'O não debate sobre a China na nossa Tribuna de Debates' (Jones Manoel)
De maneira geral, porém, o nosso debate sobre a China é destituído do básico de rigor científico. Debatemos a China de uma maneira desleixada, com pouco estudo, acúmulo, levantamento bibliográfico e pesquisa real.
Por Jones Manoel para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“É dever dos dirigentes esclarecer-se cada vez mais sobre todas questões teóricas, libertar-se da influência das frases tradicionais, da velha visão do mundo, e recordar que o socialismo, desde que se tornou ciência, também deve ser exercido como uma ciência, isto é: estudado."
Friedrich Engels no prefácio ao “As guerras camponesas na Alemanha
O tema da China recebeu muita atenção nas tribunas de debate lançadas no Em Defesa do Comunismo. Polêmicas acaloradas, inflamadas, ácidas, agressivas, debochadas, cheias de certezas e afirmações taxativas. A Tribuna de Debates pré-congressual é um espaço político de acúmulo coletivo, mas, ao mesmo tempo, na tradição marxista, política e ciência não andam separadas. O fato da temática ser objeto de intensa divergência política não desobriga uma rigorosa abordagem em termos de pesquisa científica, compreendendo os principais aspectos de uma formação econômico social, apreendendo sua história, contradições centrais e dinamismos.
De maneira geral, porém, o nosso debate sobre a China é destituído do básico de rigor científico. Debatemos a China de uma maneira desleixada, com pouco estudo, acúmulo, levantamento bibliográfico e pesquisa real. A maioria dos textos, salvo as exceções que vamos indicar, não passam da justaposição de citações e certezas projetadas na realidade chinesa, expressando, infelizmente, casos tristes de arrogância e pseudo-conhecimento. Um festival de citações que vai do texto ao texto, onde cada um projeta suas certezas e na forma de identidade de grupo, firma sua identidade frente a outro grupo, antagônico.
Não pretendo nesta tribuna afirmar o que a China é ou apresentar a melhor e mais correta análise sobre a realidade do país. Tenho uma perspectiva mais modesta. Mostrarei, a partir de vários exemplos e argumentos, como o nosso debate tem sido pobre, fora dos pontos centrais que deveriam ser alvo de reflexão e destituído do básico de rigor científico, para tentar chamar à humildade, ao estudo paciente e disciplinado e a um verdadeiro debate marxista.
Antes disso, cabe uma nota teórica sobre o estudo da luta de classes em uma formação social. Na tradição marxista podemos elencar dois tipos de abordagens muito comuns: a análise de conjuntura, que procura capturar as tendências e contradições centrais de uma época em curta duração histórica para operar as mediações táticas daquele momento (palavras de ordem, bandeiras específicas, alianças pontuais, compreender a disposição de força entre as classes etc.) e uma análise histórica de longa duração, buscando compreender as estruturas, dinâmicas e legalidades de uma formação social para além das conjunturas mais imediatas. Apenas no plano didático os dois tipos de análise podem ser separadas. Uma boa análise de conjuntura tem como pressuposto um ótimo conhecimento da formação social em estudo e não é possível fazer um bom debate sobre formação social sem compreensão das principais conjunturas que marcam o processo histórico (sob pena de cair em uma espécie de “estruturalismo” vazio de contradições e negatividade).
As análises das nossas tribunas sobre a China não se colocam como análises de conjuntura, mas como polêmicas sobre o modo de produção dominante no país e sua inserção no sistema imperialista global, isto é, tal como Lênin em O desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, pretendem-se análises sobre a formação social do país asiático.
Alguém acharia normal um debate sobre o Brasil, buscando definir o modo de produção dominante e as principais características e tendências da nossa formação econômica social, sem um conhecimento aprofundado do nosso período escravista-colonial, a transição para o capitalismo dependente (independência, abolição, proclamação da república), a modernização conservadora iniciada com a Revolução de 1930, a consolidação do capitalismo dependente monopolista com a ditadura empresarial-militar e as transformações no padrão de reprodução do capital desde o início era neoliberal? Imagino que não.
No debate sobre a China o que está em jogo são mais de 3 mil anos da história de uma sociedade milenar, o papel do colonialismo europeu do século XIX até a Revolução Chinesa, as diversas fases e momentos da República Popular da China desde sua fundação até os dias atuais. É importante dizer que quando citamos o passado milenar da China, não comungamos de nenhum culturalismo simplista que tenta deduzir a realidade da China atual do mandarinato, a uma hiper determinação do confucionismo, ao histórico de rebeliões camponesas ou qualquer particularidade histórica como se tratasse de uma mera continuidade sem rupturas. Assim como é impossível compreender o Brasil sem uma análise qualificada do escravismo-colonial, a base histórica da gênese e desenvolvimento do nosso capitalismo dependente, não é possível apreender a China hodierna sem compreender as bases históricas do seu desenvolvimento, remetendo a sua história milenar.
Nesse tipo de análise, é claro, nunca podemos perder de vista a dimensão global e pesquisar, em cada momento histórico com variadas temporalidades de mirada científica, a relação entre o “interno” e “externo” nas possibilidades contidas do fazer histórico e nos caminhos efetivamente tomados. Aliado a isso, tal pesquisa precisa buscar compreender as relações de produção, forças produtivas, estrutura de classe, formas de atuação política e ideológica de cada classe e fração de classe, as principais correntes teóricas, Estado, poder político, sistema de dominação e o papel da formação social em questão na divisão internacional do trabalho.
Todos esses elementos, contudo, no caso da China, dizem respeito a uma realidade no qual nosso padrão de subjetividade historicamente construído é bem afastado e diferente. A China não é um país cristão, com “cultura ocidental”, idioma latino ou neolatino, com forte influência da tradição greco-romana ou um passado escravista colonial. Objetivamente, para um brasileiro, é mais “fácil” compreender a realidade do México e Venezuela do que da China.
De novo, não se trata de um culturalismo simplista, tratando a China como um Outro inacessível e incompreensível. A questão é destacar essas particularidades da formação social chinesa como desafios a serem superados na apreensão da sua realidade. O fato da China não ser um país historicamente cristão – diferente do Brasil, onde a Igreja Católica é a instituição mais duradoura e perene da história do nosso país – e ter como base de um ethos cultural de longa duração histórica o confucionismo, não impede nenhum brasileiro de entender esse país. Só chama atenção para a necessidade de considerar tal elemento e fazer coisas básicas, como estudar o confucionismo.
Feitas essas considerações preliminares sobre o estudo de uma formação social no geral e as particularidades da pesquisa sobre a realidade chinesa, podemos passar ao balanço das tribunas sobre o tema até agora.
Características gerais
Contamos 20 textos. O debate sobre a China começa em setembro de 2023 e vai até maio de 2024. Com exceção do texto de Guilherme Sales, Limpando o terreno sobre a África, o Brasil e o imperialismo chinês, nenhum camarada busca analisar a China em longa duração histórica, apreendendo os elementos fundamentais da formação social do país antes da dominação do colonialismo europeu e na Era Colonial. E mesmo o texto do camarada Sales, aborda o tema muito rapidamente, tematizando a relação China-África.
