'O negligenciado potencial revolucionário das trabalhadoras domésticas' (Guilherme)

Não haverá revolução se a vanguarda do proletariado não cerrar fileiras com as trabalhadoras domésticas, lutar pela ampliação dos seus direitos e, desde já, agitar pela socialização do trabalho doméstico e pela efetiva emancipação das mulheres.

'O negligenciado potencial revolucionário das trabalhadoras domésticas' (Guilherme)
"Mães solo, chefes de família, que compartilham dificuldades com outros trabalhadores, como a precariedade do transporte e saúde, as trabalhadoras domésticas são a base fundamental de um processo revolucionário que vise o fim do racismo e da opressão de gênero.

Por Guilherme para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Em abril de 2023 completaram-se 10 anos da promulgação da Emenda Constitucional 72, a chamada PEC das Domésticas. Fato é que, hoje, três em cada quatro trabalhadoras domésticas trabalham sem carteira assinada. Esse aparente descompasso entre a ampliação jurídica de direitos trabalhistas e o aumento da informalidade se explica, entre outras coisas, pelas manobras do congresso para minar qualquer tentativa de avanço real na regulamentação da PEC, sob o silêncio da esquerda institucional e da esquerda radical.

As Resoluções do XVI Congresso do PCB, ao traçar o perfil do proletariado brasileiro, reúne alguns dados acerca das trabalhadoras domésticas, entre eles o avanço da informalidade e a limitada sindicalização da categoria, além de fazer uma análise acerca das raízes escravocratas do trabalho doméstico e o fato de 65% das mulheres que ocupam a profissão serem pretas e pardas.

No Programa de Lutas para Implementação da Estratégia Socialista no Brasil, o ponto 68 diz:

“As mulheres hoje ocupam os piores postos de trabalho: são maioria nos empregos terceirizados e na economia informal. A massa salarial das mulheres representa 70% da massa salarial dos homens, e o índice de desemprego é maior entre as mulheres, principalmente entre as mulheres negras. As famílias mais pobres do Brasil, segundo o IBGE, são as famílias mantidas por mulheres. Considerando isso, propomos: organizar a luta em defesa dos direitos das mulheres trabalhadoras, pela ampliação da licença maternidade e da estabilidade pós-retorno ao trabalho, multa e readmissão das trabalhadoras grávidas demitidas; lutar pela igualdade salarial entre mulheres e homens, sem rebaixar mais os salários; aumentar e regulamentar a licença paternidade, para que haja o devido compartilhamento do cuidado com a criança; defender a ampliação das creches públicas em locais de trabalho, moradia e estudo e a criação de locais de acolhimento e cuidado de crianças no horário noturno; lutar por políticas públicas que possibilitem a emancipação da mulher dos trabalhos domésticos; incentivar a participação em departamentos femininos e instâncias congêneres das entidades, com destaque para os sindicatos.” (itálico meu)

Poderia me estender expondo os pontos subsequentes das Resoluções que tratam do mesmo tema, mas me retenho a este pois é significativo para apontar uma grande problemática do PCB, a saber, a total negligência do potencial revolucionário das trabalhadoras domésticas e a ausência de um efetivo trabalho de base entre a categoria, seja ele de agitação, propagandístico, organizativo ou político.

As direções do partido deliberadamente ignoram a urgente necessidade de dialogar e cerrar fileiras com as trabalhadoras domésticas, relegando este papel exclusiva e exaustivamente ao Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM) e ao Coletivo Negro Minervino de Oliveira (CNMO) sem, na prática, incorporar os acúmulos destes, visando uma política séria de avanço na luta pelas demandas da categoria e superação do estigma racista imposto violentamente pelo colonialismo e continuado pelo capitalismo dependente.

Uma parcela significativa do partido, na figura dos homens cisgênero que compõem suas fileiras, num machismo velado e envergonhado, ignoram, rebaixam e minam qualquer tentativa de superação da superficialidade em volta da luta contra a superexploração das mulheres, especialmente as mulheres negras, envolvidas no trabalho doméstico remunerado e não remunerado.

Tendo isso em vista, pretendendo instigar o debate em volta desta questão, apresento uma pequena contextualização histórica acerca da questão racial no partido, entendendo este como ponto central na compreensão da negligência do trabalho entre as trabalhadoras domésticas, especialmente a partir da manutenção do mito da democracia racial e de um marxismo acadêmico, eurocêntrico e desdentado; além da apropriação de figuras como Laudelina baseado em um pecebismo enquanto escudo para barrar um balanço profundo e autocrítico dos erros do partido.

Antes de tudo, esclareço que ao me referir unicamente a trabalhadoras domésticas, a razão se dá pela majoritária composição da categoria por mulheres (cerca de 95%).

O PCB e a questão racial

Autores que abordam o debate racial no interior do PCB distinguem, no geral, dois momentos. O primeiro refere-se à negação da existência de uma questão racial no Brasil, que predominou durante a década de 1920 nas produções teóricas e nas respostas dadas à Internacional Comunista (Comintern) por Octavio Brandão e Astrojildo Pereira. O segundo se dá na abordagem mais radical que desagua, de forma ampla, nas produções de Edison Carneiro e Clóvis Moura.

Em relação ao primeiro período, a despeito das cobranças da Internacional pela abordagem da questão racial, Astrojildo e Octavio Brandão tinham uma concepção diferente. Mesmo com o entendimento de que a escravidão teve sua importância na formação social brasileira, com Astrojildo colocando Zumbi como o “nosso Spartacus”, havia a noção de que a principal contradição em solo brasileiro era uma contradição de classe e, portanto, não havia uma contradição racial. Octavio Brandão chegaria a afirmar que havia negros no Brasil, mas não havia uma questão negra.

Esse período é marcado pela baixa produção teórica, por vícios anarco-sindicalistas dos dirigentes e pela dificuldade em incorporar uma análise marxista, dada a ausência de literatura, principalmente.

Com as críticas da IC ao partido pela negação da questão racial e pelo parco trabalho entre as massas camponesas e negras no Brasil, o PCB a partir da década de 1930 tem na prática um giro em direção a uma crítica racial mais aprofundada. Edison Carneiro, militante comunista e antropólogo elabora o que seria a primeira análise marxista da questão negra no Brasil. É nesse período que também é fundada a Frente Negra Brasileira (FNB), importante organização que atuou no movimento negro, especialmente através da organização de festas, jornais, clubes, associações, grupos teatrais e outras iniciativas. Seu crescimento influenciou o pensamento de diversos militantes do partido à época.

