O ideal de maternidade capitalista e a realidade da mãe trabalhadora
Com trabalho invisível essencial para reprodução da força de trabalho, mães trabalhadoras acumulam jornadas, têm seus direitos reprodutivos negados e são preteridas pelo mercado de trabalho.
Por Redação
Todos os anos, basta passar a comemoração da Páscoa, antes mesmo do mês de maio chegar, começamos a ser assediados por propagandas sobre o Dia das Mães. Elas estão na TV, na internet, nas ruas, no transporte público e em todos os lugares possíveis.
Para além do debate sobre o estímulo ao consumismo, podemos refletir sobre qual maternidade essas peças publicitárias tratam. Estão ali representadas, de forma realística e não romantizada, as mães sobrecarregadas por duplas ou triplas jornadas de trabalho? São as mães solos que estão nas propagandas da TV? Por acaso são as mães que foram obrigadas a seguir com uma gestação que não desejavam? Ou talvez as mães separadas de seus filhos pelo cárcere?
A resposta é não. As representações sobre o Dia das Mães no capitalismo giram em torno de uma maternidade idealizada, a “maternidade sagrada” – ideia que já era debatida pela revolucionária Alexandra Kollontai na Rússia pré-revolução, em 1916. Desde os primórdios do capitalismo, a ideologia burguesa nos impõe um ideal de maternidade a ser seguido por uma “mãe de verdade”.
Nesse ideal, há sempre uma gravidez para existir uma mãe; essa mulher deseja a criança e a gestação é quase mágica, sem problemas de saúde ou financeiros, sem jornadas de trabalho intensas, sem medo ou dúvidas. Na hora do parto, automaticamente a mulher aprende a ser mãe e passa a amar incondicionalmente o recém-nascido. Não há violência obstétrica, não há falta de leite, a recuperação e o puerpério são tranquilos e com assistência.
Ao longo do desenvolvimento da criança, essa mãe consegue retornar ao seu emprego para sustentá-la, enquanto pode deixar seu filho com cuidador ou escola acessível e de qualidade. Em casa, a mulher divide, com a pessoa com a qual ela se relaciona, as tarefas domésticas e de cuidado. Há tempo de lazer e ainda a possibilidade de ser ela mesma e não só a mãe.
Superando essa idealização, a pergunta central que temos que fazer é: será possível que uma mulher trabalhadora possa viver algo parecido com esse tipo de maternidade que o capitalismo afirma ser autêntica?
A maternidade da trabalhadora brasileira
Dados de 2021 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 54,6% das mães de 25 a 49 anos com crianças de até três anos estão formalmente empregadas, e quando há recorte de raça, o percentual cai para 49,7% entre as mulheres negras. Se comparado aos homens, as estatísticas demonstram que 89,2% daqueles com filhos de até seis anos estão empregados.
Ser minoria nos postos de trabalho formais não implica em um quadro de desocupação das mães. Estatísticas de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (PNAD Contínua), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontaram que mulheres gastam mais de 61 horas por semana em trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados no Brasil. A jornada de trabalho formal máxima permitida pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é de 44 horas semanais.
Para cada família monoparental com filhos que é chefiada por homens, há seis famílias chefiadas por mulheres, o que corresponde a 13% e 87% do total desse tipo de núcleo familiar, respectivamente. Além disso, seis em cada dez mulheres que chefiam famílias monoparentais são negras, alcançando um percentual de 62%.
Dentre as mães solos negras, a maior parte (25%) presta serviços domésticos, 17% trabalha nas áreas de educação, saúde humana e serviços sociais, e os outros 15% atuam no comércio. Já entre as mães solos não negras, 22% trabalham com educação, saúde humana e serviços sociais, 17%, no comércio e 16% com serviços domésticos. Os dados são do Boletim Especial do 8 de março de 2023, feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômico (Dieese).
Em seu texto O Comunismo e a família, de 1920, Kollontai aponta “O capitalismo colocou um fardo pesado sobre os ombros da mulher: a converteu em trabalhadora assalariada, sem reduzir seus cuidados como dona de casa ou mãe”.
A maternidade compulsória
Na sociedade capitalista, quando uma pessoa nasce sendo considerada como uma mulher, as imposições de gênero começam a ser colocadas imediatamente em sua vida. Com o passar dos anos, ela é apresentada às ilusões da maternidade da ideologia burguesa, entre elas a do “instinto materno”, que a coloca como parte da reprodução da força de trabalho sem que possa imaginar outro cenário para a própria vida se não a maternidade.
Ao mesmo tempo em que essas mulheres são impulsionadas à maternidade, são obrigadas a serem as principais responsáveis, senão as únicas, pelo cuidado com a criança, enquanto precisam manter seus empregos para não morrer de fome e lavar, cozinhar, cuidar dos doentes e dos idosos, já que todas essas responsabilidades são colocadas como vocação natural da mulher.
Do outro lado da discussão sobre maternidade compulsória, está o direito ao aborto. Em um país onde o procedimento é ilegal, sendo autorizado apenas em casos específicos, e sofre ataques conservadores até mesmo em situações de estupro, a educação sexual e o acesso a métodos contraceptivos também só são realidade para uma parte restrita da sociedade.
A maternidade que a mãe trabalhadora precisa
Um simples panorama da maternidade das trabalhadoras brasileiras e é possível compreender que as demandas de redução da jornada de trabalho sem redução salarial e a socialização do trabalho doméstico e de cuidado são pautas urgentes e devem ser alcançadas antes mesmo da efetivação da revolução socialista.
É preciso atuar junto à luta pela redução da jornada de trabalho sabendo que essa não é a primeira vez e nem será a última que os trabalhadores se unirão para exigir mais tempo para viver e menos tempo produzindo valor para os capitalistas. Fazer com que a jornada de trabalho fosse reduzida para oito horas diárias, como conhecemos hoje, também já pareceu impossível, até que a organização popular a tornou inevitável.
Com o fim da escala 6x1, a diminuição da carga semanal para 30 horas e a manutenção do salário, as mães trabalhadoras finalmente terão tempo para se dedicarem à maternidade, se assim desejarem, sem que esta tarefa se torne um fardo de trabalho incessante.
Com a socialização do trabalho doméstico e de cuidado por meio de restaurantes e lavanderias populares, creches, escolas, hospitais e casas de repouso que sirvam para tirar dos ombros das mulheres as diversas jornadas de trabalho que elas acumulam, estaremos no caminho da construção de uma maternidade que realmente toque nas necessidades da mãe trabalhadora.