É totalmente inútil buscar nas tribunas reflexões sobre as dinastias do império chinês, budismo e confucionismo, relação com territórios vizinhos, centralização do poder, o histórico de rebeliões camponesas e a questão da terra, aspectos fundamentais da cultura, literatura e formação da nacionalidade chinesa e tudo de importante que você possa imaginar. Nenhum dos camaradas se propôs a analisar obras clássicas que debatem esse tema, como ReOrient: economia global na Era Asiática de André Gunder Frank; Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI de Giovanni Arrighi; Sobre a China de Henry Kissinger (sim, ele é um canalha assassino, mas seu livro sobre a China é importante); Duas Revoluções: Rússia e China de Perry Anderson; A Revolução Chinesa de Wladimir Pomar, etc. Posso multiplicar os exemplos ao infinito, isso porque citei apenas livros disponíveis em português (o que mostra que não existe uma barreira linguística absoluta), mas valeria destacar também a ausência de nomes como Martins Jacques, Samir Amin, Cláudio Katz, Charles Bettelheim (autores mais próximos de nossa época e que possuem boas contribuições para pensar a China em longa duração histórica e como esses condicionantes influenciaram na configuração específica da Revolução Chinesa e na construção da República Popular da China).
É curioso, camaradas, como nem as reflexões de marxistas clássicos sobre a China, como Marx, Engels, Stálin, Trótski, José Carlos Mariátegui, Antonio Gramsci e afins foram buscadas – todas, por óbvio, sobre a China antes da vitória da revolução.
É preciso que fique claro um ponto: imagine que alguém se proponha a fazer uma análise sobre a formação social brasileira, definindo qual seu modo de produção dominante, relações de produção, propriedade, forças produtivas e classes sociais no poder, sem citar ou ter consciência de toda nossa história, ficando preso apenas, digamos, ao período pós-ditadura empresarial-militar. Ninguém acharia isso uma análise séria. Mas foi exatamente isso que aconteceu com o nosso debate sobre a China até aqui. Quando aspectos de longa duração histórica da formação social do país eram citados, como o confucionismo, foi apenas para indicar sua incompatibilidade com o marxismo, sem maiores desenvolvimentos posteriores. Foi o que ocorreu com o texto A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira.
É notável também como toda literatura disponível nos últimos anos sobre a China, publicada em especial pela Expressão Popular, Autonomia Literária e Boitempo Editorial, simplesmente não foi debatida, citada, questionada ou rebatida. Não existe um levantamento bibliográfico mínimo para construir um debate qualificado. Cito três ausências que me chamaram atenção. Para algumas pessoas, foi Elias Jabbour o criador da ideia de que a China, com o período de Reforma e Abertura, permaneceu um país socialista. Nenhum dos camadas envolvidos no debate buscou estudar a obra de Wladimir Pomar e seu clássico e paradigmático O enigma chinês: capitalismo ou socialismo, de 1987. Essa obra por décadas foi uma das principais referências do Brasil para a tese de que a China se mantém um país socialista a partir da Reforma e Abertura.
Mesmo com o nome de Elias Jabbour citado por vários camaradas, ninguém também se dispôs a fazer uma análise crítica de sua produção, debatendo a partir de seus artigos e livros. É estranho a ideia de classificar alguém como principal representante de uma corrente de interpretação que deve ser combatida e não fazer uma análise minimamente séria de sua produção. Foi chamativo também como Domenico Losurdo e Vijay Prashad, dois autores de muita repercussão no Brasil nos últimos 5 anos e que defendem a tese da China socialista, não foram elencados para crítica de ambos os “lados” da disputa – em China, Confucionismo, Cristianismo e Esquerdistas os autores citam Losurdo, mas em um texto que, com todo respeito, carece de seriedade e sistematicidade.
Nenhuma das principais correntes e autores do Brasil e de outros países que influenciam nosso debate sobre a China, seja para afirmar seu caráter socialista, seja para defender que a restauração capitalista foi realizada, foi colocado em análise. A coisa chega ao nível do grotesco quando se percebe que nem a obra de Mao Zedong foi realmente avaliada. Recentemente, por exemplo, a Expressão Popular publicou o livro Mao Zedong e a Revolução Chinesa – métodos de direção e desafios da transição ao socialismo, organizado por Miguel Enrique Stédile. Uma ótima coletânea com vários dos principais textos de Mao sobre as diversas fases e momentos da Revolução Chinesa.
Conseguimos a façanha de realizar um debate sobre o socialismo na China sem que nenhum dos participantes analisasse minimamente a obra de Mao. Imagine Zhou Enlai, Deng Xiaoping, Hu Jintao, Jiang Zemin e tantos líderes históricos do PCCh. Camaradas, vou correr o risco de parecer pedante, mas foi triste as várias citações sobre o Regime de Nova Democracia como escândalo, novidade, uma espécie de prova que a China nunca foi socialista ou que o germe da restauração futura sempre esteve lá. Qualquer um poderia abrir as Obras Escolhidas de Mao em cinco volumes pela Alfa-Omega, ou mesmo o livro da Expressão Popular acima citado, e mostrar citações em sentido contrário. Mas me dispenso de fazê-lo. Acompanhar a produção marxista chinesa desde antes da Revolução até os dias atuais é uma tarefa hercúlea e difícil. Conhecer bem a obra de Mao, para quem se propõe a definir o que é a China, é o básico.
Conseguimos realizar um debate sobre a China que não aborda a história da formação social do país, não debate a obra do principal líder da Revolução Chinesa e grande arquiteto do partido e, pior, não conta com uma análise sistemática dos documentos e obras do PCCh. São citados apenas documentos do período da Revolução Cultural, frases pouco explicativas de Deng, algumas poucas citações de Mao e trechos de um dos volumes de A governança da China de Xi Jinping – além de um acadêmico chinês que é mencionado em uma das tribunas.
Achei incrível como em meio a tantas certezas, deboches, ataques, acusações de revisionismo de ambos os lados na busca de enquadrar o PCCh (seja como partido revisionista e operador do capitalismo, seja como parte de uma experiência ainda socialista), ninguém, absolutamente ninguém, fez ao menos uma tentativa de diagnóstico sobre as linhas estratégicas do PCCh e as mudanças operadas em várias conjunturas e momentos antes da revolução e na fase da República Popular da China. E até aqui estou falando apenas da pesquisa sobre os principais documentos. Não vou cobrar uma pesquisa histórico-sociológica sobre a dinâmica real e concreta de funcionamento do partido nestes mais de 100 anos de existência. Estou falando do básico, como pesquisar as principais e mais famosas resoluções e publicações – alguns desses textos, por exemplo, foram publicados no Brasil no livro A carta Chinesa, vendido pelos militantes ligados ao Jornal A Nova Democracia.