Com o VII Congresso da IC, a política rebaixada de frente ampla dirigida por Dimitrov e a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), a crítica radical e consequente ao racismo no Brasil perde força e a superação das contradições raciais é não mais a vitória do socialismo, mas uma democracia popular em aliança com setores da pequena burguesia. Derrotada a Intentona Comunista de 1935, é instaurado o Estado Novo e o partido afunda na ilegalidade até o fim da Segunda Guerra.

É durante o Estado Novo, no entanto, que diversas produções contestatórias da perspectiva oficial do partido em relação ao debate racial, a saber, em termos superficiais, o entendimento de que a superação dos resquícios feudais eliminaria o preconceito racial, começam a surgir, em especial no estado da Bahia, que se torna o centro teórico e prático do partido. Leoncio Basbaum, por exemplo, histórico militante do partido, tentaria realizar uma crítica mais aprofundada acerca do racismo, paralelo ao desenvolvimento da obra de Édison Carneiro.

No período entre a redemocratização em 1946 e o Golpe de 1964, as produções de Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr. e outros autores (brancos) destacam-se no debate acerca da semifeudalidade e o carater etapista da revolução.

Sodré possui, diferente de Caio Prado, uma visão mais radical acerca da questão racial, negando o mito da democracia racial e enxergando o racismo das classes dominantes como forma de manutenção do poder. Mesmo com suas limitações, o autor conserva diferenças com uma visão predominante na perspectiva marxista brasileira do século XX, marcada pelo entendimento de que, entre outras coisas, o negro seria um agente passivo frente a escravidão e que a vinda do imigrante seria justificada pela incapacidade técnica do negro na transição ao trabalho assalariado. Uma visão que reflete na história “oficial” do movimento operário e trabalhista do Brasil, que enxerga suas origens no anarcosindicalismo imigrante e torna invisível as lutas dos escravos, quilombolas, indígenas, caboclos, sertanejos e caipiras.

É esta perspectiva do marxismo brasileiro do século XX que o afastou da questão racial e ainda o afasta em certa medida. A influência do mito da democracia racial e a noção escolástica de classe sobre raça e gênero gerou uma série de erros táticos e estratégicos.

Caio Prado Jr e a prioridade da classe nas análises marxistas

Lélia Gonzalez, em Racismo e sexismo na cultura brasileira, analisa de forma geral os efeitos do que chama de neurose cultural brasileira e as consequências da dupla opressão sofrida pelas mulheres negras. Lélia discorre acerca da violência simbólica causada pelo mito da democracia racial que contrasta o endeusamento da mulher negra carnavalesca, a “mulata”, da mulher negra trabalhadora doméstica.

Falando do papel da mucama no passado escravagista e sua relação com a prestação do serviço doméstico, Lélia chega a seguinte citação de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr.:

Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determinará senão relações elementares e muito simples. […] A outra função do escravo, ou, antes, da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, não tem um efeito menos elementar. Não ultrapassará também o nível primário e puramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente da esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem.

Segundo Lélia, esse texto seria um exemplo do que seria a neurose cultural brasileira:

Ora, sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento. Na verdade, o texto em questão aponta para além do que pretende analisar. No momento em que fala de alguma coisa, negando-a, ele se revela como desconhecimento de si mesmo. Nessa perspectiva, ele pouco teria a dizer sobre essa mulher negra, seu homem, seus irmãos e seus filhos, de que vínhamos falando. Exatamente porque ele lhes nega o estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de saber. É por aí que a gente compreende a resistência de certas análises que, ao insistirem na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raça e sexo. Ou sejam, insistem em esquecê-las. (itálico meu)[1]

Aqui, o apontamento de Lélia é uma grande demonstração da perspectiva da intelectualidade marxista em destaque à época e da própria forma como, de modo mais branda, se comportam certas figuras hoje acerca da temática racial, especialmente no que se refere a mulher negra.

Ao adotarem uma visão eurocêntrica e mecânica do marxismo, interpretando a luta do proletariado, da classe, como sobreposta às contradições de raça e gênero, negando a problemática, as direções do partido historicamente equivocaram-se seguidas vezes na compreensão da realidade brasileira e da estratégia revolucionária a ser adotada. Não só isso, como conservou em suas fileiras a opressão racial e tornou invisível o papel de inúmeras e inúmeros militantes, mulheres, negras e negros.

Esse foi o caso de Clóvis Moura, dada sua marginalização no interior do partido, o desenvolvimento de sua obra só ocorre com maior ênfase após seu rompimento com a organização. Sua obra Rebeliões da Senzala, indispensável hoje para compreensão da realidade brasileira, recebeu a resistência da executiva do partido para sua publicação, como aponta Pedro Chadarevian em seu artigo abordando a questão racial no interior do PCB entre 1922 e 1964.[2]

Outro caso se dá no IV Congresso do PCB em 1954, onde Iracema Ribeiro faz sua histórica intervenção, O Trabalho Feminino: Dever de Todo o Partido, destacando as insuficiências que são fruto de uma negligência construída ideologicamente a partir de bases patriarcais e sectárias:

Tais debilidades devem-se, fundamentalmente, ao fato de que existe em nosso Partido, das direções às bases, incluindo até o Comitê Central, uma profunda subestimação pelo trabalho feminino. [...]

Toda esta subestimação é de origem ideológica. É comum ainda entre grande número dos nossos companheiros a maneira senhorial de tratar as camaradas.

O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefa das Seções do trabalho feminino e das Organizações de Base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido, desde os Comitês Regionais aos Comitês Distritais. (itálico meu).[3]

Também não é atoa as críticas e a atuação externa ao partido por parte de Laudelina de Campos Melo, fundadora do primeiro sindicato de domésticas em 1936 e histórica militante comunista.

Laudelina e a recusa ao balanço autocrítico

É nas décadas de 1930 e 1940 que se dá uma parte considerável da militância de Laudelina de Campos Melo. Trabalhadora doméstica desde a adolescência, Laudelina aproxima-se da FNB e tem contato com militantes comunistas, que incentivam sua atuação, num momento em que a prática aflora sua consciência racial e de classe. Laudelina atua na fundação da Associação das Empregadas Domésticas do Brasil e chega a se filiar ao PCB.

Laudelina conservou durante toda sua vida um pensamento crítico acerca da abordagem da questão racial nos partidos, o que a levou a atuar em diversas frentes. Junto a igreja católica, apesar de sua ligação com as religiões de matriz africana e com o PCB; na campanha de Adhemar de Barros, mesmo este não sendo uma figura comunista; na própria FNB, apesar de suas contradições. Quando anos mais tarde se filiou ao PT, fez críticas contundentes antes de deixar o partido:

Tem vinte cartas do PT aqui, cancelei minha escritura, porque eles só estão fazendo aquilo que criança faz na fralda. Cancelei porque o erro começa pelo partido. Que opção? O programa do partido é bom, quem está lá é que está fazendo sujeira. Gente, o Lula é deputado federal, se omitir pra não sentar na mesa brigar. Falar as verdades que sacodem, ele vai falar quando? [...][4]

É extensa a quantidade de espaços em que Laudelina esteve presente em sua vida militando pelo direito das trabalhadoras domésticas, pela emancipação da população negra e contra o racismo no interior dos partidos políticos.

