'O Partido Dirigente: para onde vamos? (parte 1)' (Leo Silvestrin)
Um ciclo de debates com os camaradas que fizeram parte da luta sindical do PCB na Região Metropolitana, começando com a nossa base dos Correios, poderia ser uma forma interessante de traçarmos o caminho para conquistarmos as entidades sindicais de base na nossa região.
Por Leo Silvestrin para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Como bem disse um camarada, o Partido Comunista Brasileiro anterior ao racha de 2023 não era um partido: eram “muitos partidos unidos, por baixo de um sobretudo”. Havia, de fato, vários PCBs, cada um a seu gosto, em cada local de atuação que fazíamos parte.
Frente a essa fragmentação, a conquista da polêmica pública nesse processo de cisão foi, sem dúvidas, um grande patrimônio que esperamos deixar não apenas para o Partido Comunista que queremos reconstruir, como também para o Movimento Comunista Internacional e para os movimentos dos trabalhadores em geral. Se criou um meio muito mais dinâmico para construirmos uma unidade ideológica mais profunda na nossa organização, há anos imposta artificialmente pelas determinações, muitas vezes abstratas, quando não centristas, do então Comitê Central do PCB. Se essa luta entre tendências vai ser efetiva para contribuirmos no processo de formação da organização revolucionária do povo trabalhador no Brasil, apenas o tempo dirá.
Nesse sentido, escrevo minha primeira tribuna para manifestar minha divergência com algumas posições que foram colocadas anteriormente, em especial com as tribunas dos camaradas Jones Manoel e Theo Dalla, respectivamente “O “Partido Testemunho” e a nossa tática eleitoral” e “Rio Grande do Sul: inércia, esquerdismo e um caminho para sair da lama”, ambas publicadas em fevereiro. Em que pese pontos importantes levantados pelos camaradas, acredito que ambos simplificam algumas questões e traçam algumas conclusões equivocadas para a nossa linha partidária, a partir da análise que fizeram das lutas na região em que me encontro, a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). As reflexões que trago neste artigo também se basearam em diálogos que tive com camaradas da RMPA, a partir da repercussão desses dois textos entre parte da nossa militância local. O conteúdo do texto, no entanto, não se pretende de forma alguma em ser uma análise puramente regional, e se propõe a tirar conclusões que sejam úteis para o Movimento Comunista e para os movimentos revolucionários do povo trabalhador de forma mais ampla.
Gostaria que este texto tivesse sido publicado no mês passado, mas compromissos profissionais e de estudo, combinados com a minha dificuldade de vencer a prolixidade e algumas questões de saúde mental, impediram que esse texto fosse publicado mais perto do calor do momento. Apesar da distância temporal, vou publicar o artigo mesmo assim, pois como nos disse certa feita o camarada Ivan Pinheiro, “comunista não pode levar opinião pra casa”. Vamo nessa.
O lugar do temporal de janeiro na tribuna de Jones
O camarada Jones levantou em sua tribuna um questionamento importantíssimo: como é possível que o PCB-RR não conseguiu fazer nada frente ao temporal que arrasou o povo de Porto Alegre, em especial os trabalhadores e o povo que mora nas vilas da região durante o mês de janeiro? Pergunta fundamental, já que a construção de uma resposta popular aos efeitos da crise climática é o desafio histórico do nosso período. Vivemos em tempos de contagem regressiva para a hecatombe climática, que qualquer organização que se pretende revolucionária terá de enfrentar, seja em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no Brasil ou no mundo. Durante o processo de escrita desse texto, um novo temporal abateu o povo do Rio de Janeiro, e o PCB-RR ainda não construiu meios de organizar o povo trabalhador para resistir durante esses tempos de caos climático.
Qual deveria ter sido nossa atuação neste episódio e como deve ser nossa atuação em episódios futuros, no entanto, Jones não respondeu exatamente. O caos climático foi apenas um exemplo entre os citados para demonstrar dois pontos do camarada: o primeiro, a tendência à fraseologia revolucionarista dentro das fileiras do PCB-RR, mais interessada em travar a disputa ideológica sobre temas mais amplos da luta de classes do que dar as respostas imediatas para os problemas imediatos do povo trabalhador; e segundo, a crítica ao abstencionismo eleitoral por tempo indefinido defendido pelo camarada Ivan Pinheiro, que nega a possibilidade de filiação democrática e que seria ancorado em uma visão simplista e sectária do amplo campo político que conhecemos como “esquerda brasileira”.
Como se sabe, a posição que venceu dentro do Comitê Nacional Provisório foi a posição contrária a lançarmos candidaturas nas eleições burguesas em 2024. Não vou me aprofundar aqui sobre a tática eleitoral, tema que sempre considerei importante durante a minha trajetória militante e que sempre foi debatido de forma extremamente precária pelo PCB. Quero aqui me focar em discordar com a seguinte correlação traçada pelo camarada: concluir, com base na atuação dos parlamentares de esquerda por ele citados em seu artigo, que a eleição de quadros para o Legislativo se traduz em um avanço na organização das lutas do povo trabalhador e na conquista de medidas que melhorem significativamente a sua vida.
Minha divergência não é de princípio, pois também acredito que a participação nas eleições burguesas na atual conjuntura pode ter um impacto positivo para a luta revolucionária dos trabalhadores — embora não esteja convencido de que esse impacto positivo possa acontecer sem que uma organização que se propõe revolucionária tenha uma legenda própria, situação em que haverá forte pressão política (e, muito provavelmente, também legal) para que a candidatura ao Legislativo tenha que declarar apoio à candidatura ao Executivo da legenda utilizada, exigência que considero muito cara para a política revolucionária que o Partido pretende exercer, com base na experiência acumulada por anos de militância no PCB. Faço o apelo para continuarmos aprofundando essa discussão, pois a resolução do CNP em nada altera a importância do debate sobre a tática eleitoral na atual conjuntura.
Mas mais do que esse debate conjuntural e tático sobre o papel das eleições, o que pretendo aqui argumentar é que a análise feita sobre os parlamentares citados do Rio Grande do Sul não demarca algumas questões políticas importantes, e que essa falta de demarcação impede que a análise do camarada Jones cumpra o objetivo a qual se propõe, isso é:
[...] construir um Partido Revolucionário de quadros com inserção orgânica na classe trabalhadora que seja o mais firme, decidido e sério organizador das lutas cotidianas, imprimindo nessas lutas um horizonte estratégico de Revolução Brasileira. O Partido que a partir da luta por remédio no posto de saúde, creche, moradia, calçamento de uma rua, restaurante universitário na universidade, greves e lutas por melhores condições de trabalho, consegue formar quadros revolucionários e ser agente de uma hegemonia marxista-leninista.