Imagine que alguém tome como tarefa compreender a luta de classes no Brasil nos últimos 30 anos, por exemplo, mas não dedique tempo a analisar a atuação de Lula enquanto liderança política e presidencial e muito menos as formulações estratégicas, táticas e teóricas do PT e do “campo democrático-popular” de forma mais ampla. Qualquer um de cara notaria a ausência e apontaria a falta de vários e vários elementos na proposta de estudo. Pois bem, no caso da China, foi isso que aconteceu. Em um texto seguido do outro, ninguém se propôs a fazer esse básico ou mesmo apontar tal ausência.
Como característica geral, também salta aos olhos a ausência de reflexão sobre relações de produção, propriedade, forças produtivas, poder político, ideologias, diversos contextos geopolíticos da inserção internacional da China e aspectos básicos, como a questão agrária. É irônico, no mínimo, ver militantes do ambiente urbano brasileiro projetando sua subjetividade no debate sobre a China. A questão agrária/camponesa é um fator emblemático do processo de conquista do poder e transição socialista na China – não à toa o maoismo conquistou milhões de camponeses no mundo todo para sua leitura específica do marxismo e da estratégia revolucionária. Mas o tema é sumariamente ignorado nas tribunas. No máximo é citado o papel da economia chinesa na dinâmica primário-exportadora brasileira e de outras regiões, como a ótima análise de Guilherme Sales sobre África.
É curioso, camaradas, como os defensores da tese de que a China já restaurou o capitalismo ou está em vias de fazê-lo poderiam debater a questão da terra como argumento central. O grande Samir Amin, no ensaio já clássico China 2013, no Brasil publicado como livro pela Editora Expressão Popular (Somente os povos fazem história), defendia que a China não poderia ser considerado um país de restauração capitalista realizada dado que era mantida a nacionalização da terra e seu índice de mercantilização era baixíssimo. Desde a publicação desse escrito de Amin a situação mudou bastante, a China conheceu uma acelerada mercantilização e especulação da terra, com explosão de vários processos de expropriação (com alguns pensadores chegando a falar de uma nova “acumulação primitiva” no campo chinês). As contratendências a essa mercantilização e especulação acelerada da terra se fortaleceram com o caso Evergrande, quando o partido passou a reforçar a proclama de Xi Jinping “casa é para morar, não para especular”. Para quem defende que a China ainda é socialista ou já restaurou o capitalismo, essa foi uma questão central de debate nos últimos anos. Nas tribunas, foi totalmente ignorada…
É também curioso como vários camaradas afirmam que a China nunca foi socialista, outros afirmam que foi socialista, mas a contrarrevolução foi vitoriosa com a derrota da Revolução Cultural (voltaremos ao tema) ou que até a derrota da Revolução Cultural, existiam tendências socialistas ou de projeto comunista, também derrotadas. Mas ninguém debateu minimamente o sistema de planificação da China pré-Reforma e Abertura e as relações de produção e propriedade. No máximo foram feitos comentários rápidos e sem aprofundamento sobre o fim das comunas rurais ou menções sem maiores considerações sobre a proporção no PIB de empresas públicas e privadas.
Muitos são oposição ao “socialismo de mercado”. Outros, mesmo sem defender abertamente, alegam que ele não comprova a restauração capitalista, no máximo indica “retrocessos” ou “recuos”. Mas como era, camaradas, a economia chinesa antes do desenvolvimento do mercado? Aliás, o período de Reforma e Abertura tem fases diferenciadas, avanços e recuos das relações mercantis e dinâmica de valorização do valor, ou é tudo a “mesma coisa”? O período de Deng Xiaoping é igual ao de Jiang Zemin? Ou de Zemin igual ao de Xi Jinping? etc.
É inútil procurar nas tribunas uma investigação ainda que mínima sobre a planificação chinesa (e suas diversas fases e configurações), as relações de produção nas zonas conquistadas antes da Revolução, durante os diversos momentos da Era Mao e nas últimas décadas do processo de Reforma e Abertura.
Por fim, completando a nossa caracterização geral, é notável a ausência de uma investigação sobre a luta de classes no geral e a classe trabalhadora em particular e as relações de poder político no país. Ninguém se propôs a debater como a classe trabalhadora chinesa se organiza, o papel dos sindicatos, movimentos sociais, outras organizações políticas, relação com os intelectuais, formas de luta e organização camponesa, as formas de apreensão do maoísmo entre a classe nos dias de hoje etc. É curioso como até lugares comuns, presentes em vários debates sobre a China, como a explosão de greves no final de 1990 e primeira década dos anos 2000, sequer foram lembrados.
Vários camaradas, em tom condescendente e quase messiânico, falaram da importância de “desmascarar” o falso socialismo chinês para ajudar a classe trabalhadora do país a conquistar o poder. A impressão que fica é que temos um país sem luta de classes, onde os assalariados não lutam, não fazem história, não tem ação. É chamativo como dados mais que conhecidos, como os gigantescos ganhos salariais (acima da inflação e superiores ao crescimento da produtividade do trabalho) da classe trabalhadora chinesa nos últimos 20 anos, são ignorados – os defensores da tese da China socialista poderiam trazer esse debate para robustecer seu argumento, e, em paralelo, o grupo que advoga a existência do “imperialismo chinês” poderia fazer um debate sobre aristocracia operária e a relação da inserção internacional da China com os ganhos materiais internos.
Em termos de classe, um dos aspectos mais citados foi a existência de bilionários e sua participação no partido. De pronto, afirmo que entendo a forte presença dessa temática, dado que deve sim causar estranheza e indignação moral a existência de bilionários em uma experiência que se reivindica socialista. O problema é ficar só na indignação moral e não caminhar para um debate teórico sério.
Domenico Losurdo no livro Fuga da História? A Revolução Russa e Chinesa vistas de hoje argumenta que desde a Era Mao, o PCCh trabalha com a ideia de permitir propriedade privada dos meios de produção e expropriar tal burguesia de todo poder político e ideológico, sem permitir a ela qualquer comando estatal. O argumento central de Losurdo – que nunca me convenceu – é que o processo de Reforma e Abertura segue o mesmo padrão, com a nova classe de bilionários não dispondo de capacidade para controlar o poder do estado.
A burguesia chinesa controla o poder político? É parte do bloco no poder? Seu poder vem avançando ou retrocedendo? Ela dispõe de aparelhos privados de hegemonia para pautar os rumos da sociedade chinesa? Qual o nível de controle sobre o PCCh? Questões como essa não foram colocadas. Novamente, é notável como temas chamativos da China contemporânea, como a Campanha Anticorrupção, iniciada após o 18° Congresso do PCCh, são deixados de lado. Temos farta bibliografia mostrando como essa campanha é uma das formas do PCCh controlar e atacar alguns setores da burguesia chinesa e purgar seus canais institucionais – oficiais e não oficiais – de influência no partido e no aparato de estado.
As prisões, condenações, expropriações e fuzilamento de bilionários não são raros na China. A existência de bilionários em uma suposta experiência socialista deve causar estranheza e indignação. Mas para quem defende que o país já restaurou o capitalismo, também deveria causar estranheza os vários casos de prisão, fuzilamento e enquadramento de bilionários. Tomando como exemplo os Estados Unidos, com a crise de 2008, e o Brasil, com a fraude das Lojas Americanas, sabemos que não é tendência do capitalismo prender, expropriar e matar bilionários.