Aqui se coloca uma questão. Hoje, no PCB, a figura de Laudelina é resgatada de uma forma no mínimo insuficiente. Isto porque é superficialmente citada como uma importante figura histórica do partido, acompanhado do fato de ter fundado o primeiro sindicato de domésticas de vez em quando. Não há ainda um trabalho de estudo compromissado e sério de demonstrar que Laudelina é peça chave na compreensão da série de erros cometidos pelo PCB no tocante a questão racial.

Essa citação à Laudelina se dá em grande parte somente em postagens nas redes sociais de aniversário de nascimento e morte. Ao defini-la quase unicamente como militante histórica do PCB, a sensação que fica é a de uma relação com o partido semelhante a que ocorre hoje com diversos militantes, marcada pelo pecebismo. Laudelina não foi uma militante 100% devota ao partido, apegada aos seus símbolos, sacrificando-se pela sigla. Teve um momento em que se aproximou dele e sempre se colocou como comunista. Entendia o partido como instrumento para organização das massas para luta, mas não deixava de apontar a ausência do debate racial e este como elemento central das suas falhas frente à tarefa histórica de condução da revolução. Sua ligação ao partido não prova o compromisso do PCB com a questão racial à época e sim o oposto. Mostra como apesar da presença de figuras negras nas fileiras, o partido não possuía uma leitura qualificada acerca da questão racial e nem um trabalho prático consequente em muitos locais.

Nesses termos, podemos citar a figura de Maria Brandão. Militante histórica do partido desde seu contato com a Coluna Prestes, dedicou sua vida à militância. Foi premiada como Campeã pela Paz no recolhimento de assinaturas ao subir morros, percorrer os bairros e ir às portas das fábricas. Mesmo assim, teve sua militância durante um longo período apagada pelo partido, que ignorou sua grandiosa atuação mesmo quando foi premiada. Aliás, o resgate de sua história se deu pelo seríssimo trabalho das camaradas do CFCAM nos últimos anos.

Isso não quer dizer que o partido não teve uma destacada atuação em certos espaços e em muitos movimentos avançados que certamente tinham uma abordagem consequente da questão racial e da questão feminista. A própria atuação de Ana Montenegro e seu papel na luta contra o liquidacionismo nos anos 1990 demonstra o compromisso com o partido e com a revolução. Porém é importante destacar que, apesar do seu resgate por parte das camaradas do CFCAM, há muitos nas fileiras do partido que negligenciam suas contribuições, não conhecem e/ou secundarizam a luta. Nesse caso estamos falando majoritariamente de homens cisgênero mais uma vez.

Ao expor esses casos, especialmente de Laudelina, não quero dizer que o partido não deve fazer o resgate de sua figura. Quero dizer que o resgate da figura de Laudelina e de outras figuras no seio de um partido revolucionário passa por um trabalho sério e honesto de balanço do período histórico e da atuação do PCB na época, que leve a uma autocrítica consequente, visando superar as debilidades enfrentadas por ela em relação a negligência do debate racial. Uma autocrítica que, como define Amílcar Cabral, não se baseie em fazer cerimônia para depois, com a consciência tranquila, continue a cometer erros.

Esse resgate passa, entre outras coisas, por uma séria mudança em relação a como o partido e seus militantes encaram um dos principais espaços que Laudelina atuou, que foi entre as domésticas.

Herança escravagista e manutenção do privilégio

O trabalho doméstico remunerado no Brasil e sua herança escravocrata remontam o processo de Abolição e os esforços da classe dominante em manter a população negra submissa e marginalizada, além do claro objetivo de embranquecimento da população com base em políticas eugenistas. Da privação do acesso à terra ao ato de oferecer trabalho e terra aos imigrantes, são variados os usos do aparato jurídico estatal como instrumento mantenedor do privilégio de classe e raça.

Beatriz Nascimento, historiadora, poetisa, professora e militante do Movimento Negro, em seu artigo A Mulher Negra no Mercado de Trabalho, traçando um quadro da sociedade brasileira da Colônia à República e destacando os elementos raciais e de gênero na opressão contra as mulheres negras, vai apontar a continuidade das estruturas patriarcais e racistas após a Abolição e como isso reflete na ocupação da mulher negra:

A mulher negra, elemento no qual se cristaliza mais a estrutura de dominação, como negra e como mulher, se vê, desse modo, ocupando os espaços e os papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão. A “herança escravocrata” sofre uma continuidade no que diz respeito à mulher negra. Seu papel como trabalhadora, grosso modo, não muda muito. As sobrevivências patriarcais na sociedade brasileira fazem com que ela seja recrutada e assuma empregos domésticos, em menor grau na indústria de transformação, nas áreas urbanas, e que permaneça como trabalhadora nas áreas rurais. Podemos acrescentar, no entanto, ao que expusemos acima, que a essas sobrevivências ou esses resíduos do escravagismo se superpõem os mecanismos atuais de manutenção de privilégios por parte do grupo dominante. Mecanismos que são essencialmente ideológicos e que, ao se debruçarem sobre as condições objetivas da sociedade, têm efeitos discriminatórios. Se a mulher negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na sociedade colonial, isso se deve tanto ao fato de ela ser uma mulher de raça negra quanto a terem sido escravos seus antepassados. (itálico meu)[5]

Os mecanismos de manutenção do privilégio apontados por Beatriz Nascimento podem ser encontrados em variadas formas tratando-se das trabalhadoras domésticas. Um deles é o uso do aparato jurídico estatal na estruturação dos direitos trabalhistas, que durante todo século XX e até os dias atuais marginaliza a categoria dos seus direitos básicos.

Nesse sentido, é somente com o Decreto Lei n. 3078 de 1941 que trabalhadores domésticos são contemplados com alguns poucos direitos, baseados nos direitos e deveres do empregado e do empregador. O artigo 7º da CLT, no entanto, minou qualquer tipo de avanço em relação ao status jurídico das domésticas, restringindo a ampliação de direitos. Já na Constituição de 1988 são garantidos salário mínimo, repouso remunerado, licença- maternidade, 13º salário, aposentadoria e férias anuais remuneradas. Estes três últimos benefícios foram conquistas prévias ratificadas, isto é, já contemplavam outras categorias, mas não foram estendidas as domésticas.