Pego então o caso concreto onde um Partido Revolucionário é chamado a tomar uma posição e agir, que são as tarefas a serem tomadas frente a um temporal violento como o que vimos na RMPA. Para traçar esse caminho e ir além das abstrações, primeiro apresento aqui uma análise sobre a situação concreta em que a militância do Movimento Nacional em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB se encontrava durante aqueles caóticos dias de janeiro.
A situação do PCB-RR durante o temporal
Do ponto de vista subjetivo, nossa militância na região sofria ainda as consequências, que apenas agora começam a ser superadas, de uma importante derrota política: a perda das posições que havíamos conquistado dentro do movimento estudantil universitário da UFRGS. Como qualquer militante do PCB sabe, a maior base social do Partido no último período foi a base estudantil universitária. Isso também era verdade na RMPA, o que se intensificou consideravelmente depois da vitória eleitoral no DCE em 2022.
A queda foi dura, quando comparado com o grau de hegemonia política que havíamos conquistado: a direção majoritária em aliança com independentes em uma série de Centros Acadêmicos, garantindo uma maioria absoluta dentro do Conselho de Entidades de Base, com gestões declaradamente comunistas; uma aliança orgânica com o combativo Coletivo de Estudantes Indígenas, que nasceu da conquista de uma Casa Estudante própria para os povos originários; a direção sobre o movimento de luta por moradia estudantil no Campus Litoral, há anos esquecido pela esquerda universitária; uma presença destacada em três dos quatro segmentos da UFRGS (estudantes, docentes e técnicos); e, em geral, um apoio considerável da base estudantil, expresso também numa lista de recrutamentos de mais de uma centena de pessoas. Foi a primeira e única gestão de uma universidade de tamanho considerável que surgiu em oposição tanto ao campo democrático-popular quanto aos limites e contradições do campo da Oposição de Esquerda, rompendo com a realidade da organização no resto no país, como Jones cita, em que temos como prioridade alianças com o PSOL.
Para não alongar o texto mais do que o necessário, não cabe nesta seção desenvolver os motivos desta queda. O fato é que acredito fortemente que a dissolução da grande maioria da base que havíamos construído nos últimos anos dentro da UFRGS teve como consequência um efeito desorganizador que acabou por retrair consideravelmente nossa ligação com o movimento de massas na região, impactando subjetivamente o ânimo da nossa militância de uma maneira que talvez tenhamos subestimado. Esse efeito desorganizador é proporcional ao mesmo caráter aglutinador que o nosso peso no movimento universitário tinha sobre o conjunto dos outros setores, influindo nosso número de manifestantes nos protestos, formando agitadores e propagandistas e nos provendo um conjunto de quadros que eram “pau pra toda obra”, isso é, que podiam ser deslocados para participar de ocupações urbanas, auxiliar em greves noutros setores, etc.
A desorganização causada no processo acima se mistura com outros problemas da cisão, como o seu caráter prolongado, que desgastou a militância; a lógica de seita, que permeou toda a luta interna dentro do centralismo burocrático pecebista (e disso nós da ala esquerda não fomos exceção); e a impossibilidade de deslocar setores importantes para a cisão em nossa região, como o núcleo local do Coletivo Negro Minervino de Oliveira, cuja maioria da militância preferiu manter a unidade com a direção nacional do CNMO a se somar ao grupo local da cisão — fato que também impactou, como não poderia ser diferente, a convicção ideológica de quem aderiu à Reconstrução Revolucionária de 2023. A construção da aliança social dentro do próprio PCB já era um problema desde antes do racha. Em muitas das nossas bases universitárias (tenho aqui a UFRGS em mente, mas o mesmo pode ser analisado em outros núcleos), a UJC e o PCB viveram uma luta de classes no seu interior, com o potencial de inserção entre os estudantes trabalhadores, gerado pelo histórico de luta e por acertos da linha partidária, tendo frequentemente se chocado com a cultura das camadas médias, que tendencialmente traziam práticas racistas e elitistas para dentro da organização.
O já estudado federalismo da estrutura político-organizativa do PCB, que desconhecia a planificação conjunta dos trabalhos, afastou ainda mais os setores da militância entre si. Para dar um exemplo, a partir da minha entrada no Comitê Regional do PCB em 2022, fui naturalmente afastado imensamente da nossa base na UFRGS, embora eu more há não muitos minutos da universidade, pois a própria estrutura interna criava uma série de instâncias entre as lutas concretas na base e o CR (núcleo-assistente de núcleo-CE/CR UJC-assistente de Juventude-CR PCB). Esse federalismo foi ainda agravado por uma direção regional partidária que elencou, no Rio Grande do Sul e em outras regiões, a UJC como principal inimiga interna — não pela sua hegemonia pequeno-burguesa (no que diferia pouco ou nada da direção estadual), mas sim pela sua “falta de disciplina”, por suas “críticas públicas” e pelo seu combate “pouco camarada” e “internista” aos desvios oportunistas do Comitê Central (e do próprio Comitê Regional do PCB).
Nosso desgaste atual se deve, como querem nossos críticos à direita, simplesmente porque “pagamos a conta do fracionismo”, no caso do racha nacional, ou por conta do nosso “esquerdismo aventureiro”, por termos negado nos submeter à unidade eterna com a Oposição de Esquerda estudantil? Nada mais longe da realidade. Atuar como direção majoritária em qualquer setor é um problema estrutural da organização que buscou, depois de 1992, assumir o legado histórico do PCB. Basta olharmos novamente a nossa região e analisarmos brevemente duas outras bases em que o Partido teve influência: as militâncias sindicais dos Correios e do Magistério Estadual.
Pouco menos de uma década atrás, nos anos 2010, o PCB chegou a ter força para lançar uma chapa própria para a direção do sindicato dos trabalhadores dos Correios, o Sintect RS, fato notável dentro de um setor que tem forte influência reacionária. Além de conquistar essa influência, o PCB havia também conseguido criar, graças aos seus recrutamentos na empresa, conexões orgânicas com a escola de samba Imperatriz Dona Leopoldina, do bairro Rubem Berta, entidade cultural importante para o povo trabalhador da região. Mais ou menos na mesma época, o PCB teve um papel importante no processo de radicalização das lutas dos professores no Estado, cumpriu um papel destacado durante o rompimento do CPERS com a CUT e se inseriu em uma série de Núcleos nas escolas estaduais, tendo se tornado uma força importante dentro da oposição de esquerda à direção do PT e do PCdoB.
A direção nacional da UC e do PCB foram erráticas frente a esse potencial. Ou tiveram um efeito nulo, como no caso da militância dos Correios, que se articulou muito mais com a base do Piauí do que com a ausente direção nacional da UC e do PCB, até eventualmente se desgastar pelas suas próprias contradições; ou, o que é pior, acabaram cumprindo um papel verdadeiramente desagregador, como ocorreu mais recentemente, em 2021, com a base do CPERS. Nesse último caso, a direção pecebista falhou tanto do ponto de vista mais imediato, com o seu infame “Fórum Sindical, Popular e de Juventudes” que impôs goela abaixo da nossa base uma aliança nas eleições sindicais com a Construção Socialista, força rebocada pelos setores cutistas dentro do CPERS, a fim de “manter a unidade do Fórum”; quanto também falhou em apontar as tarefas do longo prazo, pela incapacidade do Partido e das suas direções nacionais de formularem um plano coeso para a construção do mítico “Encontro Nacional da Classe Trabalhadora e dos Movimentos Populares”, que deveria formar uma nova central sindical no Brasil. Quer dizer, o PCB luta para o CPERS se desfiliar da CUT, a desfiliação acontece, e na hora de dar o próximo passo, nossa militância só pode dar com os braços…
Ambas as bases, Correios e Magistério, poderiam ter cumprido um papel de força articuladora da luta de classes na região de forma consideravelmente mais avançada do que a base universitária, citada anteriormente. Ambas as bases, porém, entraram no rol de potenciais desperdiçados pelo Partido Comunista Brasileiro ao longo da história.
Ao ver que o camarada Jones retomou sua crítica sobre a ineficácia do PCB durante o aumento da fome na pandemia, não posso deixar também de analisar, nesse balanço das nossas forças, a relação entre a implosão da nossa base social em Alvorada com a atual resposta do PCB-RR ao temporal de janeiro. É importante lembrar que a Célula de Alvorada construiu, na época da crise sanitária e do genocídio de 2020, um comitê de solidariedade, chamado “Colabora Alvorada”, que foi efetivo em construir uma rede comunitária para suprir as necessidades das e dos trabalhadores, chegando a distribuir toneladas de alimentos nos bairros desta cidade, que se encontra na periferia da Região Metropolitana. Um dos nossos principais quadros articuladores da Célula, o camarada Rafael Melo, não suportou a crise do Partido em 2023, se sentiu usado pelas manobras oportunistas da direção dentro da luta interna no último período, que vieram à tona durante a crise do racha, e terminou se desligando do Partido, sendo hoje um camarada simpatizante, que pessoalmente espero seguir encontrando nas lutas. A encarniçada luta interna que se seguiu durante o racha terminou com a mútua anulação de ambas as alas da Célula de Alvorada — pelo menos, até o momento.
O exemplo da camaradagem alvoradense durante a pandemia foi uma exceção dentro da realidade nacional do PCB, de absoluta confusão em relação a qual devia ser a atuação dentro do movimento comunitário, como bem notou Jones. Na última década, dentro do federalismo pecebista, coube à Unidade Classista o papel de organizar nossa atuação dentro da luta territorial, através da formação dos Comitês de Base. Na prática, imbuída de organizar sob sua jurisdição tanto o movimento sindical quanto o movimento comunitário, conseguiu parcialmente organizar o primeiro, e falhou em organizar o segundo. É um déficit que está longe de ser recente: no processo de racha em 1992, perdemos totalmente todo o acúmulo que o Partido tinha dentro dessa importante frente de luta — para termos uma ideia, o PCB era direção política da Federação Riograndense de Associações Comunitárias e Moradores de Bairros, a FRACAB, entidade importante da luta comunitária na região. Com o liquidacionismo, todo o acúmulo dessa experiência se perdeu, e os quadros se espalharam em diferentes organizações, como o PPS, o PT, etc.
Devo discordar, portanto, do camarada Vesúvio quando ele resume, em sua tribuna “Enquanto isso, no Rio Grande do Sul...”, a relação entre o PCB e o movimento de massas em nossa região no último período como um simples “delírio coletivo”. Muitos camaradas ainda lembram da nossa presença nos protestos contra o governo Bolsonaro em 2021, quando tínhamos o maior bloco da marcha em Porto Alegre, um carro de som próprio, e até mesmo algumas figuras do PT, como Raul Pont e Maria do Rosário, resolveram espontaneamente e sem qualquer convite marchar nas nossas fileiras. Mas como condenar o camarada se as relações com o movimento de massas vão e vem e o PCB nunca conseguir apresentar um balanço qualificado sobre o que o próprio PCB fez, além de todo ano publicar, via o seu decadente Comitê Central, algumas notas mistificadoras sobre um suposto passado glorioso no século XX?
Estudar as nossas próprias experiências faz também parte do processo de conseguirmos formular uma política que consiga fazer a relação entre a defesa intransigente e inclusive “sectária” da Revolução Socialista e do Poder Popular, parafraseando o camarada Jones, com as batalhas diárias do povo trabalhador. Estudar as formas organizativas em que essas lutas se deram, como elas impactaram o movimento de massas, quais foram as lutas internas na nossa própria organização, como se estabeleceram a ligação entre o programa político e os planejamentos concretos (tática-plano), tudo isso são esforços necessários. As conclusões desses estudos não podem ficar restritas a um debate dentro dos comitês, como bem apontou o camarada Theo, mas devem ser compartilhadas publicamente, para o povo trabalhador poder retirar desses estudos as melhores lições para auxiliarem nas suas lutas. Superar a fraseologia revolucionarista e o espírito de “comentadores da luta de classes” também passa por isso. E acredito que, desde o racha de 2023, esse instrumento que uso para enviar essa contribuição tem cumprido um papel importante nesse sentido, ao compartilhar em público todo o balanço concreto das nossas lutas, que estava represado pelo federalismo burocrático imposto pelo CC e pelos CRs.
Não foram poucas as vezes em que a incapacidade do PCB em construir esses balanços acabou abrindo espaço para a “unidade” ressurgir como grande panaceia reabilitadora. Como não somos capazes de ser direção majoritária, então aceitemos que a vida nos obriga a fazer alianças. A unidade surge como solução mágica, que irá apagar o fato que a organização que se propõe dirigir um futuro Estado operário brasileiro não coloca ênfase em definir coisas básicas, como por exemplo qual é o modelo sindical que se defende, qual deve ser a estrutura deliberativa interna de uma entidade estudantil nacional, como devem se estruturar as associações de moradores, e como se constroi a estrutura interna do partido que se propõe a dirigir tudo isso. Muito mais fácil é se juntar com outras organizações que também não tem resposta para isso, pois a soma das nossas debilidades ao menos nos garante a vitória em algumas eleições.
Volto, agora, ao temporal de janeiro. Com toda essa situação prévia, tendo pouca ou nenhuma experiência em organização comunitária e estando alijados das posições no movimento de massas que outrora tivemos, a principal questão de grande parte da nossa militância durante o temporal foi tentar achar um lugar para carregar seu celular, tomar banho e acessar a internet. Quando viram manifestações em seus bairros, como no Sarandi e na Cruzeiro, tudo que nossos camaradas puderam fazer foi, de fato, “testemunhar”. Não custa lembrar que o grosso da nossa militância hoje, ao menos na região, entrou no PCB no período pós 2018, não tendo internalizado todo o acúmulo que a geração que participou do biênio 2015-2017 teve com a construção de trancaços de rua durante as ocupações estudantis, a PEC do Teto e a Greve Geral de 2017.
O Comitê Regional se colocou à disposição para ajudar nossa militância no que fosse necessário. Apesar disso, nenhum militante contatou a direção estadual para pedir ajuda. Não é por acaso: a militância sabe que, apesar de bem intencionado, o Comitê Regional, bem a verdade, não saberia bem como ajudar sua própria militância. Não tem um carro à sua disposição para rodar a cidade e a região, tinha apenas uma militante com possibilidade de dedicação exclusiva para o trabalho militante, tem contatos muito incipientes com as associações comunitárias e, hoje, já não dirige de fato nenhuma entidade popular significativa. Temos um caixa estadual forte, que poderia fazer doações financeiras, mas ele não foi solicitado por nenhum camarada nesse caso.
Frente às nossas deficiências, pergunto: ao nos depararmos com uma calamidade pública dessas proporções, a atuação das organizações políticas que têm mandatos parlamentares no Brasil deve ser o exemplo que devemos ter em mente para construir o Partido Revolucionário?
Acredito que não. Mais do que isso: eu acredito que simplesmente elogiar as atuações dos atuais parlamentares de esquerda que temos, sem refletir sobre como suas organizações se comportam dentro do movimento de massas e qual papel elas cumprem na organização do povo trabalhador, acaba cumprindo um papel negativo dentro do processo de construção do Partido Revolucionário no Brasil.
Quais exemplos devem nos guiar?
A agitação e propaganda é uma tarefa fundamental e incontornável em qualquer situação política, e durante o caos de janeiro, nosso papel em relação a essa tarefa foi nulo. Mas se queremos formular uma práxis que mude de fato a vida das pessoas, é essencial ter em mente que a tarefa mais importante de qualquer organização que se pretende dirigente do povo trabalhador é a tarefa da solidariedade. Neste caso do temporal, esse é o tipo de tarefa que somente com um contato orgânico com o cotidiano do povo nos bairros é possível de se realizar. Criar redes de doação de alimentos, doação de galões de água potável e até um sistema de distribuição de repasses financeiros para as pessoas mais atingidas pelo temporal, por exemplo, é o básico para começar a se construir a auto-organização comunitária e caminhar no sentido do Poder Popular.
Algumas iniciativas de auto-organização popular de fato foram impulsionadas por organizações da região, como o Coletivo Alicerce (corrente do PSOL), que há anos cultiva trabalho político nos bairros, e a UP, que centrou esforços na manutenção da Ocupação Sepé Tiaraju, sob sua direção. Em larga escala, porém, não surgiu nenhum exemplo de auto-organização popular durante aqueles dias infernais de janeiro.
Dado o caráter internacional da crise climática e os seus efeitos intercontinentais, é óbvio que não só podemos como devemos aprender com as experiências de outros países. Nesse sentido, a Tribuna de camarada L Queen (“Precisamos nos preparar para a conquista dos territórios! Desde já!”), que cita em sua análise o trabalho do Partido Comunista da Turquia (TKP) durante o terremoto que arrasou o país em 2023, aponta caminhos possíveis para nos inspirarmos, em que pese o caráter diferente dos desastres. A existência de sedes distritais como pontos de encontro para a atuação voluntária e a entrega de materiais pode ser um caminho para lidar não só com esse tipo de situação como também com outras, em que a crise geral do sistema abre caminho para a emergência de uma organização superior, no sentido do Poder Popular. Não à toa, o TKP chegou a ser perseguido pelas forças do regime burguês comandado por Erdogan, tamanha foi a eficácia comunista em ajudar e organizar o povo trabalhador, fato que envergonhou profundamente os dirigentes do Estado turco.
Mas para nos inspirarmos de verdade nos Comitês de Emergência do TKP, saindo do velho sofismo que celebra o PC da Turquia como se os méritos deles fossem nossos (truque muito usado no MCI), precisamos de muito mais informações. Como os comunistas turcos conseguiram e conseguem dinheiro para manter suas sedes distritais? Qual o volume de dinheiro necessário para realizar essa manutenção, com base na moeda turca? Há militantes remunerados nesse processo? Qual o desenvolvimento histórico das organizações de base do TKP que permitiu que o Partido chegasse nesse ponto? Qual a relação desse movimento com as escolhas e as orientações emitidas pelos organismos de direção regionais e pelo Comitê Central? Qual a estrutura organizativa interna que permitiu que o Partido chegasse a esse nível de desenvolvimento? Qual foi o papel da agitação e propaganda nesse processo? E a pergunta que não quer calar: a participação nas eleições burguesas cumpriu um papel determinante para o TKP conseguir dar uma resposta popular aos efeitos devastadores da crise climática na Turquia, ou não?
Nosso Comitê Nacional Provisório tem a legitimidade e até o dever, se quisermos responder às perguntas do camarada Jones sobre a resposta do PCB-RR ao temporal de Porto Alegre, de buscar essa e outras respostas com o Comitê Central da Turquia, seja através de bilaterais — sob incumbência da Comissão de Assuntos e Relações Internacionais — ou ainda, o que seria ainda melhor, através de uma transmissão ao vivo pública. Tenho certeza que o Secretário-Geral do TKP, o camarada Kemal Okuyan, teria interesse em participar, ou ao menos mandar alguma representação, de alguma atividade online em que essa e outras questões possam ser abordadas publicamente, seja pelo canal do Jones, pelo canal do camarada Gaiofato, ou pelas redes de comunicação próprias do Órgão Central do PCB-RR.
Depois dessa volta ao mundo, voltemos a Porto Alegre. É claro que não precisamos olhar apenas para organizações com grande confluência ideológica com a nossa para conseguirmos construir uma práxis que permita que o Partido que queremos construir tenha um papel positivo para a classe trabalhadora nas próximas crises. A humildade é uma característica fundamental para quem quer construir um partido dirigente, como nos ensinam inúmeras e inúmeros revolucionários da história. E é verdade que estamos falhando em nossa região nesse sentido.
Até o momento, como bem notou o camarada Theo, o PCB-RR não conseguiu fazer um giro de bilaterais com as principais forças políticas à esquerda na região, tanto para apresentar suas perspectivas depois do racha de 2023 quanto para as forças explicarem qual tem sido seu trabalho político, em quais setores e quais suas perspectivas para a luta de classes em 2024. Essas conversas são importantes também para fugirmos das caricaturas, conhecermos melhor as características do movimento popular da nossa região e, se e quando possível, construirmos ações conjuntas que melhorem a vida do nosso povo e avancem na construção do processo revolucionário.
Mas não podemos, também, ser ingênuos: a maioria das forças políticas não demonstra ter o interesse de socializar seus acúmulos dentro da luta de massas para além dos seus círculos militantes. O que o camarada Jones pontua, sobre a ausência de uma teoria sobre organização, finanças e trabalho comunitário dentro do marxismo brasileiro, está longe de ser um acaso ou mero descuido. É um projeto. A verdade é que o espírito de seita circula amplamente dentro da esquerda brasileira, e com ele vem também o velho desejo de “chutar a escada”, isso é, de impedir que outras forças políticas conquistem os mesmos espaços que estas forças, de uma forma ou outra, conseguiram conquistar. As lindas palavras sobre unidade podem apontar o contrário, mas a prática e a produção teórica que vem das demais organizações políticas no Brasil nos levam a essa conclusão.
Não bastasse a falta de vontade em compartilhar seus aprendizados, não podemos deixar de notar que as organizações de esquerda no Brasil, principalmente (mas não apenas) aquelas forças que tem inserção eleitoral, também praticam dentro de si a velha lógica dos regimes burgueses, de divisão entre trabalho intelectual e manual: parlamentares do partido, de um lado, e trabalhadores da base, do outro. Precisamos deixar de lado essa visão mistificadora e olhar as coisas pela totalidade.
Não só Jones como outros camaradas nossos elogiaram a cobertura jornalística feita pelo deputado Matheus Gomes durante o levante espontâneo que emergiu nos bairros. De fato, Matheus é um comunicador de esquerda talentoso, como se produz aos montes no Brasil (o maior exemplo destes sendo Lula). Mais do que isso, graças ao seu cargo parlamentar Matheus tem dinheiro suficiente para visitar várias localidades de Porto Alegre num mesmo dia, algo que pode ser muito útil tanto à agitação e propaganda quanto para auxiliar na organização concreta das revoltas que surgiram nas vilas da cidade. Na prática, porém, Matheus, seus assessores e sua organização política cumpriram, a rigor, apenas a primeira função, quando colocamos em perspectiva o potencial político que ele e seus camaradas têm frente ao que foi de fato feito junto à classe trabalhadora. Ocorreu negociação com a Brigada Militar para evitar repressão em alguns locais, de certo; mas nada muito além disso.
Enquanto Matheus Gomes se destaca por ser, hoje, o principal agitador de esquerda de Porto Alegre, a Resistência, sua organização, não tem presença significativa em nenhum setor da classe trabalhadora na nossa região. Chega a ser curioso o sucesso político que ele tem, como quinto deputado estadual mais votado do Rio Grande do Sul, com a pequenez da sua organização política. Na UFRGS, local onde Matheus se estabeleceu como quadro destacado do movimento estudantil universitário, a Resistência nas últimas eleições ficou à reboque do PCdoB, com Matheus e Giovani Culau, parlamentar egresso da UJS, fazendo atividades dentro da universidade para tentar manter sua base. Não se vê o mesmo movimento em seu mandato para dar destaque a outras bases populares da corrente, dar voz à outras lideranças orgânicas da sua organização que se estabeleçam não só como quadros eleitorais mas como dirigentes das lutas cotidianas dos trabalhadores.
Observando o papel que a Resistência tem quando passa a ser direção majoritária de algum setor do povo trabalhador, pegando a submissão praticada pelas suas direções ao governo Lula e aos acionistas da Petrobrás dentro do Sindipetro-RJ, que eles dirigem em conjunto com os seguidores do Comitê Central do PCB, considero justo questionar se esta organização e seus quadros, parlamentares ou não, tem capacidade de exercer esse papel de direção — não só isso, mas se há de fato esse interesse, ou se o que importa mais é conseguir novos eleitores, não formar novas lideranças.
O MES, embora tenha agitado publicamente sua vitória sobre o Resistência no último Congresso do PSOL, a partir de sua maior inserção nos bairros populares de Porto Alegre, também demonstra ter dificuldades para ser direção política dentro da luta comunitária (setor prioritário a ser analisado nesta seção). Sob direção de uma militante egressa do MTST, essa corrente conseguiu colocar sob sua direção uma base expressiva de militantes populares focados no trabalho comunitário, organizados sob a égide da Frente Nacional de Lutas Campo e Cidade (FLN), a qual o MES tinha relação. Recentemente, no entanto, um militante do Resistência me comentou, enquanto conversávamos após uma atividade do PCB-RR na Restinga (expressivo bairro proletário de POA), que essa base havia sofrido uma cisão importante no último período — o que se sucedeu ao certo não se sabe, já que não fizemos bilateral nem com MES nem com FNL e nenhuma destas organizações fizeram um pronunciamento público a respeito da cisão. Mas os relatos de militantes do PSOL nas redes sociais indicam que esse rompimento é verdadeiro.
Ao me deparar com isso, me lembrei de uma reunião que participei em 2019, no Utopia e Luta, assentamento urbano dirigido por anarquistas, quando na reunião preparatória para a Greve Geral contra a Reforma da Previdência um militante da luta comunitária manifestou suas críticas à direção do MES, lembrando velhas queixas que nós convivemos com eles na luta estudantil já conhecemos: aparelhamento, falta de organização coletiva para além da própria corrente… Dentre outros pontos que agora, infelizmente, não consigo me lembrar nem achar em minhas anotações, mas que na época me marcaram.
O PT de Porto Alegre, nacionalmente lembrado pelo seu caráter mais combativo e à esquerda do PT nacional, também não foge à essa crise do movimento comunitário. Basta lembrar, como nos relatou o camarada Suricatto, da revolta da base petista que atua nas vilas da cidade, reunida no Fórum das Periferias de Porto Alegre, pela falta de diálogo com as direções municipais e estaduais, o que fomenta o sentimento de abandono entre as lideranças comunitárias. O partido que mais tem potencial de organização dos setores populares na região é o que mais desperdiça toda essa potencialidade, e nisso eles são iguais à sua direção nacional. Enquanto parte da sua direção tinha como horizonte máximo a convocação de prévias para a escolha da candidatura unificada da esquerda para a prefeitura porto-alegrense — lembrando que, para alguns dirigentes petistas, isso em si mesmo já era um sacrilégio, tanto que essa proposta já foi descartada, pela bondade do MES e demais correntes do PSOL! —, parte da sua base levanta a bandeira da auto-organização, com a velha palavra de ordem comunista: a formação de um Conselho Popular de Porto Alegre, que seja o poder político dirigente de fato dentro da capital gaúcha.
Não são movimentos interessantíssimos que surgem no seio do povo trabalhador? Sem dúvidas. Estamos aquém de cumprir o papel necessário? Óbvio! Agora, por que não usar a mesma régua que usamos, quando nos autocriticamos, na hora de falar no resto da esquerda? Por que, quando se fala de Matheus Gomes e Fernanda Melchionna, para citar os exemplos citados pelo camarada Jones, apenas se falou do seu inegável talento como comunicadores de esquerda bem remunerados, que fazem uma justa disputa do orçamento público, mas a análise para por aí, como se eles fossem apenas isso, e não eles próprios militantes de organizações políticas, cuja eficácia real na luta de classes deve ser analisada pela totalidade, e não apenas pelo que é feito nos seus mandatos parlamentares?
Citar a ala esquerda do reformismo brasileiro como exemplo de política que melhora a vida do povo trabalhador não é também saudar, por outros meios, a mesma política fraseológica, com lindas palavras e imagens sobre um futuro melhor, que cativa os setores médios, atrai alguns setores do proletariado, mas que ao final não se propõe a dirigir de fato a vida cotidiana do povo trabalhador na sua luta por remédio no posto, asfalto no bairro, melhores salários e saúde de qualidade, a luta final do povo trabalhador pelo fim do regime maldito da Nova República, pelo poder popular, pelo socialismo? Não temos duas décadas de política de “Oposição de Esquerda” liderada pelo PSOL dentro das eleições burguesas e, ainda assim, continuamos perdendo, restritos aos mesmos setores sociais desde o início do século?
Muitos querem a volta das Administrações Populares de Porto Alegre sem se preocupar em construir o movimento operário e popular que permitiu que essas administrações fossem possíveis. Até se fala em “mobilização popular” em abstrato, como se fosse o suficiente, sem se perguntar: em quais setores? Quem é o “povo”? Basta o líder eleito entrar, chamar um protesto e já basta? Se compararmos a Porto Alegre de 2024 com a Porto Alegre de 1988, quando existia um movimento dos rodoviários forte, um movimento comunitário forte, um povo trabalhador, em uma palavra, forte, logo saberemos quem foram os protagonistas esquecidos e quem até hoje são os coadjuvantes cheios de holofotes.
Quando falamos desse tipo de atuação, praticada há décadas por esse tipo de parlamentares, podemos dizer que ela se enquadra uma proposta política que, além de eventualmente amplificar as vozes de protestos espontâneos que surgem entre o povo, eleva a auto-organização das e dos trabalhadores para um nível, no mínimo, similar ao que tínhamos naquela época? Em resumo, eu creio que não. Podemos sim fazer da seguinte forma, que nem Theo defendeu em seu artigo, realizando a unidade de ação junto aos reformistas quando eles jogam à esquerda e combatendo-os quando jogam à direita. Mas por trás de cada movimento, é preciso observar a totalidade, não se deixar tomar a parte pelo todo. Se não, perdemos.
É claro que tudo que falei acima carece de mais dados. Justiça seja feita que a melhor dessas organizações que consegue fazer um balanço público mais honesto sobre sua própria inserção no proletariado, apesar dos pesares, é o MES. Mas me dou ao direito de falar com uma certa abstração e citar apenas alguns poucos exemplos, pois o camarada Jones e o camarada Theo também fizeram o mesmo ao falar da atuação dos parlamentares acima, só que defendendo argumentos contrários ao meu. Para chegarmos juntos à síntese revolucionária, alguém precisa fazer esse contraponto.
Sem uma análise totalizante, que demarque de vez a política comunista com os limites da ala esquerda do reformismo, deslocar as bases dessas organizações para um campo revolucionário, como propõe o camarada Jones, será impossível. Entre a análise e a práxis há um longo caminho, de certo. Mas sem essas demarcações, não construiremos nem uma política revolucionária para o movimento de massas — nosso principal desafio — nem construiremos uma política revolucionária para as eleições burguesas dentro do nosso período histórico — o que, até o momento, ainda acredito que é uma hipótese possível… Mas não dessa forma.
A revolta popular e a reestatização da CEEE
Com todas as fragilidades do amplo campo da esquerda dentro do movimento comunitário, não é à toa que mesmo com mais de 120 protestos espontâneos, os atos pela reestatização da CEEE em frente ao Palácio do Piratini (sede do governo estadual) foram extremamente tímidos. Os protestos passaram por cima da letargia das direções da esquerda — repito, nós não fomos uma exceção, tampouco foi exceção o pequeno grupo que restou dos aliados do Comitê Central em nossa região —, e essas direções não conseguiram fazer o movimento de unificar a luta nos bairros, fragmentada, com a luta unificada contra as administrações Melo e Leite e pela reestatização sob controle popular da CEEE.
Tivéssemos mantido ou ampliado nossa direção nos setores que tínhamos inserção no passado, como falei mais para o início desta tribuna, teria defendido que colocássemos ônibus no Sarandi, na Restinga, na Cruzeiro, em quantos bairros e vilas da cidade fosse possível, para transportamos a massa de revoltados para frente do Palácio do Piratini e da Prefeitura. Que as ações diretas acontecessem na frente dos prédios governamentais da capital, e que o castigo para os canalhas miseráveis que encheram suas contas saqueando o patrimônio público construído pela classe trabalhadora fosse, no mínimo, fugir das suas sedes para escapar da revolta popular, como fez o ex-presidente burguês Lenin Moreno ao se defrontar com a luta liderada pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador em 2019.
Claro: para alguns, planejar ações revolucionárias sempre vai ser exercício de futurologia e esquerdismo (ou ainda, “blanquismo”, para os oportunistas mais refinados). Na realidade, porém, não tem nada de aventureiro ou infactível nessa proposta: sindicatos de servidores públicos como o Simpa, o ANDES, a ASSUFRGS e o CPERS já conseguiram fazer isso diversas vezes em conjunturas passadas. Antes do governo Bolsonaro (melhor dizendo, antes de sermos domesticados), trancaços organizados pela esquerda eram muito mais comuns em Porto Alegre, eram organizados amplamente pelos movimentos populares, que agiam de forma coordenada. Atualmente, uma revolta bem organizada, mesmo se não conseguisse derrubar os governos, poderia ajudar a formar novas lideranças nas revoltas feitas de forma fragmentada nas vilas, e essas lideranças poderiam se unificar com o movimento sindical junto ao movimento comunitário mais antigo, já organizado no Fórum das Periferias, para darmos um novo passo rumo à construção de um Conselho Popular de Porto Alegre. Saindo das hipóteses das lutas passadas e partindo para o momento atual, uma maior participação nas atividades desse Fórum, possivelmente através da atuação da camaradagem da Célula da Restinga, por exemplo, poderia ser bem interessante.
Passo agora, concluindo minha intervenção sobre o temporal de janeiro, para o tema da reestatização da CEEE. Existe uma imensa mistificação neste movimento, que aconteceu em um período histórico totalmente diferente. A eletrificação era uma demanda importante da burguesia gaúcha naquele momento, em um contexto de distribuição muito inferior ao que existe hoje, e a incapacidade do capital estrangeiro suprir essa necessidade aprofundava as contradições no esquema da cooperação antagônica que existia entre os capitalistas nacionais e estrangeiros, em especial estadunidenses. Hoje a situação é outra: até o momento não surge protestos de nenhuma fração da burguesia em relação aos limites do Grupo Equatorial. Enquanto as vilas ficaram sem luz, não temos notícia de que o mesmo tenha ocorrido em nenhuma indústria ou grande estabelecimento. Sinal de que os donos do Grupo Equatorial sabem com quem podem e com quem não podem mexer.
Ou seja, reestatizar a CEEE é uma demanda que vai precisar ser levantada e batalhada principalmente pela classe trabalhadora, dessa vez com oposição de todas as frações da classe dominante em bloco. Da centralidade da mobilização popular, parece que todos, eu, Jones, Theo e Matheus temos acordo. Mas precisamos ir além: não basta eleger um candidato ao Executivo, seja em POA ou no RS, e pautar a reestatização da CEEE através de protestos na rua. Essa batalha precisa ser travada junto aos eletricitários.
Foram os eletricitários da CEERG, a filial da multinacional estadunidense que operava em POA, que pautaram primeiro a estatização da empresa em 1957. Foram as greves desses funcionários que foram enfraquecendo o poder real do capital estrangeiro que comandava a CEERG. Brizola surge apenas depois nessa história, e depois que a estatização é cumprida, seu governo tentou diversas vezes atacar a autonomia sindical dos trabalhadores da empresa, o que equivale a lutar contra o controle operário da produção, proposta que não cabia no esquema de conciliação de classes que ele representava. Lembrar o exemplo da estatização do século passado tem que ser feito sem mistificações, para assim podermos caminhar para, além de uma nova estatização, uma verdadeira socialização da rede de geração e distribuição de energia elétrica.
A CPI da CEEE Equatorial pode cumprir um papel na luta mais ampla pela reestatização da empresa, como a Comissão de Inquérito da Câmara de Vereadores de Porto Alegre cumpriu no século passado, essa última à época tendo sido impulsionada com a força dos eletricitários. Acredito que os movimentos que ocorreram até agora, de tentar fazer nossa própria cobertura sobre esse processo, estão corretos, assim como é correta a afirmação do camarada Theo, de que precisamos observar mais o que ocorre na Assembleia Legislativa do nosso Estado. Vencer a batalha da reestatização da CEEE, na atual conjuntura, sem movimento sindical entre os eletricitários, no entanto, me parece impossível. As refinarias reestatizadas pelo governo Lula, como por exemplo a Refinaria Alberto Pasqualini, de Canoas, fazem parte de um setor que tem um histórico de luta sindical considerável em escala nacional, que é o setor petroleiro.
Qual força política, partidária ou sindical, está à altura de organizar os eletricitários hoje? É uma boa pergunta. A exploração que se abateu sobre os trabalhadores da Equatorial após a privatização, gerando a morte dos eletricitários André da Silva Jardim e Thiago Nunes Bittencourt, certamente não tardará em produzir novas revoltas entre os funcionários da “nova” CEEE. Dadas as limitações históricas da nossa militância em conseguir construir um trabalho sólido e duradouro dentro do movimento sindical (uma verdade nacional), um bom papel que poderíamos cumprir, tanto para ajudar a nova geração de trabalhadores quanto para educar a nossa própria militância, poderia ser retomar os contatos com os antigos membros do grupo de eletricitários de esquerda que o camarada Theo dialogava, gravar uma entrevista com eles falando sobre sua experiência na empresa, seus métodos de organização, seus objetivos, limitações, assim como um balanço do trabalho feito pelas direções sindicais dos eletricitários até a privatização acontecer — esse último ponto, acredito, é central.
Esse trabalho pode ser alternado com vídeos mais propagandísticos, que peguem dados do processo de eletrificação nos Estados governados pelo Movimento Comunista no século passado para demonstrar a importância da planificação social da economia nessa e em outras áreas, por exemplo. Claro que tudo requer tempo e organização. O camarada Jones poderia fazer um artigo ou um vídeo explicando como funciona o seu processo de planejamento para escolher o tema, pesquisar e gravar seus vídeos, o que certamente seria bastante útil para orientar as empreitadas audiovisuais que nosso Órgão Central planeja fazer.
Este papel pode tanto ser exercido por nós quanto por qualquer um que queira batalhar pela reestatização da CEEE e por uma rede de geração e distribuição de energia que seja controlada e esteja à serviço da classe trabalhadora. Se Matheus Gomes e outros parlamentares da esquerda querem ser parte ativa desse processo, então devem colocar seu mandato à serviço não só da bandeira da estatização da CEEE, como também diretamente às lutas dos eletricitários. Podemos nos inspirar no exemplo do Bloco de Lutas pelo Transporte Público e construir, coletivamente e junto aos trabalhadores, um projeto de lei que garanta não só a reestatização da CEEE como o controle popular da empresa na mão dos seus funcionários. Colocar esse projeto em pauta mesmo que seja derrotado, para contrastarmos a posição majoritária do povo contra o nome de cada um dos deputados da Assembleia Legislativa que condenaram o povo a esse serviço de merda prestado pelo Grupo Equatorial. Essa investida legal pode fortalecer, embora de maneira nenhuma possa substituir, a luta de classes travada pelos eletricitários durante os próximos embates que certamente surgirão.
São ideias factíveis ou falo meras abstrações? Claro que tudo isso para virar realidade necessita de organização, planejamento. O Theo acerta quando diz que precisamos cumprir os objetivos do nosso planejamento regional, mesmo que alguns elementos tenham caducado. Ainda precisamos fazer nossa plenária estadual com nossos sindicalistas, por exemplo. Um ciclo de debates com os camaradas que fizeram parte da luta sindical do PCB na Região Metropolitana, começando com a nossa base dos Correios, poderia ser uma forma interessante de traçarmos o caminho para conquistarmos as entidades sindicais de base na nossa região, processo que pode ser extremamente útil em criar uma aliança operária junto aos eletricitários da CEEE Equatorial. Da mesma forma, nossos camaradas da base bancária do Rio de Janeiro, que pelo menos até onde eu sei é uma das maiores bases sindicais que temos nesse momento, também poderiam fazer uma atividade que abordasse tanto os desafios estratégicos quanto os desafios mais práticos do Partido Comunista dentro da luta sindical, gravar a atividade e divulgar em nosso Órgão Central.