Em alguns casos, o “debate” acaba caindo em um primarismo ingênuo. Uma das tribunas cita com indignação o fato de que um bilionário teria sido convidado para participar do PCCh e recusou. Se esse camarada fosse debater com Elias Jabbour, por exemplo, ao menos no plano da retórica, seria engolido. Elias sairia citando os vários e vários casos de bilionários pressionados a se filiar ao PCCh para, em seguida, sofrer mais fiscalização e controle de seus negócios e terminar em um banco dos réus. Qualquer um pode abrir o Google, pesquisar em inglês e achar vários casos como esse. Às vezes a certeza é tão forte que a qualidade do argumento vira questão secundária.
Para concluir este ponto, vários e vários camaradas destacaram como central no debate sobre o que é socialismo o caráter de classe do Estado. Mas ninguém fez esse debate sobre a China. O único que tentou foi L. Queen no escrito “A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira”. O camarada em questão, no seu escrito, criou um subtópico chamado “Das estruturas de poder na China contemporânea” e promete que (leiam com atenção!): “trazer mais algumas evidências factuais, históricas e fundamentadas em dados concretos, sobre o desenvolvimento histórico do capitalismo chinês, sua relação com o Partido Comunista e as estruturas de poder da China contemporânea” (grifos meus).
Essa foi a promessa. Qual foi a entrega? O camarada cita um estudo de uma organização chamada Coletivo Chuang. Os trechos citados não tratam das “estruturas de poder da China contemporânea”; são uma descrição com pretensão sociológica das relações de classe nas bases e instâncias de direção do partido e dos episódios da década de 1950 até a derrota da Revolução Cultural. Chegando na derrota da Revolução Cultural, o camarada L. Queen diz “o resto é história” e conclui o raciocínio assim: “a Revolução Cultural falhou, o PCCh e o grupo centrista ligado a Mao capitularam e, após sua morte, foram destruídos pela ala direita. Após isso, Deng Xiaoping é reabilitado e começa o processo de abertura e reforma, pedra fundante do “socialismo” com características chinesas”.
Espero que o camarada em questão tenha praticado apenas um golpe de retórica e saiba que isso não é nenhum estudo ou debate sobre as estruturas de poder da China contemporânea e que até o uso da palavra contemporânea ficou incrivelmente tosco – é uma análise da contemporaneidade que não tem preocupação de apreender as últimas cinco décadas, afinal, “o resto é história”.
Quais são as características gerais dessas 20 tribunas? Com exceção do texto do camarada Guilherme Sales, a ausência total do que é básico para um debate sério. O que sobra de ironias, deboche e agressividade, falta em estudo, pesquisa, compreensão histórica, análise das relações de produção, dinâmicas de classe, estruturas de poder e afins.
Gostaria de propor um exercício. Leiam esses textos sobre a China. Em seguida, imaginem que fossem textos buscando caracterizar a formação social brasileira. Vocês achariam normal fazer um debate sobre o nosso país com esse nível de superficialidade, frases feitas e ausência de pesquisa? Aliás, de ambos os lados da disputa, quase todos saíram atacando-se como revisionistas e vulgarizadores do marxismo. O fato é que é próprio do marxismo vulgar achar que é possível caracterizar o modo de produção dominante de um país sem debater de forma minimamente séria sua infraestrutura econômica e sua superestrutura.
Uma periodização histórica estranha
Outro fato notável nas tribunas sobre a China é a escolha dos períodos históricos analisados. Novamente, a subjetividade dos participantes e seu universo cultural é que ditou a escolha, e não o dinamismo próprio da formação social chinesa. Já falamos amplamente como a história milenar da China não comparece nos textos em análise.
O século de humilhações, o período de domínio colonial, as guerras anticoloniais contra o Japão e a Guerra Civil Chinesa também não são colocados na mesa. A coisa ganha contornos mais ou menos bizarros em alguns momentos. Novamente citando o camarada L. Queen e seu texto, ele faz uma citação do livro de Xi Jinping e diz em seguida “nesta coletânea também é dita, em diversos momentos, a respeito do “sonho chinês”, um sonho de prosperidade comum para o “povo”, uma ideologia muito similar à ideologia sonho americano em muitos aspectos: trabalho duro recompensa, crescimento econômico, harmonia entre classes, patriotismo chauvinista, etc.”.
Camarada, o “sonho chinês” faz referência direta ao Século de Humilhações da China, a superação completa dos traumas e legados do colonialismo (como a fragmentação territorial da China) e a criação das condições para que a dominação colonial do país “nunca mais aconteça”. O camarada pegou uma palavra, juntou com outra parecida, ignorou todo contexto histórico de ambas e aproximou ambas.
É difícil, quiçá impossível, entender a formação do Partido Comunista Chinês, do maoismo e das particularidades da Revolução Chinesa sem um estudo sério do período colonial na China e as guerras sequenciais do século XX – alguns autores, inclusive, falam de um ciclo contínuo de Guerras desde 1911 até 1949, cobrindo quase metade do século XX.
Também é notável como o XX Congresso do PCUS, o cisma sino-soviético, o movimento terceiro-mundista, a descolonização afro-asiática, a grande fome, o Grande Salto Adiante e vários episódios fundamentais da história da República Popular da China são simplesmente ignorados ou citados de passagem. Só a título de comparação, é como debater a história do nosso país sem falar da Revolução de 1930 e a Era Vargas, as lutas de classe no período desenvolvimentista pós-Vargas até 1964, o golpe e a ditadura empresarial-militar, a redemocratização burguesa, as lutas da década de 1980 e consagração do neoliberalismo no Brasil etc.
Sobre a história da China no século XX, bem mais que a Revolução Chinesa, o tema mais abordado foi a Revolução Cultural. O sucesso absoluto de citações foi o texto de Francisco Martins Rodrigues, A Revolução Cultural e o fim do maoísmo. Aparentemente, os camaradas acham normal compreender a revolução cultural apenas por um escrito, desconsiderando, por exemplo, todo o debate chinês sobre o tema e também não veem problemas em tomar como única fonte – ou fonte principal – um escrito de 1988, sem questionar se nos últimos 35 anos temos novas pesquisas, debates e análises sobre a Revolução Cultural e se a reflexão de Francisco Martins segue atual.
Depois da Revolução Cultural, na nossa tribuna de debates, a China é um grande vácuo histórico, um lusco-fusco, onde, aparentemente, não existe mais luta de classes e tudo é um avanço linear de relações de mercado. É curiosíssimo como um tema central na história recente da China – e muito importante para compreender suas relações de produção –, como as Empresas de Aldeias e de Municípios (EAMs) são ignoradas. Pensando o processo chinês à moda brasileira, tendo como espelho as privatizações da Era FHC e outros governos, nenhum dos camaradas pensou em analisar as particularidades desse “mercado” criado na China. As EAMs, durante quase 30 anos, foram um dos setores mais dinâmicos da economia chinesa. São de propriedade coletiva, mas com autonomia fiscal na busca de insumos para produção e comercialização de produtos, controle dos governos locais na contratação e demissão de administradores e com regulamentos sobre aplicação de lucro, obrigando que metade seja reinvestido na própria empresa para modernização, assistência social dos trabalhadores, previdência, prêmios de produtividade etc. Em 2003, as EAMs empregavam 176 milhões de trabalhadores (quase a população do Brasil) e entre 1980 e 2004, elas criaram quatro vezes mais empregos do que se perdeu em empregos públicos e urbanos coletivos com os processos de privatização (o já citado livro de Giovanni Arrighi faz um ótimo debate sobre o tema).