O artigo 7º da Constituição, no entanto, que garantiu estes direitos as domésticas, recebeu o status de numeração taxativa, isto é, somente os direitos ali expressos estariam garantidos, deixando as domésticas fora de outros direitos adicionais, como acesso ao Seguro Desemprego, pagamento pelas horas extras e o benefício previdenciário por acidente de trabalho. Apesar destas conquistas jurídicas formais, a correlação de forças da redemocratização, baseada muito mais em uma retirada dos militares da cena e continuidade política e econômica do que numa abertura democrática e progressista, fez com que na prática os direitos estendidos as domésticas fossem letra morta. É sabido que durante as décadas posteriores as domésticas continuaram sendo vítimas da superexploração. As classes dominantes continuaram a fazer com que no âmbito jurídico formal houvesse o gritante descompasso com outras categorias, como por exemplo a inserção das domésticas no sistema do FGTS a partir do ato voluntário do empregador.

Aqui cabe abrir um parêntese sobre a limitante perspectiva formal da esquerda brasileira que entende a “Constituição Cidadã” e o Estado Democrático de Direito como grandes baluartes do sistema político de nosso país. Todo rebaixamento estratégico e tático desde os anos 1990 tem como ponto comum essa abstração do que seria a democracia brasileira e de como é necessário defende-la a partir de um frente amplismo sempre que forças reacionárias ameaçassem o sossego jurídico constitucional. Essa perspectiva teve uma grandiosa expressão a partir do Golpe de 2016 e o governo Bolsonaro, com campanhas institucionais e táticas de agitação e propaganda baseadas na defesa dos valores da democracia burguesa. A abdicação das pautas radicais e avançadas perdeu espaço para a luta contra o inimigo comum. Ora, frente ao malabarismo constitucional feito pelas classes dominantes para esmagarem todo e qualquer avanço na conquista de direitos de uma categoria que contempla em sua maioria mulheres negras da periferia, ignorando qualquer disposição abstrata, é no mínimo escandalosa a confiança no direito burguês. Volto a esse ponto depois ao falar da perspectiva radical para abolição do trabalho doméstico remunerado e do fim da família nuclear burguesa.

Outros avanços foram conquistados em 2006, como a garantia do descanso remunerado em feriados, 30 dias de férias corridos e garantia de emprego a gestante da confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Na outra ponta, garantiu incentivos fiscais ao empregador que assinasse a carteira de trabalho, efetuando desconto na declaração de imposto de renda.

Em 2010, o deputado Carlos Bezerra (PMDB/MT), representando um grupo de parlamentares que tinham como pauta o trabalho doméstico a partir da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sua Recomendação 201[6] que versa sobre a ampliação dos direitos das domésticas, equiparando-as às demais categorias, propõe a revogação do parágrafo 7º da constituição na PEC n. 478/10. Esta PEC, somada a proposição da deputada Gorete Pereira (PL/CE), que indica a nova redação do parágrafo, dariam origem a Emenda Constitucional 72/2013, a chamada PEC das Domésticas.

Tramitação da PEC e Silêncio da esquerda

A partir daí houveram Audiências Públicas que contaram com a mobilização das organizações sindicais das trabalhadoras domésticas, nomeadamente a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), que com todas as dificuldades buscaram o apoio de diversos movimentos visando não só a aprovação da PEC, mas a participação nos trâmites e a inclusão de diversos pontos. Foi significativo nesse momento a atuação do Movimento Negro, por exemplo, no apoio às domésticas.

Uma das lutas mais tenazes das militantes foi a contemplação da diarista. Este ponto é extremamente significativo uma vez que a extensão das conquistas seria muito maior. É com a não inclusão que se mostrou mais um mecanismo de manutenção do privilégio, já que com a previsível aprovação da PEC, era necessária uma brecha para que patrões continuassem a não assinar a carteira de trabalho, contratando diaristas. Essa foi apenas um dos incontáveis meios utilizados pela burguesia para impedir qualquer avanço real.

Paralelo ao andamento institucional, tem lugar o terrorismo midiático utilizado pelas classes dominantes para deslegitimar a luta pela aprovação da PEC. Os argumentos utilizados quase diariamente martelavam o fato de que com a aprovação, o desemprego surgiria devido aos altos encargos advindos dos direitos garantidos. Sempre foi de conhecimento das líderes sindicais e militantes, no entanto, que a PEC possuía limites e não era um fim em si. Haveria, certamente, maneiras de driblar a lei. Segundo Creuza Maria de Oliveira:

[...] toda vez que conquistamos um direito eles arranjam uma forma de burlar a lei, de não cumpri-la, de precarizar mais esta categoria, que já foi e continua sendo desrespeitada. Foi assim em 1972 e em 1988, quando conquistamos os principais direitos que temos hoje. Conquistamos o salário mínimo, que não era obrigatório até então; conquistamos o 13º, aviso prévio, folgas aos domingos, licença-gestante. Foram direitos importantíssimos vindos com a Constituição de 1988. Além disso, a classe de trabalhadoras domésticas cresceu de 4 para 7 milhões nesse período. [7]

Ficou conhecida nesse período uma entrevista extremamente cínica e absurda da autointitulada socialite Regina Manssur, fazendo uma defesa sem filtros dos patrões e das patroas contra a aprovação da PEC.[8]

Nesse cenário de terrorismo midiático e confiança dos parlamentares de que poderiam minar, através do aparto jurídico constitucional, qualquer avanço que, com a aprovação da PEC, sua regulamentação passou por um completo desmanche. A frustração tomou conta das militantes e sindicalistas da categoria ao se depararem com Romero Jucá (PMDB/RR) na relatoria da Comissão Mista, trabalhando para retirar todas as conquistas alcançadas nas Audiências Públicas e nos debates.

Muito se discutiu acerca da necessidade de creches públicas para consolidação efetiva da ampliação dos direitos das domésticas; sobre a necessidade de fiscalizar o cumprimento da lei e a investigação do trabalho análogo a escravidão. Nada disso foi contemplado na Lei Complementar 150, promulgada em 2015, muito menos nos anos seguintes com o Golpe e o governo Bolsonaro. Mais uma vez Creuza Maria Oliveira:

“Só que depois que foi aprovado, aí criou uma comissão de regulamentação que o senhor Romero Jucá, senhor de engenho, né... Senhor de engenho, neto de senhor de engenho, filho também, né... E disse “Oh, não é bem assim não… elas pensam que conseguiram tudo, mas não é assim não!”. E aí começa a cortar. [...] Depois a gente tentou convencer o Romero Jucá a manter a lei como foi aprovada lá, tudo que foi aprovado na Câmara e no Senado, mas ele debochava da gente, dizia que ia ter desemprego, que a sociedade brasileira não ia ter mais empregada...”[9]

Em todo esse episódio, parlamentares aliados, que se mostraram favoráveis a PEC, ficaram em completo silêncio diante do escandaloso recuo na garantia de direitos e efetivo progresso.

