração do Programa dos 10 Pontos em 1972, os Panteras Negras chamavam atenção para a extrema importância da relação entre teoria e prática. Os programas lançados nos anos anteriores, como o Café da Manhã para as Crianças estavam alinhados com a urgente demanda da população negra em relação ao acesso a necessidades básicas. A nutrição das crianças com o programa teve excelentes resultados, como a melhora na saúde e no desempenho escolar.

Os programas não eram, contudo, meramente assistenciais. Acompanhavam uma aproximação com a comunidade, baseada na noção de servir o povo. Fred Hampton, em diversas oportunidades, deixou clara essa premissa. Em Onde quer que o povo esteja, ao falar do Programa do Café da Manhã, afirma:

“Muitas pessoas pensam que é caridade, mas o que ele faz? Leva o povo de uma etapa para uma outra etapa. Qualquer programa que seja revolucionário é um programa que faz avançar. A revolução é transformação. Queridos, se você simplesmente continuar transformando, antes de perceber, e na prática mesmo sem saber o que é socialismo, você não precisa saber o que é, elas estão o defendendo, estão participando e estão apoiando o socialismo.” [15]

O Programa não é, assim, um fim em si. É uma forma de, através da realidade concreta da população, falar de seus problemas e agir para demonstrar a insuficiência do Estado. O Programa foi um meio de estruturar o poder paralelo ao Estado burguês, criando autonomia para população negra lutar contra a opressão, estar conectada com a aquela organização que se coloca a frente e pretende ser a vanguarda do processo revolucionário. Essa reivindicação de autonomia para o povo negro nos EUA foi legada pelo pensamento de Malcolm, que enfatizou a necessidade de tratar dos problemas concretos da população negra.

Outros programas estavam, no início da década de 1970, se desenvolvendo, como Programa Odontológico Gratuito, Serviço de Ambulância Gratuita, Fundação de Pesquisa de Anemia Falciforme, Programa Popular Angela Davis de Comida Gratuita, Programa de Assistência Jurídica Gratuita, Programa David Hilliard de Sapatos Gratuitos, Escolas de Libertação, etc. Os programas tinham a pretensão de serem os mais amplos possíveis e foram replicados por outros organizações como os Jovens Patriotas.

Ralph Bostick, membro do Centro Médico Popular Jack Winters dos Panteras Negras, mostra a Bobby Rush as novas camas e cadeiras de rodas doadas.

Uma das principais áreas de atuação dos Panteras Negras com alguns de seus programas era entre a população carcerária, contando com grande contribuição de George Jackson, que ingressou nas fileiras do Partido. Jackson, que já havia fundado a Black Guerrilla Family em 1966 na prisão, contribuiu com diversos artigos para o The Black Panther, expondo sua perspectiva sobre problemas enfrentados pelo partido e questões sobre a população carcerária. Em seu Programa de 10 Pontos, o Partido tinha também uma posição clara sobre a necessidade do desencarceramento da população negra.

Nesse contexto, o COINTELPRO (Programa de Contrainteligência), iniciativa do FBI, já agia desde o fim dos anos 1960 para aniquilar o Partido, tornando insustentável, ao longo dos anos, manter os programas. Em 1969, Fred Hampton foi assassinado através de um plano coordenado, só descoberto anos mais tarde. Diversos militantes foram presos e condenados com fianças exorbitantes. Um dos casos mais conhecidos, o Panther 21, condenou diversos Panteras Negras e estimou a fiança em 2 milhões de dólares. Entre eles estava, inclusive, Afeni Shakur, mãe de Tupac Shakur. Todos esses casos minaram a política de finanças dos Panteras Negras e desestruturaram a organização do partido, além de afetar psicologicamente os militantes e a população negra que os apoiavam.

Diversas questões, como o culto à personalidade de Huey e seus desvios posteriores a linha do partido, disputas internas que avançaram para um personalismo, como no caso da rixa entre Eldridge Cleaver, Elaine Brown e David Hillard, sem falar na introdução cada vez mais efusiva de entorpecentes nas comunidades negras, levaram ao fim do Partido.

É incontestável que, com a Coalizão Arco Íris, que reuniu diversas organizações em Chicago com o objetivo de frear a violência policial e lutar contra a opressão, organizando um poder paralelo, somada a acertada linha teórica do Partido naquela altura e a liderança de Fred Hampton, o governo norte-americano se sentiu cada vez mais ameaçado pelas incontornáveis contradições de sua sociedade. O processo de desestabilização e destruição dos Panteras Negras foi um genocídio planejado cuidadosamente que minou qualquer tentativa de ressurgimento do pensamento revolucionário.

Construir um balanço

Frente a uma histórica tentativa de atropelar os limites constitucionais para deliberadamente assassinar e encarcerar a população negra, as forças repressivas estadunidenses encontraram uma tentativa de contestação efetiva aos seus desmandos. O Partido dos Panteras Negras colocou em prática tudo aquilo que a burguesia branca e racista temia quando ouvia os discursos de Malcolm X e isso era intolerável.