Mas nas nossas tribunas, depois da Revolução Cultural, “o resto é história”. Nada mais importa. Quando muito, tempos um economicismo tosco citando de forma descuidada e sem trato teórico a proporção de empresas públicas e privadas no PIB ou então, no caso dos camaradas que defendem que a China ainda é socialista, a tentativa de compatibilizar no plano filosófico e teórico socialismo e mercado, sem precisar nunca, de que tipo de relações mercantis estamos falando.
É curioso como aqui e ali, é abordado o fato de o PC Chinês se reivindicar marxista, falar do marxismo-leninismo, citar constantemente Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao etc. Mas ninguém fez uma abordagem histórica das mudanças no discurso público do PCCh nas últimas décadas. Novamente, temos ampla bibliografia para mostrar que no período de liderança de Jiang Zemin, o marxismo foi bastante deixado de lado e a retórica patriótica e nacionalista assumiu a tônica quase absoluta. Mas, nos últimos anos, a começar no final do período de liderança de Hu Jintao e se intensificando de forma quantitativa e qualitativa na Era Xi Jinping, o marxismo voltou a ser abertamente valorizado, defendido, reivindicado e apoiado, pelo menos no plano discursivo – o que no caso da China não é algo irrelevante.
O que aconteceu na China entre a década de 1990 e 2012 para mudar no plano discursivo, cultural e ideológico, o papel do marxismo na comunicação pública do PCCh? Temos algo para explicar? O que isso diz sobre o debate da restauração capitalista na China? O PCCh é atravessado pela luta da classe trabalhadora? É inútil procurar tal debate nas nossas tribunas.
Como já falamos, sobraram acusações de revisionismo e vulgarização do marxismo de ambos os lados. Mas o marxismo é também chamado de materialismo histórico. E temos quase tudo nessas tribunas, menos a história da China.
Formalismo e o festival de citações
Em um conjunto de textos sobre a China, os autores mais citados são Marx e Lênin. Citar os clássicos não é um problema. Para quem é marxista-leninista, as obras de Marx e Lênin são referências, balizas, contribuições fundantes a serem desenvolvidas, aprofundadas e questionadas de acordo com as dinâmicas de transformação da realidade. O problema é a postura religiosa com os escritos dos clássicos.
Dois exemplos básicos. Espero que todos compreendam que não tem nada de marxista ou de análise científica em abrir o livro O Estado e a Revolução de Lênin e em seguida afirmar que entende o Estado burguês dependente no Brasil. Depois de ler o Estado e a Revolução, você não entende o estado burguês hoje. Você tem um aporte clássico, em alto grau de abstração, sobre as determinações mais gerais da forma-estatal no capitalismo. Em seguida, para compreender o poder político na nossa formação social, é necessário pesquisa, estudo e formulação. Também espero que ninguém ache normal abrir os livros de Marx, ler suas análises sobre classes sociais e, em seguida, afirmar que está capacitado para compreender o proletariado brasileiro. Novamente: você está munido das reflexões clássicas de Marx e agora precisa fazer uma pesquisa sobre as determinações histórico-concretas da classe trabalhadora na formação social brasileira.
Espero, camaradas, que não se consolide em nossa organização a cultura formalista e semi religiosa de tratar textos clássicos como a verdade revelada para qualquer tempo-espaço. Espero que não seja normal para nós, como é em outras organizações, para qualquer fenômeno de extrema-direita, por exemplo, abrir um texto de Georgi Dimitrov e pronto, todas as respostas estão dadas.
O camarada Gabriel Xavier, na sua tribuna chamada A delegação do Distrito Federal: como transformar Marx em um liberal medíocre, está muito preocupado com um debate científico sobre a China e com os riscos do etapismo. Para sanar esses riscos, o camarada recomenda como literatura comum quatro livros: O Estado e a Revolução, Duas táticas da social-democracia e Imperialismo, etapa superior do capitalismo de Lênin e o livro I do Capital de Karl Marx. Nenhum dos livros indicados debate a China ou o etapismo do movimento comunista brasileiro e latino-americano.
Outro camarada, Felix Bouard, no seu escrito Fora revisionistas! sequer leram o texto de Lênin?, achou por bem colecionar um festival de citações de Lênin para entender a… China. O camarada interrompe o texto por questões pessoais e termina com a frase “mas vocês pegaram a ideia”. Não acho que seja minimamente sério um debate feito com uma coleção de citações desconexas e sem uma reflexão real.Pelo contrário: é justamente através desse procedimento que muitos justificam todo tipo de reformismo tosco e capitulação – com várias citações de Lênin.
Gostaria de apontar o problema desse tipo de procedimento com um exemplo, considerando que a análise de Marx da Comuna de Paris foi bastante citada. Marx, no seu estudo sobre a Comuna, cita o elemento do povo em armas e o fim dos exércitos tradicionais. Espero que todos os camaradas saibam que nenhuma revolução aplicou para a questão militar os ensinamentos do texto de Marx sobre a Comuna. Desde a Revolução Russa passando pela Chinesa, Coreana, Cubana, Vietnamita e todas que você imaginar, em nenhum dos casos tivemos o fim de um grupo especializado nos assuntos de defesa com dinâmica de organização burocrática própria e papel específico na divisão social do trabalho.
A Comuna de Paris, não custa lembrar, foi um experimento de poucas semanas em uma cidade de 2 milhões de habitantes (na época) na segunda metade do século XIX. No período da Comuna, não existia ainda aeronáutica, sistema de mísseis, bomba atômica, drones, bombas inteligentes, armas químicas e biológicas e afins. O grande diferencial tecnológico naquele confronto militar era a metralhadora. A ideia de organizar o povo em armas, acabando com toda cadeia de especialização em defesa com suas funções burocráticas específicas, faz algum sentido para os padrões militares de 1870. Deixou de ter funcionalidade faz mais de 100 anos.
O que todos os líderes revolucionários do século XX compreenderam, ainda que com formas e com caminhos diferentes, é que é fundamental no processo revolucionário acabar com a monopolização da força militar por um aparato do Estado que se configura como grupo social específico, mais ou menos insulado de outros grupos sociais a partir de sua identidade e dinâmica corporativa. Socializar ao máximo o treinamento militar, tornar a política de defesa nacional um assunto político e de massas (e não privativo de forças militares), garantir acesso à armamento para população civil, fundamentar uma estratégia de defesa baseada em mobilização total do povo e subordinar à burocracia militar ao mais firme controle político e ideológico do partido revolucionário – esse é o caminho.
Parece pouco frente ao descrito por Marx? Pode ser. Mas eu gostaria de uma boa explicação sobre como pode ser gerido um sistema de dissuasão de mísseis balísticos ou uma eficiente marinha de guerra sem segredo de Estado e elementos de uma burocracia militar profissional com alto treinamento para operar os aspectos técnico-militares da política de defesa e da guerra. Alguns camaradas gostam muito de cantar músicas sobre as bombas atômicas da Coreia Popular. Espero que saibam que não existe capacidade de dissuasão com arsenal atômico sem segredo de estado, cadeia de comando, profissionalização de uma burocracia militar e, portanto, separação relativa entre “civis” e “militares”.
Ainda sobre a Comuna de Paris, um dos aspectos mais citados é a ideia de funcionários públicos elegíveis e removíveis a qualquer momento. O debate de Marx caminha no sentido de oferecer uma resposta revolucionária ao burocratismo típico do Estado burguês, quando um corpo de pessoas, também se configurando como grupo social específico, assumem funções de gestão e mando do aparato estatal, acima e contraposto ao conjunto da sociedade. Marx, bem antes de Max Weber, já compreendia muito bem a tendência à autonomização de toda burocracia.
O problema é que a medida apresentada por Marx estava sobredeterminada por uma mobilização total de guerra. Numa guerra, todas as atividades não indispensáveis para defesa são suspensas, com o cotidiano cancelado, e temos uma hiper mobilidade de força de trabalho, alocada de acordo com as necessidades de defesa numa situação sociológica de mobilização total – e isso em uma cidade de apenas 2 milhões de habitantes por algumas semanas.
Fora de uma situação de guerra e mobilização total, a exceção de um desemprego dilatado e permanente, não existe a possibilidade de uma hiper mobilidade de força de trabalho, condição necessária para remoção a qualquer momento de funcionários públicos de suas funções e substituição por outros – e não pense em funcionários públicos como apenas de órgãos legislativos, mas de tudo: hospitais, escolas, museus, estações de produção e distribuição de energia elétrica, etc.
Não se trata aqui, importante frisar, de um argumento clássico da social-democracia de que a “complexidade” da sociedade impede de levar a sério o combate ao burocratismo e autonomização de aparatos burocráticos. A questão é que esse combate não se realiza buscando repetir ipsis litteris as medidas da Comuna descritas por Marx. Os bolcheviques descobriram isso a duras penas, tendo que superar a ilusão de que a disciplina, a mobilização total e o ascetismo de uma guerra não é o socialismo realizado – é curioso como esses aspectos, fundamentais no debate sobre o que foi a NEP, raramente são considerados.
Lênin, depois de 1921, Mao Zedong na China ou Fidel Castro em Cuba, tem ótimas reflexões a partir de experiências práticas sobre como combater e controlar o burocratismo. Alguém pode achar normal citar o texto de Marx e em seguida, sem maiores considerações, fazer uma confrontação formal com a “realidade”. É sim um procedimento normal, mas nas religiões abraâmicas como o cristianismo e o islamismo.
Nesse festival de citações formais, quase ninguém se propôs a responder de maneira ortodoxa (não é isso que muitos buscam, uma ortodoxia do marxismo-leninismo?) os problemas concretos da história chinesa. Por exemplo, a produtividade agrícola, a fome e o risco de hiper inflação no preço de alimentos derivado de embargo econômico é um problema histórico da República Popular da China. O projeto das Quatro Modernizações, a partir da liderança de Deng, oferece um tipo de resposta à questão da segurança e soberania alimentar (um problema seríssimo também em Cuba e na Coreia Popular, por exemplo). A resposta foi revisionista, reformista, capitulacionista, restauracionista? Perfeito. Qual seria a resposta marxista-leninista adequada nas possibilidades históricas do momento? Perguntas concretas como essa nunca são feitas. O camarada Yuri Miyamoto, no seu escrito China: um socialismo imperialista?, percebe a ausência de uma reflexão que caminha para questões histórico-objetivas da transição socialista e, pensando em uma hipotética Revolução Brasileira, lança esse pacote de questionamentos:
Questiono também o que esperam da Revolução Brasileira e como sobreviveremos se ela acontecer em um mundo onde ainda teremos a maioria dos países em regimes econômicos capitalistas: se tivermos a opção, manteremos nossa posição atual na cadeia imperialista? Iremos nos impor um “autoembargo” e pularemos para fora dessa cadeia, cortando relações com todos os países imperialistas? Não tentaremos exportar tecnologia a outros países para fortalecer nossa indústria e economia nacional ou propõem que entreguemos tudo de graça para esses países que já sofrem com suas condições de dependência presos na cadeia imperialista atual? E se não pudermos escolher, sofrermos boicotes, embargos e sanções das nações imperialistas, não faremos nenhum esforço para nos reinserir no comércio e na cadeia imperialista global?
Fazer essas perguntas não significa, ao menos para mim, aprovar tudo que a China praticou. Significa só não se refugiar no formalismo da citação para evitar problemas concretos. É preocupante, por exemplo, uma reflexão do camarada Doni no seu texto Existe socialismo no século XXI? onde diz que “a essa altura do campeonato já podemos dizer que é e foi impossível forjar o socialismo em um só país, toda revolução proletária, se constituída em verdadeira ditadura do proletariado, será cercada permanentemente por potências imperialistas que tentarão a todo custo impedir seu desenvolvimento e transformação em revolução proletária internacional”.
Bem, nessa lógica, não faz sentido lutar pela Revolução Brasileira. Nenhuma revolução desencadeou uma onda global e irresistível de expansão do socialismo. Todas, com seus impactos globais e regionais, alteraram a correlação de forças na luta de classes, mas o caráter decisivo da vitória da revolução socialista na Argentina, Chile, Venezuela ou Equador, não está no Brasil, mas na classe trabalhadora desses países. Novamente é útil citar o exemplo dos bolcheviques que pagaram caro pela ilusão de achar que seriam recebidos na Polônia (1919-21) como libertadores e exportadores da revolução.
É curioso. O “campo socialista” chegou a abarcar 1/4 da humanidade, mas ainda não é suficiente para dimensão internacional de construção do socialismo? Os problemas concretos da construção do socialismo cubano, por exemplo, só existem por falta de revolução na América Latina ou nos Estados Unidos? Estamos aqui no reino da falsa dicotomia trotskista de “revolução permanente ou socialismo num só país”.
Tenho baixíssimas simpatias pelo debate do PCCh sobre a centralidade do desenvolvimento das forças produtivas ou a defesa que Domenico Losurdo faz dessa abordagem. Ao mesmo tempo, não deixo de considerar que é uma questão concreta e objetiva e gostaria muito de debates sérios sobre como é possível um rápido desenvolvimento das forças produtivas e alcançar as vanguardas tecnológicas mundiais dispensando totalmente ou ao máximo possível as relações mercantis com o mundo capitalista – Cuba, senhoras e senhores, até agora não descobriu como fazer isso. Já que é tão fácil, poderíamos ensinar para os camaradas cubanos.
O camarada Doni, citando Francisco Martins Rodrigues, diz ainda que a Revolução Russa morreu no berço dado que, dentre outras coisas, “o pequeno proletariado russo (pequeno em face da enorme massa camponesa) foi dizimado pelas invasões imperialistas, pela guerra civil e por uma catástrofe econômica”. Bem, se conseguirmos iniciar a Revolução Brasileira, basta o imperialismo estadunidense bombardear massivamente toda faixa litorânea do Brasil, onde se concentra a nossa massa proletária, reduzir a ruínas boa parte do Nordeste, Sudeste, Sul e está feito. A revolução, não importa o desfecho final da ofensiva militar, foi derrotada.
Não sei se o camarada Doni está consciente de todas as determinações de suas afirmativas. Sendo coerente, ele deveria recomendar que toda classe trabalhadora da Europa desista da luta revolucionária, afinal, o continente é um protetorado militar dos Estados Unidos e desde uma perspectiva técnico-militar, mandar o território europeu de volta para idade da pedra, exterminando o grosso da classe trabalhadora, pode ser feito em poucos minutos.
Estamos mesmo debatendo a revolução e a construção do socialismo ou fazendo um mero abstracionismo pseudo-teórico com respostas fáceis para questões difíceis?
Uma teoria inédita da contrarrevolução.
Como já ficou claro, considero a tribuna do camarada Guilherme Sales a melhor lançada sobre a China. Mas na tribuna do camarada, sem maiores desenvolvimentos, ele afirma que "tendo isso em vista, pretendo fazer uma breve contribuição (quase no formato de notas, visando o enriquecimento do debate), desde já afirmando: A China é um país que ocupa uma posição imperialista na cadeia econômica global e completou sua restauração ao capitalismo". Uma pena, camarada Sales, que você não tenha desenvolvido o tema.
Para alguns camaradas, a China nunca foi socialista ou uma experiência de ditadura do proletariado. Para outros, a contrarrevolução vence com a derrota da Revolução Cultural. Espero que os camaradas tenham ciência de que precisam desenvolver uma nova teoria da contrarrevolução para defender que a China completou sua restauração capitalista. Explico.
O Termidor francês marca a compreensão clássica do que é uma contrarrevolução para o período revolucionário burguês. Em seguida, experiências derrotadas, como a Comuna de Paris e a Revolução Alemã, adensam a compreensão marxista do que é a contrarrevolução. Em todos esses processos, a marca característica é a facilidade de compreender claramente o ponto de virada, de ruptura, quando o processo revolucionário é derrotado e revertido de diversas formas e ritmos – assim como a Revolução não é um processo contínuo e evolutivo de reformas ou conquistas, tem um ponto de ruptura, uma transformação qualitativa radical e visível.
O camarada Yuri Miyamoto, no seu texto já citado, faz uma reflexão básica: “No entanto, não consigo encontrar uma data para o momento exato em que essas políticas concluíram a transição do país de volta ao capitalismo.” Ainda que a pergunta tenha sido feita de maneira meio mecanicista, buscando a data no calendário, ela é muito pertinente. Onde podemos localizar o ponto de ruptura, a contrarrevolução vitoriosa, na história chinesa?
Buscando responder a pergunta de Yuri, o camarada L. Queen diz que “Mais do que “abandonar” o projeto comunista, acho importante dizer que a linha de esquerda, verdadeiramente comunista, foi derrotada no processo da Revolução Cultural e a restauração da ditadura da burguesia foi realizada plenamente”. Na compreensão do camarada Queen, a ditadura burguesa foi plenamente restaurada na década de 1970, mas a terra não foi desnacionalizada e amplamente mercantilizada por 30 anos; as empresas públicas urbanas passaram 10 anos para sofrer com um processo de privatização em massa, os conselhos de fábrica esperavam 15 anos para perder importância central nas empresas urbanas, o modelo de empresa pública/de bem-estar social (onde cada empresa cuidava de previdência, assistência médica, serviços sociais e afins de cada trabalhador) demorou 10 anos para ser demolido, os comitês de bairro passaram 15 anos esperando para perder importância, etc.
Não é impossível argumentar que a contrarrevolução na China foi de tipo único e que se processou primeiro no âmbito do Partido e do Estado, para só depois realizar as contrarreformas socioeconômicas. Sem problemas. Nesse caso, é necessário formular tal novo conceito de restauração capitalista – uma restauração essencialmente processual, sem pontos de ruptura, com avanços e recuos. E falo recuos porque, na China atual, existe um florescimento dos comitês de fábrica, comitês de bairro, controle de células do partido sobre unidades de produção, redução de desigualdades, avanço de direitos sociais universais, melhora acelerada das condições de trabalho etc.
Outro camarada, Vitor Gimenez, tentou teorizar sobre a contrarrevolução chinesa. No seu texto “China, imperialismo e dialética”, ele afirma que "O que já está na hora de denominar como capitalismo com características chinesas, é um processo singular de consolidação do capitalismo que vai trazer consigo todas as contradições de características da Revolução Chinesa. Ou seja: temos um capitalismo monopolista estruturado, mas que não pode simplesmente se desfazer de diversas questões ideológicas postas na revolução, pelo menos não abruptamente." (grifos nossos).
Para o camarada Vitor, temos uma contrarrevolução que não é a negação da revolução, mas “vai trazer consigo todas as contradições de características” da… Revolução. Uma contrarrevolução determinada pela revolução? Para o camarada, a base material da China é um capitalismo monopolista estruturado – por consequência, temos um Estado burguês imperialista –, mas diversas questões ideológicas “postas na revolução” seguem tendo força e a classe dominante chinesa (burguesia?) não consegue superar essas questões “abruptamente”.
É um caso fantástico de uma força ideológica da revolução que sobrevive descolada de qualquer base material e dinâmica superestrutural e uma classe dominante que, mesmo com décadas de contrarrevolução, não conseguiu resolver o problema. O camarada Vítor, ao final do seu texto, diz que “precisamos ver o movimento histórico, as contradições nas diferentes totalidades”. Você, camarada, infelizmente, não fez isso.
Gostaria de oferecer uma dica sincera e humilde aos camaradas que defendem que a restauração capitalista na China já foi finalizada. É necessário, camaradas, fazer dois movimentos. Explicar porque a China não segue a tendência global de privatizações, políticas de austeridade, destruição de direitos sociais, rebaixamento salarial, piora das condições de trabalho, aumento das desigualdades, financeirização acelerada da economia, degradação ambiental sem limites, crescimento da fome, pobreza e miséria etc. É necessário, em resumo, explicar essa diferença da China frente a todas as outras economias capitalistas (citando um artigo da professora Isabela Nogueira, “O Estado na China”, presidente no livro “A volta do Estado planejador”, Contracorrente, 2021, p. 128)
“Nenhuma outra grande economia do mundo exerce controle de capitais tão intensos como a China faz. Nenhum outro grande país além da China é sede de tantas empresas estatais. Nenhuma outra economia mantém o sistema financeiro majoritariamente estatal e com enorme centralidade para seus três bancos de desenvolvimento. Nenhum outro grande país dá tanta importância aos planos quinquenais e a diversos outros planos setoriais de desenvolvimento”.
Mas alguém pode argumentar: “Jones, nada disso é, em si, socialismo”. Perfeito. Duríssimo controle de capitais, fortalecimento da economia pública, estatização do sistema financeiro e papel central do planejamento não torna nenhum país socialista. Mas, ao mesmo tempo, estão na contramão de tudo que é tendência na economia capitalista global, tanto no centro como na periferia do sistema. Por que a China mantém essas tendências únicas? Se alguém pensar em argumentar que é porque o capitalismo chinês foi desenvolvido a partir de uma revolução derrotada, o problema não foi resolvido. Até que ponto essa influência da revolução derrotada se mantém? A partir de quais bases? Ele pode se expandir? Se, por exemplo, o planejamento seguir se fortalecendo na China (como é a tendência atual), existe um ponto de incompatibilidade entre valorização do valor e níveis de planejamento?
Sem responder isso, camaradas, a tese de vocês perde eficácia argumentativa. Antes de destacar o próximo ponto, uma dica de amigo. Não pensem em igualar a economia da China com a Rússia ou de países de capitalismo nórdico, como Noruega, fazendo comparações entre a proporção pública e privada do PIB. Isso é só um economicismo tosco e um atestado de ignorância sobre a economia da Rússia, da China e dos países nórdicos – e me dispenso de explicar isso.
Por fim, camaradas, não é possível ignorar a dinâmica atual da China no debate sobre restauração capitalista. No site da Triconinental, Outras Palavras, Revista Opera, Opera Mundi e Le Monde Diplomatique Brasil, para citar apenas alguns exemplos, vocês vão achar várias matérias debatendo a retomada da linguagem clássica da Era Maoista, o fortalecimento de comitês de fábrica e bairro, a redução do espaço para o liberalismo econômico e político na sociedade chinesa, mudanças na formação política e nos critérios ideológicos para ser membro e ascender na hierarquia do PCCh, etc.
É pão comido, matéria amplamente documentada, que no PCCh sob o comando de Xi Jinping existem mudanças ideológicas, organizativas e políticas em curso. Essas mudanças são uma mera ideologia para enganar as massas? Estratégia para aumentar a coesão nacional no contexto de acirramento do enfrentamento com os Estados Unidos? Tática para o PCCh manter e ampliar a influência sobre setores da juventude depois das ondas de protestos e greves do começo dos anos 2000? Enfim, é necessário, camaradas, explicar.
Há 15 anos atrás, poucos militantes e organizações sequer consideravam uma questão debater se a China é ainda ou não uma experiência socialista. Hoje, porém, o tema não é mais o consenso de outrora. Podemos decidir se isso é culpa de alguém – de Elias Jabbour, João Carvalho, Domenico Losurdo, minha, etc. – ou fazer uma reflexão real sobre como as transformações na própria China suscitaram de novo esse debate.
Mais humildade, seriedade e uma proposta
Considero uma pretensão megalomaníaca e descolada da realidade fechar uma posição qualificada sobre a China nesse congresso extraordinário. Sei que o debate não se resume ao que foi escrito nas tribunas, mas claramente não temos acúmulo suficiente para firmar uma posição qualificada. Nesse sentido, recomendo aos camaradas a mesma atitude que a minha. Ao contrário do que alguns disseram nas tribunas, não defendo que a China siga sendo uma experiência socialista. Tenho mais perguntas que respostas. Até hoje, por exemplo, continuo não estando convencido de que uma contrarrevolução vitoriosa aconteceu, ao mesmo tempo em que continuo não estando convencido de que a classe trabalhadora exerce o poder político na China.
Parei de falar do tema porque parei de estudar de forma sistemática a China. Outras questões passaram a centralizar minha atenção, como a pesquisa sobre o Brasil, e com menos estudo, menos opinião e posição pública. Ao mesmo tempo, é impossível não falar da China. Maior “parceiro” comercial do Brasil, presença constante nas privatizações brasileiras e na nossa política externa.
Minha proposta, então, é que busquemos delimitar no Congresso os principais aspectos da presença chinesa no Brasil. Relações comerciais, financeiras, diplomáticas, políticas e ideológicas e a dinâmica centro-periferia que caracteriza a relação China e Brasil. Buscamos ter um bom panorama, por exemplo, da demanda chinesa no setor agroexportador do nosso capitalismo dependente – aspecto citado em várias tribunas, mas sempre de forma rápida e pouco aprofundada.
Consolidado esse panorama básico, tiramos as mediações táticas de relação com o PCCh e como vamos combater, por exemplo, a presença de capitais chineses nos processos de privatização em curso no Brasil – com destaque, nesse momento, para o setor de produção e distribuição de energia. A partir desse trabalho, proponho que o congresso delibere a criação de uma comissão responsável por desenvolver um estudo sistemático sobre a formação social chinesa, a história da Revolução, características fundamentais da China atual (estrutura de classe, relações de produção e propriedade, dinâmica entre planejamento e mercado, forma-estatal etc.) e papel da China no mundo, com destaque para sua relação com América Latina e a confrontação China e Estados Unidos.
Finalizado os trabalhos desta comissão, o estudo deve descer para todos os militantes para uma ampla rodada de acúmulos, debates e contribuições nos nossos meios internos de polêmica e, depois disso, tomamos uma posição coletiva e cientificamente construída sobre o que é a China.
Essa comissão será de militantes profissionalizados? Vamos delegar para militantes que já fazem esse estudo e as condições de realização fica a critério individual de cada um? Quanto tempo é necessário? O custo de livros será bancado pela organização? Não arrisco a respostas sozinho para questões assim. Mas se a proposta for aceita, para sair do papel, essas questões operativas precisam ser equalizadas.
Com uma metodologia como essa, podemos avançar no debate sério sobre a China. Por fim, tenho amplas dificuldades de entender como a China pode ser a grande questão do nosso congresso. Me recuso a acreditar que China, KKE, PMC, Brics, Rússia e coisas do tipo vão ser os grandes polarizadores de um congresso que pretende ser o pontapé para uma nova tentativa de reconstrução do movimento comunista no Brasil, uma força política irrelevante e descolada do dia a dia e lutas da classe trabalhadora há 40 anos!
Falar que a China – ou qualquer coisa questão internacional, como a relação com o KKE – será a grande questão do nosso Congresso significa considerar que temos pronto ou de ótimo estado a estratégia da revolução brasileira, as mediações táticas, as formas organizativas e compreensão da formação social brasileira, bastando, contudo, aplicar de forma correta um acúmulo já suficiente para forjar um Partido Revolucionário com capacidade de disputar a direção da classe trabalhadora brasileira.
Fico preocupado, camaradas, que alguém entre nós tenha tal percepção. Isso seria um gravíssimo deslocamento da realidade. Se não basta só compreender a realidade e é preciso transformá-la, como disse Marx, sem compreensão não transformamos absolutamente nada. Abraços.