Claro que a garantia dos direitos básicos e a regulamentação gerou uma mudança significativa no status jurídico das trabalhadoras domésticas. A aprovação da PEC representou uma enorme conquista para categoria, especialmente pelo fato de que após 77 anos da criação do primeiro sindicato das domésticas houve uma ampla garantia de direitos e uma mínima equiparação aos demais trabalhadores e trabalhadoras.

Isso não apaga o fato de que essas garantias foram extremamente limitadas e, na prática, pouco alteraram a realidade. A informalidade apenas cresceu e o número de diaristas é muito maior do que de mensalistas. Mas no senso comum e fruto da completa negligência com a luta das domésticas, houve um entendimento de que a PEC foi extremamente avançada e ponto final. O apagamento na mídia da luta e a exclusão dos avanços na regulamentação garantiu mais uma vez a satisfação da burguesia que continua operando a superexploração das trabalhadoras domésticas. Hoje, de modo cínico, a mídia aborda a informalidade da categoria em matérias ocasionais nos jornais, quase num tom de “viu? A PEC piorou a situação”, sem citar que a burguesia atuou pela não efetivação dos direitos de forma plena. Soma-se ainda a pandemia que prejudicou enormemente a categoria e fez com que a burguesia ligasse um alerta e avançasse para forjar meios mais agressivos de se esquivar dos encargos trabalhistas.

Mudança de mentalidade e profissão digna

Em diversos discursos e relatos de domésticas antes, durante e após a aprovação da PEC, há um apontamento de que o maior obstáculo seria a mudança de mentalidade. Essa mudança de mentalidade, tanto dos patrões e patroas quanto da sociedade como um todo, diz respeito a noção de que o emprego doméstico não é uma profissão “de verdade”.

Em linhas gerais, esse pensamento se da tanto pela manutenção do privilégio das classes dominantes através do aparato jurídico estatal, como pela continuidade do racismo engendrado na intelectualidade eugenista e, mais tarde, na propagação do mito da democracia racial. Adiciona-se ainda aos meios de manutenção do privilégio a violência gerada pelo aparelho repressivo, que possui raízes no esmagamento das revoltas, fugas e quilombos formados pelos escravizados, especialmente no período do escravismo pleno, isto é, anterior a 1850 e a chamada Lei de Terras, como bem pontua Clóvis Moura em seus escritos.

Como já descrito anteriormente, o uso do aparato jurídico estatal se dá na exclusão das trabalhadoras domésticas da ampliação de direitos equivalentes a outras categorias, da CLT até a Constituição de 1988 e mesmo com a PEC. A manutenção do status jurídico das domésticas pelo Estado burguês é a base para sustentação ideológica do racismo e do sexismo das classes dominantes, além da garantia formal da superexploração econômica da categoria, através da baixa remuneração e nenhum custo com encargos trabalhistas.

Já o mito da democracia racial produz, também como já citado, a chamada neurose cultural brasileira, a negação do problema racial e o gerenciamento do “bom” comportamento das classes dominantes em relação as empregadas domésticas e os prestadores de serviços domésticos, um tratamento brando e mais informal. É o tal “você pra gente é parte da família” e derivados. Essa neurose, nunca é demais dizer, também presente no pensamento da esquerda brasileira de modo contínuo.

Com esses dois elementos, a saber, a manutenção do status jurídico, que relega baixa remuneração e sustenta a ideologia racista e sexista, e o mito da democracia racial, temos a histórica desvalorização do trabalho doméstico remunerado. A essa desvalorização do trabalho doméstico remunerado junta-se a desvalorização do trabalho doméstico não remunerado no entendimento de que, se tratando de um trabalho não produtivo, isto é, que não está estritamente ligado a produção do capital, não é um trabalho “de verdade”.

Fato é que para a manutenção das condições básicas da classe trabalhadora, para sua reprodução e para continuidade do próprio sistema, o trabalho doméstico é, invariavelmente, a pré-condição essencial. Segundo Angela Davis:

Se a Revolução Industrial resultou na separação estrutural entre a economia doméstica e a economia pública, então as tarefas domésticas não podem ser definidas como um componente integrante da produção capitalista. Elas estão, mais exatamente, relacionadas com a produção no sentido de uma precondição. O empregador não está minimamente preocupado com o modo como a força de trabalho é produzida e mantida, ele só se preocupa com sua disponibilidade e capacidade de gerar lucro. Em outras palavras, o processo de produção capitalista pressupõe a existência de um conjunto de trabalhadoras e trabalhadores exploráveis.[10]

Tendo isso em vista, chegamos a um ponto chave que é compreender o fato de que a luta das trabalhadoras domésticas foi marcada, especialmente da promulgação da Constituição de 1988 até os dias atuais, por um apelo a valorização da categoria, que passa pelo fim da baixa remuneração, pelo fim da relação hierárquica racista e sexista e pelo empoderamento das mulheres e, concretamente, das mulheres negras, que foram submetidas a humilhação e superexploração, à relações praticamente análogas a escravidão, sem direitos e sem qualquer amparo da sociedade, que durante anos viveram nos “quartinhos da empregada”, privadas da vida social e da construção de qualquer unidade familiar própria, além dos infinitos casos de solidão frente a imigração entre os estados brasileiros, especialmente do norte/nordeste para o sudeste.

Isso faz com que o discurso das militantes e empregadas domésticas buscando o reconhecimento e valorização, apontando que é um trabalho como qualquer outro e não necessariamente propondo a socialização do trabalho doméstico num primeiro momento, não significa que seja um discurso rebaixado ou reformista. Dado o passado escravagista e toda utilização do Estado na adequação do status jurídico inferior da categoria, qualquer mínima reivindicação é um passo significativo, principalmente tendo em conta as dificuldades da sindicalização e organização das trabalhadoras, pelo deslocamento e outras questões.

O potencial revolucionário das trabalhadoras domésticas e os equívocos e limitações do PCB

O recuo na regulamentação da PEC demonstra que, no capitalismo, em especial num capitalismo dependente e com nossas particularidades, notadamente aquelas enraizadas no passado colonial, não é possível humanizar a superexploração que envolve o trabalho doméstico. Isso porque uma real emancipação das mulheres e, nesse caso, se referindo ao trabalho doméstico remunerado e não remunerado, não se limita a ampliação de direitos (mesmo que, como já vimos, esse aspecto por si só representa um grande avanço) ou mesmo uma eventual remuneração para as “donas de casa”, como vulgarmente circula em algumas propostas social-democratas/progressistas. A verdadeira emancipação depende da abolição do trabalho doméstico remunerado e a socialização do trabalho doméstico.

