'O feminismo não vai salvar todo mundo: um debate sobre gênero e racialidade' (Amanda)

O feminismo branco impõe a sua agenda para as mulheres racializadas, seja teoricamente e/ou na prática, ignora as vivências, experiências, culturas, formulações e até mesmo a vontade das mulheres racializadas.

'O feminismo não vai salvar todo mundo: um debate sobre gênero e racialidade' (Amanda)
"Esse processo de colonização do sul global e/ou de suas culturas, fazem com essas sejam subjugadas como subumanas, criam-se estereótipos e para se utilizarem de pessoas racializadas, seja pela exploração do trabalho direta, ou sendo por uma exploração “indireta” se utilizando de suas dores e inseguranças para gerar lucro."

Por Amanda para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Antes eu gostaria de fazer alguns apontamentos, essa tribuna não se propõe a trazer respostas e sim iniciar uma discussão necessária que sempre é adiada no partido. Muitas dos acúmulos que eu tenho particularmente são frutos do tempo que estudei sobre amarelitude, antes de ser organizada. Além da escassez de debates de gênero e raciais, tem um motivo que me faz querer compartilhar esse texto que é “mulheres racializadas estão cansadas de terem que falar da violência que sofrem, mas também estão cansadas de ver pessoas brancas contando suas histórias”.

É impossível ao falarmos da classe trabalhadora, sem falarmos de questões de raça e gênero e as estruturas construídas. Ignorar essas questões e também o debate de classes sociais, parece ignorar a própria história e construção social, não só do Brasil, mas como do mundo. Essas questões existem e não podem ser desvinculadas.

A desumanização das mulheres racializadas perpassa por questões raciais, de gênero, xenófobas, chauvinistas e classistas. Mulheres racializadas muitas vezes não são lidas como mulheres e/ou são tratadas com inferioridade em relação às mulheres brancas. Isso também é fruto dos processos coloniais violentos que ocorreram no “sul global”, que envolve majoritariamente a América Latina, África e a Ásia; onde se desumaniza os colonizados e influenciados, que vão seguir e servir ideologicamente um padrão europeu branco.

Esse processo de colonização do sul global e/ou de suas culturas, fazem com essas sejam subjugadas como subumanas, criam-se estereótipos e para se utilizarem de pessoas racializadas, seja pela exploração do trabalho direta, ou sendo por uma exploração “indireta” se utilizando de suas dores e inseguranças para gerar lucro.

Um exemplo disso é que mulheres racializadas podem ter mais chances de desenvolverem distúrbios alimentares do que as mulheres brancas, tendo em vista que o ideário da sociedade é o padrão europeu branco, essas mulheres racializadas são levadas a fazerem de tudo para compensar a sua não branquitude, se apegando ao que resta do padrão ser “bonita e magra”, essa pressão faz com que essas mulheres possam desenvolver esses distúrbios ou usem o resultado da força do trabalho para dar muito lucro a indústria da beleza, que lucra sobre as inseguranças das mulheres racializadas e nessa tentativa de se encaixarem para serem humanizadas.

No exemplo que utilizo dos distúrbios alimentares, quero que percebam que isso dá margem para outras violências, no caso de mulheres amarelas que são “obrigadas” a abandonarem os seus aspectos culturais para tentar se encaixar; as diferentes culturas dos povos amarelos tem a comida como demonstração de afeto e como pilar cultural. Ao seguir o padrão de beleza, as mulheres amarelas podem ter que romper laços culturais e isso é uma violência cultural também. As pessoas racializadas em sociedades com o padrão da branquitude, muitas vezes abandonam suas raízes culturais de forma abrupta para serem “aceitas”.

Falando um pouco do cuidar e dos afetos, as mulheres têm que assumir responsabilidades de cuidados, não é muito difícil perceber este cenário, só olhar um hospital que verá muitos homens acompanhados por mulheres e muitas mulheres sozinhas. Mas esses cuidados não se limitam apenas aos cuidados familiares, de relacionamentos amorosos e de criação de filhos. Mulheres racializadas têm muito mais dificuldades de conseguir um acompanhamento médico, por exemplo, é mais difícil de ser diagnosticado um transtorno psicológico em uma mulher racializada porque muitos desses processos de identificação ignoram os aspectos culturais de povos não brancos, o branco é o padrão.

Mulheres racializadas são preteridas, não apenas em relacionamentos, mas dentro do feminismo também. Assim como outros assuntos políticos são dominados por homens brancos, o feminismo é dominado por mulheres brancas, que impõe seu ideário feminista branco as mulheres racializadas e/ou não ocidentais; basta ver os discursos do feminismo liberal de quem “temos que salvar as mulheres asiáticas dos homens asiáticos”. Isso é o resultado da falta de humanização.

O feminismo branco impõe a sua agenda para as mulheres racializadas, seja teoricamente e/ou na prática, ignora as vivências, experiências, culturas, formulações e até mesmo a vontade das mulheres racializadas. Enquanto mulheres brancas se utilizam de elementos de culturas não brancas para usar de token ou para serem “descoladas”, mulheres racializadas se podam de suas raízes culturais para sobreviver em uma sociedade regida pela branquitude e se usam elementos de sua cultura, são subjugadas e desumanizadas. Basta ver as mulheres que descendem de famílias imigrantes não brancas, elas tentam se “limpar” da sua cultura ancestral ou transforma ela em um aspecto aceitável para as pessoas brancas; essas mulheres até tentam ser brancas, mas nunca vão conseguir.

Tudo isso se é utilizado como ferramentas do capitalismo, que super exploram as mulheres racializadas em vários níveis, essas mulheres têm que simplesmente aceitar as inúmeras violências que sofrem (racismo, machismo, xenofobia e etc) para continuar sobrevivendo dentro do sistema capitalista, que as obriga a viverem e conviverem diariamente com essas violências.

Não vou adentrar nas questões de desumanização em aspectos de fetichização sexual que as mulheres racializadas sofrem, mas acredito que deu para ter uma noção sobre “dupla violência” que as mulheres racializadas passam e de como infelizmente são mais suscetíveis a determinadas violências.

O partido muitas vezes reproduz essa lógica dentro dele, por estar inserido nessa realidade, mas tem que se fazer o debate dentro das organizações que o envolvem, fazer reflexões de como se reproduzem determinadas violências, dos motivos de homens cis brancos sempre estarem formulando sobre a classe trabalhadora como uma coisa “única” enquanto minorias tem que sempre lembrar de questões históricas, sociais e de opressões que atingem a classe trabalhadora e fazem a roda do capital girar.

Esse debate conjuntural das violências e das dores que parecem individuais, mas são coletivas tem que acontecer, tudo isso se perpassa sobre as diferentes formas de existir no mundo e na classe trabalhadora. Essas questões atingem pessoas racializadas, mulheres e pessoas LGBTQIAP+ (sabendo que essas existências coexistem) e ignorar isso é ignorar a existência das mesmas.

Agora para encerrar a tribuna, faço um convite a pessoas socialmente lidas como brancas a formularem sobre o assunto, tomando sempre cuidado para não estigmatizar povos não brancos e/ou ocidentais, esse debate é necessário dentro das fileiras organizativas.