Não há forma de frear a ofensiva burguesa sem elevar o nível de luta nos locais de trabalho para um patamar que ainda não vimos no Rio Grande do Sul. Mesmo as grandes lutas unificadas dos servidores públicos na última década no nosso Estado foram incapazes de derrotar qualquer uma das contrarreformas dos governos Sartori e Leite. Será necessário retomar, mais uma vez, experiências do passado, como a construção dos Comandos Sindicais intersetoriais e a construção de greves regionais, que unifiquem trabalhadores do serviço público e da iniciativa privada, para conseguirmos vencer não só a batalha pela reestatização da CEEE, como também a reestatização da Corsan, da Sulgás e da CRM. Quem quiser levantar a bandeira da reestatização deve entender que eleger um novo governo da Administração Popular, seja em Porto Alegre ou no RS, vai ser inefetivo sem que surja uma organização capaz de coordenar as lutas da classe trabalhadora, responder seus desafios imediatos e traçar o caminho para a conquista do poder. Por isso mesmo, o Comitê Regional do PCB-RR no RS afirmou, na declaração política “Os rumos da luta de classes sob o governo Eduardo Leite”:
[...] É necessário construirmos uma aliança social como a que foi firmada em 2017, quando mais de 40 milhões de trabalhadores de diversos setores, com destaque para os trabalhadores dos transportes, paralisaram a produção contra as reformas antipopulares do governo Temer – luta que, embora não tenha sido vitoriosa, conseguiu atrasar a aprovação da Reforma da Previdência por dois anos. Esse é o exemplo que deve nos guiar na luta contra as medidas de Leite.
Uma conclusão incompleta
Em que pese todas as oportunidades perdidas dos últimos anos, reforço que esse instrumento de construção de unidade ideológica que construímos nesse período de racha, em que escrevo essa contribuição, não pode de forma alguma ser perdido. Neste congresso, não devemos aceitar de forma alguma que retrocedamos aos níveis odiosos que vivíamos antes de 2023. Devemos, ao contrário, buscar expandir esse instrumento. As pequenas experiências audiovisuais que estamos fazendo em Porto Alegre são uma pequena tentativa de tentar levar as Tribunas de Debates para esse outro meio de comunicação e garantir que mais camaradas tenham o direito de se expressar dessa maneira.
Ao mesmo tempo que podemos e devemos pautar os debates estratégicos, concordo plenamente que devemos analisar nossas movimentações concretas, debater abertamente a estrutura organizativa que temos e a que queremos, nossos esforços financeiros e de agitação e propaganda, sempre buscando publicizar tudo ao máximo possível. Devemos tentar fazer isso mesmo quando falamos de experiências de trabalho clandestino, pois às vezes basta mudar um nome, uma localidade e alguns detalhes para podermos compartilhar com nossas lições sobre cada batalha. Isso já foi feito no passado, e pode ser feito novamente.
Além de discordar com a relação que se estabeleceu entre conseguir dirigir o povo trabalhador de uma forma revolucionário e o papel cumprido pelos parlamentares citados hoje nesse sentido, tinha um outro objetivo com a escrita deste artigo: discordar da caracterização do camarada Theo sobre a perda das nossas posições no DCE da UFRGS.
Em parte, em uma conversa de bar — que heresia! — o camarada Theo me elucidou sobre algumas questões referentes ao que ele quis dizer quando levantou o tema da unidade. O próprio camarada reconheceu que essa parte do seu artigo dá brechas para algumas concepções equivocadas, como eu falei acima, que tratam a unidade dos setores populares e a unidade das organizações que pretendem representar esses setores como se fossem a mesma coisa.
A principal questão que me interessa, nesse caso, é combater um balanço reacionário das nossas experiências na UFRGS: uma visão que prega que não conseguimos sustentar a direção do movimento porque simplesmente “não quisemos dialogar com outras organizações”. Porque éramos infantis e esquerdistas, que não entendiam que a vida requer a “unidade da esquerda socialista”, da mesma forma que nos diziam quando ainda estávamos sob a direção do Comitê Central do PCB. Essa é uma visão que acredito que também circula em parte das fileiras do PCB-RR nacionalmente, de uma base estudantil esquerdista de Porto Alegre, que agora paga o preço pelas suas aventuras. Basta agora nos recolhermos em nossa insignificância e voltarmos pra baixo da asa da Oposição de Esquerda, como sinal de “maturidade”.
Não posso concordar. Não vou concordar. Mas essa reflexão vai ter que ficar para a segunda parte do artigo.
Termino agradecendo o camarada Caio da Silva por todo o apoio no longo processo que foi finalizar essa minha primeira intervenção na Tribuna de Debates do nosso XVII Congresso Extraordinário. Aos trancos e barrancos, espero seguir contribuindo com a nossa Reconstrução Revolucionária. Como diz o velho ditado comunista, “se eu errar, me abandonem; se eu trair, me matem!”
Saudações comunistas e revolucionárias!
Nota de rodapé: enquanto escrevia esse artigo, o Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT) lançou um artigo, escrito por Guilherme Kranz, debatendo o legado de Leonel Brizola, especialmente quando o quadro trabalhista era parlamentar, prefeito e governador no Rio Grande do Sul: Estudos sobre Brizola e o brizolismo: luta de classes e o governo do Rio Grande do Sul. Me impressionei de verdade com a riqueza de detalhes dessa argumentação, da narração apurada dos conflitos de classe e do esforço de resgatar as lutas da militância operária, totalmente apagada pelo balanço oficial da burguesia e do reformismo em relação ao acirramento da luta de classes entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Rio Grande do Sul e, mais especificamente, na RMPA. Embora o artigo caia em alguns lugares comum das argumentações trotskistas, como por exemplo a pecha reducionista e inexata de colocar o camarada Jones como mero “stalinista”, o texto de forma alguma resume toda a luta de classes ao velho conflito entre os seguidores de um dos dois dirigentes do Estado soviético — embora se baseie, como não poderia ser diferente, no referencial teórico da tradição do MRT. Convido toda a camaradagem, desde o camarada Jones, a militância gaúcha, até todas as pessoas interessadas na construção do Partido Revolucionário do Proletariado e do modo de produção comunista, a lerem essa contribuição sem preconceitos, e tirarem por si mesmos as suas próprias conclusões.