É somente com a incorporação das mulheres que hoje exercem a profissão de trabalhadoras domésticas no processo produtivo que será possível abolir o trabalho doméstico remunerado. Para tanto, são necessárias uma série de políticas públicas tal como a garantia do pleno emprego, o fortalecimento e ampliação do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), a construção de creches, restaurantes e lavanderias públicas, um programa de erradicação do analfabetismo e uma reforma agrária popular, só possíveis sob o socialismo.

Dessa forma, enquanto categoria marginalizada, amplamente relegada a informalidade, submetida a superexploração e não valorização, à humilhação e a instabilidade, as trabalhadoras domésticas lutaram e lutam não pelo que perderam e sim pelo que nunca tiveram. São trabalhadoras que tem plena consciência da exploração e do papel que cumprem. Dessa forma, nadam contra a maré da esquerda que, desde há muito está presa num derrotismo e recuo frente ao avanço do neoliberalismo na tática recheada de “nãos”, sem propor o debate de forma radical.

Mães solo, chefes de família, que compartilham dificuldades com outros trabalhadores, como a precariedade do transporte e saúde, as trabalhadoras domésticas são a base fundamental de um processo revolucionário que vise o fim do racismo e da opressão de gênero. Não haverá revolução se a vanguarda do proletariado não cerrar fileiras com as trabalhadoras domésticas, lutar pela ampliação dos seus direitos e, desde JÁ, agitar pela socialização do trabalho doméstico e pela efetiva emancipação das mulheres.

E mesmo tendo em vista o potencial revolucionário das trabalhadoras domésticas, que são hoje cerca de 7 milhões, além das subnotificações, do trabalho análogo a escravidão e do trabalho infantil, a categoria é amplamente negligenciada no trabalho do PCB.

A negligência do partido em relação às trabalhadoras domésticas passa por diversos pontos, da estratégia e da tática ao comportamento dos militantes e o chamado pecebismo. E tendo isso em vista, é importante frisar antes de tudo: Falar até papagaio fala. Aqui não me refiro a algo que tal militante do partido disse ou ao que fulano de tal lugar pensa. Também abandono o mero formalismo; uma coisa é o que está escrito e outra coisa é a prática. Mesmo que as Resoluções do último Congresso sejam até avançadas nas proposições, as direções deliberadamente não cumprem seus objetivos.

Correndo o risco de apenas repetir os apontamentos de diversos camaradas até aqui durante a crise, em primeiro lugar entre os equívocos do partido em relação a pauta temos o rebaixamento tático. Frente ao governo de extrema-direita, a prioridade das direções sempre foi, sem nenhum segredo, a priorização da composição de frentes amplas de esquerda, que contavam quase sempre com PT, PDT, PSOL e UP (PCR). Nesse sentido, a atuação se deu a reboque das demais forças, se pautando por uma luta institucional e de pouco ou nenhum enfrentamento real, que econômica e politicamente atingisse a burguesia. No caso das composições junto a UP, por exemplo, o partido ficou refém de uma tática rebaixada, com palavras de ordem superficiais e que de forma mais ampla, apenas seguiam a visão etapista de luta antifascista precedendo a luta pelo socialismo. Sem negar o importante trabalho tocado por camaradas da UP em ocupações e nas periferias, é de conhecimento de parte considerável dos militantes comunistas brasileiros que estes seguem o dimitrovismo, isto é, de modo geral, uma política que visa o frente amplismo na luta contra o fascismo, e nas relações com outros partidos buscam, em boa parte dos casos de forma desonesta, tomar conta dos espaços, aparelhar assembleias e plenárias e priorizar os partidos social-democratas em suas alianças. Basta o exemplo das eleições de 2022 no Paraná e Rio Grande do Sul, onde a UP preferiu apoiar respectivamente Requião à Vivi Motta para governo do estado e Luciana Genro para deputada estadual.

Em São Paulo, a despeito da ausência de diálogo com a militância na construção das candidaturas, havia no Comitê Regional (CR) quem defendesse o apoio à UP e PSOL visando possíveis cargos em mandatos, num claro desejo de continuar no reboquismo dos últimos anos. O completo amadorismo na campanha, que foi de certa maneira encoberto pelo jogo de cintura e qualidade de alguns quadros, evidenciam o descaso das direções em de fato promover uma estratégia independente da classe trabalhadora.

A assinatura da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito e a não concretização do caráter de firme oposição do partido frente ao governo de conciliação de classes, somados ao reboquismo, convergem numa série de decisões políticas que levaram o partido, na prática, a um campo social-democrata, se afastando de uma posição firme em defesa da revolução e da luta pelo socialismo sem meias palavras e jogos de alianças com partidos reformistas. Tudo isso refletiu e reflete no comportamento e no posicionamento dos militantes em relação a pauta da emancipação das mulheres. Mas como?

Impera nas fileiras do partido uma percepção, de certa forma velada, principalmente entre homens cisgênero de que, sendo comunistas e lendo uma coisa ali e aqui, é inerente o apoio a emancipação das mulheres. Basta compartilhar nas redes sociais uma fala de algum homem revolucionário dizendo que a emancipação da mulher é necessária para revolução e tudo certo. Nos espaços em que a pauta é debatida, em especial em atividades organizadas pelas camaradas do CFCAM, reina a manifestação momentânea de apoio, quando não o próprio esvaziamento. Mas para de fato atuar nos espaços, difundir uma teoria revolucionária produzida pelas mulheres, de fato se aprofundar no tema e incorporar os acúmulos da militância dos coletivos, há uma rejeição na maioria das vezes envergonhada. É como se acenassem positivamente para tudo que é falado em relação a pauta, virassem de costas e continuassem a falar UNICAMENTE sobre Lênin, marxismo italiano, etc etc. Aliás, um adendo é que mesmo nas fileiras da UJC esse comportamento se repete, talvez até de forma mais acentuada.