Falar em Panteras Negras não é somente citar uma organização qualquer dos EUA, é falar da brutal repressão que o movimento revolucionário enfrentou no centro do império em paralelo a repressão ao redor do mundo. Nestes termos, se faz necessário o debate acerca da clandestinidade, das respostas a opressão e da retórica para evitar a justiça burguesa. São questões que acompanham qualquer análise acerca da história do Partido dos Panteras Negras.

Mas não é falar somente em repressão, é falar em todo potencial que essas organizações acumularam, é falar das linhas adotadas e de todo processo organizativo e político que as geraram.

A ligação entre a população negra estadunidense, do Caribe e da América Latina é nítida e quanto mais nos aproximarmos de seu legado, mais próximos estaremos de construir um processo revolucionário verdadeiramente ligado à nossa realidade.

Quando Amílcar Cabral fala em conhecer a realidade da nossa terra, não restringe o debate apenas a conhecer a realidade local. Amílcar sempre foi enfático em dizer que a Revolução, para acontecer em nossa realidade concreta, também busca inspiração em outros processos, mas não de forma mecânica. Quando cita as táticas da guerrilha em Guiné Bissau, diz sem rodeios que não precisava inventar moda, que Che e outros figuras tinham delineado muito sobre o que era a guerra de guerrilhas, mas que era necessário refletir sobre as especificidades locais.

Tendo isso em vista, falar, pensar, analisar o Partido dos Panteras Negras em todas as suas dimensões, levando em conta o trânsito de ideias no atlântico, é mais que necessário. Porém, este balanço deve ser feito a partir de princípios, não da mera simpatia. Essa simpatia abstrata, somada a romantização, é parte de um fenômeno na esquerda radical brasileira onde, apelando para a justificativa de que é necessário estar mais conectada com a população, tenta reproduzir a estética e os símbolos dos Panteras Negras, reivindicando mecânica e falsamente sua linha. Dessa forma, se deixa de pensar na realidade da nossa terra, como aponta Amílcar, buscando aquilo que pode agregar a nossa construção revolucionária, para tentar angariar o apoio das massas através da identificação superficial com algo que emociona e inspira, como foi o Partido dos Panteras Negras. Assim, não há balanço e nem crítica, apenas reprodução da identidade. Como consequência, o que se garante é a reprodução dos pontos negativos do dilema “marxismo-leninismo: identidade ou práxis”. [16]

É necessário construir esse balanço da atuação tendo como objetivo alavancar a atuação em solo brasileiro, aprendendo com os erros e absorvendo os acertos de forma crítica. Levar em conta a experiência dos Panteras Negras inclui, aliás, um direcionamento que evita o monolitismo ocidental, que pense as experiências de África e Ásia, que construa ativamente o internacionalismo. Isso se mostra cada vez mais urgente, principalmente levando em conta a agressão sionista contra o povo palestino.


Notas:

  1. Uma Declaração de Independência. Nova Iorque, 12 de março de 1963. Em Malcolm X fala: Os discursos do último ano de vida de Malcolm X. (Ubu Editora)
  2. O Voto ou a Bala. Cleveland, 3 de abril de 1964. Em Malcolm X fala: Os discursos do último ano de vida de Malcolm X. (Ubu Editora)
  3. Idem.
  4. Idem.
  5. A Revolução Negra. Nova Iorque, 8 de abril de 1964. Em Malcolm X fala: Os discursos do último ano de vida de Malcolm X. (Ubu Editora)
  6. Idem.
  7. O terror da “gangue do ódio” do Harlem. Nova Iorque, 29 de maio de 1964. Em Há uma Revolução Mundial em Andamento: Discursos de Malcolm X (LavraPalavra Editorial)
  8. Lições de ‘O Martelo e a Enxada: O Partido Comunista do Alabama 1928-1951’ em https://lavrapalavra.com/2022/11/30/licoes-de-o-martelo-e-a-enxada-o-partido-comunista-do-alabama-1928-1951/
  9. Young Patriots at the United Front Against Fascism Conference (1969) em https://viewpointmag.com/2015/08/10/young-patriots-at-the-united-front-against-fascism-conference/
  10. A influência de Carlos Marighella no Partido dos Panteras Negras em https://traduagindo.com/2021/11/04/carlos-marighella-panteras-negras/
  11. Corrigindo ideias errôneas. Publicado no The Black Panther em 26 de outubro de 1968. Em Raça, Classe, Revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos (org. Jones Manoel e Gabriel Landi)
  12. Os verdadeiros revolucionários brancos avançam. Publicado no The Black Panther em 13 de maio de 1972. Em Todo poder ao povo! Artigos, discursos e documentos do Partido dos Panteras Negras (Ciências Revolucionárias).
  13. The Black Panther, vol. II, nº 29. 6 de abril de 1969.
  14. O Partido dos Panteras Negras e o sindicalismo revolucionário. Publicado no The Black Panther em 4 de maio de 1969. Em Raça, Classe, Revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos (org. Jones Manoel e Gabriel Landi)
  15. Onde quer que o povo esteja. Discurso pronunciado na igreja batista Olivet de Chicago, em fevereiro de 1969. Em Raça, Classe, Revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos (org. Jones Manoel e Gabriel Landi)
  16. https://ujc.org.br/marxismo-leninismo-identidade-ou-praxis/