'O movimento estudantil e as “comunitárias”' (Francisco Diniz)

No que diz respeito à administração das universidades “comunitárias”, estas foram em sua maioria assumidas por grupos ligados historicamente às oligarquias locais que apoiaram o regime militar.

'O movimento estudantil e as “comunitárias”' (Francisco Diniz)
"O próprio conceito de “comunitária” é propositadamente ambíguo. Na realidade, a defesa da identidade “comunitária” não passa de um esforço coordenado dos intelectuais ligados à burguesia para legitimar a expansão do ensino privado e a manutenção das oligarquias locais, a partir da demarcação de um diferencial para com os concorrentes empresariais."

Por Francisco Diniz para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Escrevo essa tribuna com o objetivo ser um convite à uma reflexão mais profunda sobre o caráter das universidades comunitárias, mais especificamente no contexto de Santa Catarina, onde milito. Meu objetivo não é esgotar este tema aqui, pois minhas reflexões são fundamentadas, majoritariamente, nas minhas observações durante minha atuação na construção do movimento estudantil na região da Foz do Itajaí, combinadas à minha própria pesquisa sobre as universidades comunitárias. Encorajo fortemente outros camaradas a fazerem suas contribuições sobre o tema, possivelmente mais qualificadas que a minha.

Durante o pouco tempo que tenho de militância na UJC e atuação no movimento estudantil, me deparei com uma grande lacuna nas formulações da Juventude sobre o caráter das universidades comunitárias, dificultando por vezes a nossa inserção nesses espaços. O que temos atualmente é um debate sobre o movimento estudantil catarinense centrado nas universidades públicas, em especial a UFSC, e as poucas formulações sobre as “comunitárias”, se existentes, dificilmente chegam até a base.

Isso demonstra um enorme equívoco por parte da nossa atuação no movimento estudantil, já que, com exceção da região da Grande Florianópolis, a quantidade de estudantes matriculados em instituições privadas de ensino superior supera a da rede pública em todo o estado de Santa Catarina, equivalendo a aproximadamente 80% do total de matrículas. Hoje, as universidades comunitárias correspondem a cerca de 150 mil alunos matriculados em um total de 14 instituições associadas à ACAFE (Associação Catarinense das Fundações Educacionais). Esses dados ilustram a impossibilidade de tentar compreender o cenário do ensino superior catarinense sem uma caracterização do papel histórico das universidades comunitárias no processo de privatização e precarização do ensino superior em Santa Catarina.

O QUE SÃO AS UNIVERSIDADES COMUNITÁRIAS?

As chamadas universidades “comunitárias” são instituições de ensino superior geridas pela sociedade civil e sem fins lucrativos, categorizadas como instituições “públicas não-estatais”. O status de “comunitária” exige que a instituição, entre outros critérios, deve: estar constituída como associação ou fundação com personalidade jurídica de direito privado, mesmo se criada pelo poder público; ter seu património vinculado à entidade da sociedade civil ou ao setor público; não buscar lucro; não distribuir parte de seu património ou rendimentos; direcionar seus recursos institucionais dentro do país.

Em Santa Catarina, essas instituições surgiram, em sua maioria, durante a década de 70, no interior do estado. Nesse período, a única instituição de ensino superior efetiva era a Universidade Federal de Santa Catarina, a UFSC, e a oportunidade de cursar uma graduação estava condicionada a viabilidade de se deslocar para a capital. Nos anos seguintes ao golpe empresarial-militar de 1964, diante da pressão de líderes políticos, empresariais, sociais, e religiosos pela introdução de cursos de ensino superior nas principais cidades do interior, o governo estadual optou por apoiar a expansão do ensino superior através da implementação de fundações educacionais de natureza privada. Assim, estabeleceram-se em todo estado diferentes fundações municipais de ensino superior, que mais tarde viriam  a formar, juntamente da UDESC, a ACAFE. Visto que, em sua maioria, foram fundadas após o golpe de 1964, torna-se evidente o uso dessas instituições para implementar uma política educacional alinhada com o “desenvolvimento com segurança” preconizado tanto pelos militares quanto pelas oligarquias locais.

No inicio, essas instituições de ensino superior fundacionais foram moldadas conforme as diretrizes dos acordos MEC/USAID (United States Agency for International Development), nos quais os Estados Unidos buscavam promover a implantação do modelo norte americano nas universidades brasileiras e ampliação da participação do setor privado no ensino. Essas fundações, então, foram concebidas com base no modelo dos colleges estadunidenses, estruturados pela comunidade e financiados tanto por apoio estatal quanto por contribuições de empresários e da sociedade civil por meio de fundações. Essa abordagem tinha como objetivo oferecer um ensino direcionado as camadas menos favorecidas, porém de qualidade inferior e focado em suprir demandas imediatas de capacitação para o mercado de trabalho. Em Santa Catarina, foram estabelecidas como  “fundações de direito público” e seu financiamento inicial era proveniente de recursos públicos municipais, estaduais e federais, mas, em um processo gradual de privatização do setor público, essas entidades foram transformadas em um tipo de aberração jurídica, conhecidas como “fundações públicas de direito privado”.

É em 1974, ainda durante o período da ditadura empresarial-militar, em meio ao Primeiro Plano Estadual de Educação, que as fundações mantenedoras de instituições de ensino superior de Santa Catarina, unidas em torno das oligarquias estaduais e de um perfil ideológico em comum,  fundam a Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE). Organização que até hoje se constitui como “porta voz” das universidades ditas “comunitárias”. É, portanto, com a fundação da ACAFE, que o Estado passa a assumir um papel apenas acessório no cenário do ensino superior em Santa Catarina, delegando à esfera privada o planejamento e controle da expansão do ensino superior em seu processo de interiorização. Política que permanece praticamente a mesma até hoje.

A expansão das universidades privadas no estado, a partir da década de 90, viria a criar um crise generalizada no sistema ACAFE, ocasionando na formulação de um Projeto de Lei, denominado como Projeto de Lei das ICES (PL 7639/2010), apresentado à Câmara dos Deputados pela Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS). Esse projeto contou com o respaldo de todas forças oligárquicas tradicionais de Santa Catarina, além do apoio de diversos partidos, liderados pelo PT. O Projeto de Lei foi aprovado no Congresso Nacional, com o objetivo de transformar essas universidades fundacionais em ”instituições públicas não estatais” conhecidas como “comunitárias”. Diferentemente da privatização tradicional, que envolve a venda de instituições de ensino superior para grupos privados, esta representa a permanência dos grupos oligárquicos no controle de instituições pertencentes ao setor público, administrando enormes recursos financeiros de maneira privada.

O próprio conceito de “comunitária” é propositadamente ambíguo. Na realidade, a defesa da identidade “comunitária” não passa de um esforço coordenado dos intelectuais ligados à burguesia para legitimar a expansão do ensino privado e  a manutenção das oligarquias locais, a partir da demarcação de um diferencial para com os concorrentes empresariais. Assim garantindo financiamento público sem ceder controle na administração dos recursos, mantendo o controle ideológico sobre os conteúdos de ensino, pesquisa e extensão. O resultado disso é o cerceamento do acesso ao ensino superior público e gratuito nas regiões do interior do estado em que essas universidades ditas “comunitárias” se colocam como única opção viável.

No que diz respeito à administração das universidades “comunitárias”, estas foram em sua maioria assumidas por grupos ligados historicamente às oligarquias locais que apoiaram o regime militar. Ao longo de décadas - com raras exceções - esses grupos têm negligenciado a participação da comunidade na seleção dos dirigentes e na gestão das universidades. Agarram-se com unhas e dentes ao controle autocrático dessas instituições. Quando algum dirigente sai é porque já negociou algum cargo nos órgãos de educação do Estado. Não é por acaso que Aristides Cimadon, atual secretário da Educação do governo Jorginho, presidiu a Acafe antes de assumir o cargo em janeiro de 2023.

O PROGRAMA UNIVERSIDADE GRATUITA E A INÉRCIA DO M.E

Neste contexto, verificamos em Santa Catarina um movimento estudantil já estabelecido em Florianópolis, mas que essa força não se reflete no resto do estado, dominado pelas “comunitárias”. Dentro das universidades “comunitárias” temos um movimento estudantil praticamente nulo, que tendem a ser apenas uma extensão das suas respectivas reitorias. Qualquer manifestação política mais incisiva de qualquer DCE ou CA é terminantemente reprimido pela universidade. Diversas vezes se ouve a frase “Isso é coisa de universidade pública”. As Entidades Gerais e Entidades de Base se limitam a agir como Atléticas, e quando existe movimentação política, é a reboque dos interesses das reitorias. Fato evidenciado pela defesa irrestrita da União Catarinense dos Estudantes (UCE) - e consequentemente dos DCEs e CAs das “comunitárias” - ao Programa Universidade Gratuita do governador Jorginho, do lado de figuras no mínimo questionáveis.

A proposta do Universidade Gratuita foi uma das principais promessas de campanha de Jorginho Mello, e tem como objetivo ofertar pelo menos 70 mil bolsas de graduação até 2026, substituindo o antigo programa de bolsas, o Uniedu, que atendia 63 mil estudantes em 78 instituições. Agora, o recém implantado Universidade Gratuita reduz o número de beneficiários, aumentando o investimento por aluno e se concentrando em 16 instituições, das quais 14 pertencem ao sistema Acafe.  Em 2024, serão até 42 mil estudantes custeados pelo Estado, até 57 mil em 2025, e só em 2026 se prevê que o número de beneficiados excederá o Uniedu, sendo de até 71 mil. A projeção para 2026 é de um investimento de R$1,2 bilhão nesse programa. Motivo da ampla campanha por parte das universidades “comunitárias” para a aprovação do projeto.

No entanto, o Programa Universidade Gratuita não apenas possui um caráter discriminatório e restritivo, ao exigir que para se ter acesso a uma bolsa seja necessário ter nascido em Santa Catarina ou comprovar residência no estado por pelo menos 5 anos, ignorando o substancial crescimento do estado, especialmente devido à migração de trabalhadores do norte e nordeste nos últimos anos, perpetuando um conceito de "verdadeiros catarinenses". Mas também não tem pretensão alguma de promover a democracia interna dentro das universidades, por meio da participação dos estudantes na eleição de reitores, diretores de centros e coordenadores de curso, assim como não prevê a garantia da transparência das instituições por meio de um Portal de Transparência.

Além disso, adiciona-se o requisito de os beneficiados prestarem serviço comunitário - equivalentes a 20 horas a cada mês de beneficio recebido - e o possível desaparecimento da Iniciação Científica nas universidades “comunitárias”, dado que o programa não contempla estratégias de permanência estudantil e a concessão de bolsas remuneradas para atividade de pesquisa e extensão. Deixando apenas as bolsas do CNPQ, incapazes de suprir as necessidades de um estudante. Ou seja, um programa que busca facilitar a entrada, mas não assegura a permanência nas universidades, é claramente um projeto que não se propõe a verdadeiramente democratizar o acesso ao ensino superior.

Pelo contrário, o verdadeiro objetivo de um programa igual o Universidade Gratuita é aprofundar a privatização do ensino em Santa Catarina, eximindo o poder público de constituir universidades públicas verdadeiramente gratuitas e universais no interior do estado, onde as “comunitárias” possuem hegemonia. Direcionando verba pública a grupos privados, os quais cobram altas mensalidades, não oferecem um programa de pesquisa e extensão robusto, e adotam uma gestão autocrática, sem qualquer transparência e participação da comunidade. Enquanto isso, instituições públicas de ensino superior, como a UDESC, enfrentam graves carências, incapazes de expandir suas ofertas de ensino, infraestrutura e número de vagas. No entanto o que podemos comprovar pelo Programa Universidade Gratuita é que existem recursos disponíveis.

Posto isso, novamente afirmo que é uma vergonha a campanha realizada pelo movimento estudantil catarinense hegemônico para aprovação deste programa sem nenhuma ressalva. Não houve qualquer nota pública sobre os pontos problemáticos do Universidade Gratuita, mesmo após aprovação, de última hora, de uma emenda no programa que prevê como facultativo para a universidades a exigência de exame toxicológico para até 2% do total de alunos beneficiados a cada semestre. A inércia do ME catarinense só reafirma a necessidade real de a UJC formular de forma séria a disputa dentro dos espaços das ditas “comunitárias”, muitas vezes até mais proletarizadas do que as universidades públicas. Não basta disputar apenas a UFSC e UDESC. A própria existência das “comunitárias” impede a expansão do ensino superior público no resto do estado, assim como qualquer avanço no projeto de Universidade Popular que defendemos, já que fere frontalmente os interesses dessas oligarquias locais.

PERSPECTIVAS PARA O FUTURO

Se não redirecionarmos nosso trabalho no estado, ficaremos para trás, camaradas. A realidade é que o grosso dos jovens provenientes da classe trabalhadora cursando o ensino superior em Santa Catarina não estão nas universidades públicas. Estão nas “comunitárias”, nas universidades privadas empresariais, nos cursos EAD de ensino superior, pagando mensalidades que aumentam a cada semestre por não possuírem condições de acesso ao ensino superior público.  Cerca de 50 mil estudantes ingressam todos anos em cursos presenciais na rede privada, destes muitos desistem da graduação, em grande parte por não conseguir equilibrar o trabalho com os estudos e/ou pelo aumento nas mensalidades. E não estamos nem perto de chegar nessas pessoas e oferecer uma alternativa radical a esse modelo de ensino já enraizado em nosso estado.

Em nossas resoluções congressuais da UJC, é mencionado como nossa prioridade de inserção no movimento de massas, para além do movimento secundarista, movimento de estudantes do Ensino Profissional Técnico e movimento de jovens trabalhadores, a inserção nas universidades privadas de massa. Porém na nossa prática cotidiana podemos verificar claramente nossa dificuldade de inserção nesses espaços. O movimento estudantil continua sendo “coisa de universidade pública”.

É imperativo que nós estabeleçamos como prioritário, em nossa atuação em Santa Catarina, a constituição de um movimento estudantil combativo dentro das “comunitárias”, que para além de defender as demandas imediatas dos estudantes dessas instituições, como maior participação da comunidade na eleição dos cargos dirigentes, diminuição das mensalidades, políticas de permanência estudantil, maior investimento em pesquisa e extensão, etc. Tenha como horizonte político a completa estatização do Sistema ACAFE, utilizando de sua infraestrutura já existente, concebida essencialmente por financiamento público, para ofertar um ensino superior público gratuito, universal e de qualidade em todo o estado.

Na nossa disputa pelas universidades “comunitárias”, devemos também disputar toda a comunidade que gira em sua volta. Leva-los a questionar o próprio modelo de “comunitárias”. Questionar a quem serve usar o termo “comunitário” para um conjunto pessoas onde a maioria tem como única alternativa de formação instituições de ensino pagas. Só assim conseguiremos, talvez, alcançar uma plena interiorização do nosso movimento estudantil e avançar na luta pelo projeto de sociedade em que acreditamos, transformando essas instituições em universidades VERDADEIRAMENTE COMUNITÁRIAS.