Esse cenário ganha um outro contorno quando se trata especificamente da difusão e incorporação da teoria produzida por mulheres negras. O fato de nos últimos anos a figura de Djamila Ribeiro ter se tornado popular e esta por sua vez ter defendido em alguns espaços um antimarxismo, pautado nas insuficiências e nos erros em relação a questão racial cometidos pela intelectualidade branca e elitizada, infelizmente somando-se mentiras e desonestidades, fez com que uma parcela da militância masculina se sentisse extremamente à vontade para explanar racismo, sexismo e LGBTFobia na forma de luta contra o identitarismo pós-moderno. Ao contrário do trabalho sério de alguns militantes para de fato resgatar o marxismo periférico enquanto potente ferramenta de emancipação dos povos colonizados e de países de capitalismo dependente, este grupo de militantes, portando-se como cruzados contra o pós-modernismo são incapazes de compreender as dimensões das contradições raciais e de gênero no Brasil. Essas contradições são alvo de uma análise profunda na interpretação da realidade brasileira feita por mulheres como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Neusa Santos e outras autoras que, dada a persistência do movimento comunista brasileiro em sobrepor direta e indiretamente a classe sobre raça e gênero, não aderem, historicamente, às organizações marxistas-leninistas e são escanteadas pelo monolitismo teórico. Apesar de uma posição contrária a este último elemento no partido desde os últimos congressos, a abertura teórica só é válida em grande parte para os acadêmicos utilizarem intelectuais europeus que coadunam com o marxismo desdentado. Todo resto é pós-moderno, identitário ou simplesmente desinteressante.

Nesse sentido, fomos de certo modo acostumados a acreditar que esse comportamento vem somente de militantes do PCO ou figuras mais nefastas. Porém, ao negligenciar as questões no interior do partido, com as direções fugindo de uma estratégia e tática sérias caminhando para uma organização marxista-leninista de fato, obstaculizando o debate interno, minando a potência das bases no giro operário-popular, impedindo a incorporação dos acúmulos dos coletivos, mostram uma posição vacilante, racista e sexista. Certos militantes brancos, homens e cisgênero utilizam do argumento de que não importa que pessoas negras estejam em certas posições se não tiverem uma perspectiva de classe, o que até certo ponto é real, como muleta para prosseguirem com a exclusão dessas pessoas nos espaços internos da organização. Isso sem citar os casos de assédio, racismo e LGBTFobia que são arquivados e desconversados, ou o tom paternalista com que diversos homens em cargos de direção adotam ao dialogar com mulheres, sejam elas da direção ou da base.

Uma vez que a prioridade era a derrota do fascismo, personificado em Bolsonaro, seguida pela titubeação em se colocar como oposição ao governo de conciliação de classes, optando por atuar ali e aqui numa pauta mais avançada, priorizando alianças reboquistas, que a radicalização em relação a socialização do trabalho doméstico e da emancipação da mulher ganha o status de “fica pra depois”. Surge o entendimento de que, com o desenvolvimento da sociedade de classes e suas forças produtivas, responsáveis pela maior presença da mulher no mercado de trabalho (olhando superficialmente e ignorando a informalidade e as limitações) e nos espaços acadêmicos, através das políticas afirmativas, a luta está praticamente ganha, bastando esperar alguns avanços do progressismo no governo para naturalmente crescermos em toda sociedade, mesmo que isso implique em esconder nossos símbolos, abandonar o hífen do marxismo-leninismo ou deixar de falar no fim da família nuclear burguesa ou da abolição do trabalho doméstico remunerado, pois estas ou simplesmente se resolveriam após a tomada do poder ou assustariam a classe trabalhadora.

Há nesse sentido uma leitura limitada e pouco consequente de “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” que é encarada muitas vezes como palavra final no tema. Muitos militantes procedem negando as particularidades da luta pela emancipação da mulher, simplificando a questão à ordem econômica. Alguns são até mesmo incapazes de se aprofundar em temas abordados no livro como a monogamia, repetindo frases e noções do senso comum que apenas prejudicam a luta e que também representam um rebaixamento do discurso, fazendo uso de caricaturas para defender suas posições conservadoras. Discorrendo acerca da questão feminina na história e sua ligação com o socialismo, Heleieth Saffioti aponta que:

A teoria socialista, na medida em que tenta derivar os fatores que envolvem a condição da mulher exclusivamente da estrutura econômica, perde de vista um certo grau de autonomia apresentada pelas outras estruturas e, com isso, a possibilidade de perceber plenamente, de um lado, a singularidade da condição feminina e, de outro, os possíveis sociais abertos ao planejamento central. E Engels, embora tenha reconhecido a defasagem entre as estruturas parciais da sociedade, caiu vítima de seu economicismo.[11]

Heleieth ao longo de sua obra também chama atenção para a continuidade da desigualdade de gênero e outras problemáticas nas experiências do socialismo real, nomeadamente a União Soviética. A revolução por si só não irá do dia para noite derrubar determinadas particularidades em relação ao racismo e a opressão de gênero, mas só através dela será possível superar essas questões.

É nesse contexto que chegamos a outro grande equívoco do partido, que é a ausência de uma política séria de formação nacional, estadual e local. Com a pretensão de construir a Revolução Brasileira, é indispensável a formação de quadros que estejam à altura das diversas tarefas a serem empreendias. Sem compreender a singularidade da luta, abandonando a superficialidade de certas formulações, sem de fato partir para um estudo consequente da obra de mulheres negras, na incorporação de suas contribuições, que levem a uma verdadeira autocrítica no seio do movimento comunista tanto em relação a sua produção teórica quanto na reprodução das opressões no interior das organizações, não há como avançar.

Não é a mera falta de braços, pernas e cabeças para dar vazão a essas necessidades que impedem o avanço de uma atuação séria e consequente nesse caso. Sei que grande parte da militância atua com grandes dificuldades, sejam elas financeiras, psicológicas ou a própria falta de tempo hábil por conta do trabalho, faculdade e outras questões. Mas a profissionalização passa justamente por contornar isso. É inegável que na estrutura do partido, hoje, existem erros básicos facilmente corrigíveis. O que de fato impede o avanço é um real compromisso revolucionário que não esteja preso no carguismo, no amiguismo e no apego aos símbolos e a sigla. A criação exagerada de laços com o partido impediu e impede que diversos equívocos sejam vistos e que o posicionamento político de cada um na crise seja visto com clareza. Soma-se ainda o personalismo que faz com que os lados sejam tomados por aversão a determinada figura e pela suposição de que esta estaria promovendo interesses pessoais. Só é curioso que cheguem a essa conclusão após certa figura fazer diversos apontamentos de que persiste no partido e no próprio movimento comunista no Brasil uma visão racista e uma linha rebaixada. Ora, a negligência com a pauta do trabalho doméstico remunerado e não remunerado, o silêncio dos comunistas após a regulamentação da PEC, a completa ausência de atuação nos espaços dos sindicatos das domésticas, o fato das domésticas terem sido basicamente ignoradas nas campanhas eleitorais do partido, o comportamento da militância em relação a pauta da emancipação da mulher, a insistente permanência de um racista, assediador e misógino nas direções do partido em São Paulo são o que afinal? Superamos o racismo e a opressão de gênero no interior das organizações? O PCB e suas direções estão efetivamente caminhando para isso? Caso existam iniciativas de atuação locais, elas são compartilhadas e incorporadas pelo restante do partido? E aqui de novo, falo de um amplo panorama, não somente de determinado estado litorâneo.

Camaradas, quando digo que é necessário não rebaixar as pautas, claro que ninguém irá chegar nas trabalhadoras domésticas dizendo que o trabalho dela tem que ser abolido porque ela é superexplorada (não se pode deixar de imaginar esse tipo de contra argumento desonesto). É preciso agitar pelo fim do capitalismo e pela revolução, pois somente assim será possível a socialização do trabalho doméstico e da maternidade; só com o socialismo pode haver a incorporação das milhões de mulheres no processo produtivo. As domésticas, mais uma vez, têm a consciência, talvez mais do que qualquer outra categoria, não somente do grau de exploração envolvido no trabalho doméstico remunerado e não remunerado, mas do grau de exploração da sociedade como um todo. São mulheres negras que veem seus filhos, filhas e companheiros serem assassinados, vítimas da violência policial; mulheres que enfrentam a informalidade, a fome, a miséria, o racismo e a opressão de gênero; sabem na prática dos resquícios coloniais em nossa sociedade, das dificuldades culturais de superar o preconceito; tem a consciência de classe reafirmada em todas as jornadas de trabalho.

Atuar de forma consequente ao lado das domésticas não é somente ir em determinada reunião, conversar com um grupo de domésticas locais, citar as domésticas nas Resoluções Congressuais superficialmente. A atuação passa antes de tudo por um amplo processo de estudo da realidade brasileira. Nunca foi tão necessário reformar os nossos estudos, relembrando o clássico escrito de Mao Zedong. É preciso ter em mente este estudo visando uma ampla formação de quadros que estejam à altura da tarefa, que incorporem os acúmulos de diversas localidades onde o partido se fez e se faz presente. Sem nenhum sectarismo, é preciso aprender com os e as camaradas do CNMO e do CFCAM; do LGBTC e da UC; da UJC e do Vianinha. Em termos de História, é preciso superar o pecebismo, resgatar figuras e militantes do movimento comunista no geral, sem atuar na lógica de “esse foi do PCB, eu gosto”, “esse não foi do PCB, não me interessa”. É necessário que o resgate de Laudelina, Maria Brandão, Olga Maranhão, Iracema Ribeiro, Elisa Branco e outras militantes sejam feitos com o objetivo de superação e autocrítica dos equívocos do partido, que não sejam resgates superficiais, que haja a real valorização de militantes invisibilizados durante este século de existência do partido.

É nesse caminho que, em relação a luta das trabalhadoras domésticas, necessitamos também de um sério estudo da História; um resgate da atuação de Lenira Carvalho, Creuza Maria Oliveira e Luiza Batista. Cada vez mais a propaganda e a agitação do partido devem procurar meios de chegar até a categoria, superando as dificuldades da informalidade. Esse movimento passa por alavancar pautas como a necessidade de construção de lavanderias, creches e restaurantes públicos, pelo debate acerca da família nuclear burguesa, pelo trabalho doméstico e reprodução social, por uma real incorporação do feminismo classista que ultrapasse os limites do CFCAM, que esteja presente em todo partido. A agitação e a propaganda não podem ser submetidas ao rebaixamento da linha, deve seguir sim o objetivo revolucionário.

Somente lutando no campo da Hegemonia Proletária, trabalhando pela construção de um partido que sirva as massas de todo coração, será possível organizar e cerrar fileiras junto as trabalhadoras domésticas, lutando por suas pautas imediatas e agitando por tudo aquilo que é possível nos limites da institucionalidade, sem rebaixar as pautas comunistas radicais, debatendo a socialização do trabalho doméstico e o fim da família nuclear burguesa, sem temer as trabalhadoras, buscando o diálogo e principalmente ouvindo o que elas tem a dizer, quais são suas dificuldades e qual caminho pode ser trilhado.

Conclusão

Camaradas, não tenho a pretensão de, com essa tribuna, esgotar o tema, pelo contrário. Espero que este seja um pontapé para que se debata cada vez mais, para que esse tema se faça presente em cada vez mais espaços, que abra a possibilidade de outros temas relacionados serem debatidos. Nesse sentido, não tenho receio de críticas, peço para que as façam caso achem válido. Meus apontamentos provavelmente possuem lacunas e insuficiências, não acredito ser o grande senhor da verdade sobre o tema. Creio no princípio da crítica e da autocrítica, visando a superação coletiva de nossos obstáculos e dificuldades, nunca um mero pedido de desculpas esperando absolvição. Que possamos construir a partir daqui uma alternativa que dê conta da construção da Revolução Brasileira, uma revolução que tenha nas trabalhadoras domésticas, nas mulheres negras e todos os povos oprimidos do Brasil sua verdadeira face.

Sei que possivelmente haverá camaradas que, lendo isso, não necessariamente se sintam contemplades, apontando que realizam determinado trabalho em sua célula ou que não há militantes que seguem determinado comportamento. Penso que uma visão geral, entendendo o posicionamento de diversos camaradas do Brasil, se sobreponha a perspectivas particulares e, por isso, meu posicionamento. Como já afirmei, estou aberto ao diálogo.


Notas:

  1. Lélia Gonzalez. Por um feminismo afro-latino-americano, (p. 83-84)
  2. CHADAREVIAN, Pedro C. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro (1922-1964). (p.271) - https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175- 7984.2012v11n20p255
  3. Iracema Ribeiro. O Trabalho Feminino: Dever de Todo o Partido - https://traduagindo.com/2022/07/25/iracema-ribeiro-o-trabalho-feminino-dever- de-todo-o-partido/
  4. Pinto, E. A. Política, Raça e Gênero: Laudelina de Campos e a Presença Negra nas Organizações Político-Partidárias. (p.108)
  5. Beatriz Nascimento. A Mulher Negra no Mercado de Trabalho - https://traduagindo.com/2023/01/09/beatriz-nascimento-a-mulher-negra-no- mercado-de-trabalho/
  6. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/--- travail/documents/publication/wcms_179461.pdf
  7. https://themis.org.br/creuza-maria-oliveira-profissao-domestica-com-muito- orgulho/
  8. https://www.youtube.com/watch?v=URsKrTQl7mg
  9. Larissa Cristina Margarido. Entre Sonhos e Estratégias: A Conquista da PEC das Domésticas. (p. 8-9)
  10. Angela Davis. Mulheres, Raça e Classe. (p.236)
  11. Heleieth Saffioti. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. (p. 131)

Referências: