'O Estatuto do Partido e questões de organização' (Machado)

Queremos que esse Estatuto sirva como fundamento de nossa organização tanto agora quanto na clandestinidade, e também se adapte aos mais distintos locais em que organizamos os trabalhadores, do Sul ao Norte desse país.

'O Estatuto do Partido e questões de organização' (Machado)
"Já sobre a distância do centro, creio que isso é de certa forma inevitável em uma organização ampla, se quisermos ligar diretamente as bases ao CC apenas pelas assistências. Porém, o CC possui a melhor forma de se ligar a qualquer base, não importa a quantos “Comitês” de distância elas estiverem: o Jornal partidário, que deve transmitir as orientações gerais do Partido, garantir um trabalho uniforme, socializar experiências, etc."

Por Machado para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, temos uma ótima proposta de Estatuto nas pré-teses do Congresso. Creio que ele representa uma mudança radical com a forma como sempre adotamos Estatutos, reduzindo as disposições apenas aos fundamentos de nossa organização.

Porém, sinto que ainda faltam alguns ajustes para termos um documento mais firme e capaz de expressar com clareza as regras fundamentais de nossa organização sem enrijecer desnecessariamente nossa estrutura.

1. Conceito de Membro

O Art. 3º dos Estatutos estabelece o conceito de membro/militante do Partido:

Art. 3º É considerado militante do PCB-RR todo aquele que aceita o programa do Partido, participa diretamente das tarefas de pelo menos um organismo do Partido e contribui regularmente (cotiza) com as finanças do Partido.

Apesar de ser uma boa formulação, creio que a expressão “participa diretamente das tarefas de pelo menos um organismo” é um pouco solta. Creio que não é um problema muito sério, mas essa formulação confusa abre uma pequena brecha para o conceito menchevique de militante partidário, que ficou famoso na formulação de Mártov: atua “sob direção” de um dos organismos. Ora, “participa diretamente” é um termo bastante amplo e, na prática, há aproximados que “participam diretamente” de algumas tarefas de organismos, como manifestações, gestão de CA, etc.

Entendo que essa formulação provém dos Estatutos originais dos Bolcheviques (especialmente III Congresso), que possuíam a fórmula “contribui com seu trabalho pessoal para uma de suas organizações”. Porém, essa fórmula nos Congressos posteriores foi superada por uma mais simples: “pertence a alguma organização partidária”.

Por isso, para evitar confusão e garantir o rígido conceito bolchevique de militante, proponho a seguinte alteração ao Estatuto:

Art. 3º É considerado militante do PCB-RR todo aquele que aceita o programa do Partido, participa diretamente das tarefas de pelo menos um organismo do Partido pertence a um de seus organismos e contribui regularmente (cotiza) com as finanças do Partido.

É certo que não queremos, em nossas organizações, militantes que não executam trabalho. Porém, isso pode ser corrigido de forma muito mais eficiente através de nossas resoluções e do nosso próprio trabalho organizativo do que com uma disposição nesse artigo do Estatuto.

2. Recrutamento

Neste mesmo artigo, também temos a formulação mínima do processo de recrutamento:

§2º Todo novo militante deverá ter seu recrutamento aprovado por uma célula.

Por alguma razão, o Estatuto só prevê militantes confirmados por células. Porém, se vamos deslocar o centro de gravidade para os Comitês Locais, é certo que eles precisarão ter capacidade de recrutar militantes, especialmente na criação de novas células. Também seria estranho impedir qualquer organismo dirigente de organizar a aceitação de novos membros. Por isso, proponho uma nova formulação para o parágrafo:

§2º Todo novo militante deverá ter seu recrutamento aprovado por uma célula um organismo do Partido.

3. Comitês

A proposta dos Estatutos é, corretamente, alterar o centro de gravidade do trabalho partidário para os Comitês Locais, mais enxutos e próximos das bases. Creio que este expressa a correta formulação de que o trabalho dos Comitês intermediários é o de “distribuir as forças e fundos do Partido” e “desdobrar o Plano de Ação Nacional” na localidade.

Porém, creio que o Comitê Nacional cometeu um erro ao restringir as formas de organização a apenas dois níveis distintos de Comitês intermediários (o CL e a União). Isso porque essa proposta engessa desnecessariamente nossa forma organizativa e impede a prática necessária de criação de mais níveis de organização, o que é especialmente real nos momentos de nosso crescimento.

Isso vai na contramão das boas experiências históricas que temos. Os bolcheviques, por exemplo, possuíam uma rede extremamente hierarquizada de Comitês, chegando a 5 ou 6 graus hierárquicos entre os organismos de base de uma grande cidade e o Comitê Central. Se parte disso vinha da rigidez da clandestinidade, é certo que não podemos esperar que o Comitê Central reduzido dos bolcheviques (entre 10 a 20 membros) desse assistência para as centenas de organizações locais (comitês distritais e subdistritais) do Partido.

Apesar de, hoje, parecer desnecessário, espero que estaremos em breve chegando no ponto em que serão necessários mais organismos dirigentes especializados e capazes de cumprir especialmente a tarefa de assistência. Do contrário, com o crescimento da organização, seríamos deixados com duas opções: limitar o número de organismos de base ou locais, ou crescer ainda mais o organismo central para que dê conta de garantir todas as assistências. Esses dois erros levam a organismos inchados, que dificilmente conseguem garantir boas diretrizes a cada localidade ao mesmo tempo em que possuem dificuldade também para garantir um bom trabalho geral, o que deve ser evitado.

Afinal, se considerarmos que, em cada Estado do Brasil, devemos constituir ao menos duas Uniões de CL (o que é bem pouco), uma para a Capital e uma para o interior, ainda assim o CC já teria que garantir 54 assistências. Isso sem contar o tamanho da própria União: no interior de estados grandes rapidamente precisaremos de três ou quatro Uniões, o que certamente demandaria grande atenção do Comitê Central que, afundado em tarefas de assistência, teria ainda mais dificuldade de se colocar enquanto organismo dirigente central, e não como “conselho de assistentes”.

Creio que o CNP propôs essa forma de organização com boas intenções, buscando não descentralizar a organização, como sugere a Resolução de Organização do III Congresso da Internacional Comunista[1].  Porém, essas Resoluções têm um alvo bastante específico: os PCs da Europa, especialmente da Alemanha e da Tchecoslováquia, que contavam com grandes bases de influência mas uma organização ainda débil e forrada de resquícios social-democratas.

Nesse sentido, creio que não é necessário adotarmos uma forma rígida que impeça o melhor estabelecimento de Comitês intermediários em mais níveis, quando necessário. Queremos que esse Estatuto sirva como fundamento de nossa organização tanto agora quanto na clandestinidade, e também se adapte aos mais distintos locais em que organizamos os trabalhadores, do Sul ao Norte desse país. Uma forma rígida só pode gerar frequentes rediscussões e, ao mesmo tempo, diminuir a eficiência das decisões organizativas, que estarão mais restritas.

Por isso, proponho que alteremos a definição de Comitês Locais e União de Comitês Locais para centralizar em uma definição, mais simples: “Comitê”. O Comitê pode abranger qualquer área para a qual foi criado, e pode tanto criar novas células quanto Comitês inferiores, bem como presta assistência a essas organizações.

Essa pequena mudança flexibiliza nosso Estatuto sem obrigar ou incentivar que se organizem mais níveis de organismos, e também sem destacar um ou outro como mais importante ou limitar seu escopo de organização. O texto fundiria o art. 6º ao art. 7º do Estatuto proposto (que, na prática, são extremamente semelhantes) e ficaria redigido da seguinte forma:

“Art. 7º Os Comitês Locais Partidários são os organismos que têm como atribuições: (a) distribuir as forças e fundos do Partido, desenvolvendo células ou Comitês inferiores conforme as necessidades políticas do Partido em determinada região; (b) desdobrar o Plano de Ação Nacional (ou Regional do Comitê superior, onde haja) por meio de um Plano de Ação Local, com medidas a serem desenvolvidas nas regiões pelas células e Comitês inferiores.

§1º O Comitê Local pode cooptar membros para sua composição por maioria qualificada de 2/3.

§2º Os Comitês Locais são eleitos nas etapas de Congresso, ordinariamente, ou por meio de Conferência Local, extraordinariamente.

§3º As Conferências Locais de cada Circunscrição serão convocadas por decisão da maioria simples do Comitê Local ou por solicitação formal do Comitê Central de qualquer Comitê superior ou das células e/ou Comitês que representem mais da metade dos militantes da localidade circunscrição do Comitê. Em caso de recusa do Comitê Local de convocação da Conferência Local, o Comitê Central imediatamente superior deverá apontar uma Comissão Organizadora Local com poderes para organizar a Conferência Local. Em caso de recusa do Comitê Central imediatamente superior, as células que solicitaram a Conferência Local deverão eleger uma Comissão Organizadora Local com poderes para convocar uma Conferência Local.”

Nessa proposta, o art. 6º (Uniões de Comitês) é desnecessário, mas não me oponho em mantê-lo se houver algum apego por parte ou argumento que não pensei. O principal é flexibilizar a competência dos Comitês e garantir que, se necessário, eles poderão ser hierarquizados, garantindo a possibilidade de uma política de assistências mais organizada.

Em adendo, a proposta apresentada permite um grande passo no estabelecimento de Comitês com muito menos membros, mais especializados e capazes de garantir uma unidade firme, não dispersa, dos trabalhos em andamento. Isso é cada vez mais difícil em organismos com mais de 20 membros.

Creio que há duas questões que se opõem a minha proposta: a possibilidade de burocratização das direções intermediárias, e o aumento da distância das bases ao centro dirigente nesses casos.

Creio que, para a questão da burocratização, somente nossa atividade orgânica pode combatê-la, e sabemos que ela pode se expressar, e com uma força desorganizadora até maior, em organismos com apenas um nível de distância das bases, como era o caso dos CRs no PCB unido, organismos inflados cujos membros cumpriam papel quase “parlamentar”, sem formulação própria e geral na maioria dos casos, apenas “representando” bases específicas nos momentos de votação. Nesse sentido, creio que o Comitê Central, que terá poder decisório vinculante, terá a capacidade de organizar um esquema de repasses e de distribuição das competências e dos recursos partidários de forma que alguns desses graus sejam meramente de “ligação”, sem grandes poderes. Uma mera regulação do CC permitiria que um Comitê de caráter Regional (p.ex., RMSP) pudesse manter apenas 15 ou 30% dos recursos que recebe (ou até menos), garantindo função meramente organizativa (não dirigente), bem como orientando, onde possível, sua dissolução, enquanto reforça o caráter dos Comitês Locais, garantindo que mantenham a maior parte dos recursos de suas circunscrições, auxiliando CLs estratégicos a “liberar” militantes, etc.

Dessa forma, uma organização interna mais flexível pode ser operacionalizada para para que não seja interessante constituir organismos de direção em excesso. Em uma estrutura mais rígida, não teríamos essa capacidade, e algumas aberrações podem surgir.

Essa questão pode e deve ser objeto de discussões mais aprofundadas, a partir de uma experiência muito mais ampla do que a atual, nos futuros Congressos. A fórmula original do Estatuto demandaria uma reforma para qualquer mudança. A fórmula que proponho permite que as Resoluções possuam maior peso na construção da estrutura organizativa, garantindo que os Estatutos possam permanecer os mesmos enquanto nossa estrutura organizativa se adapta melhor a cada Congresso e às particularidades de cada região em que nos inserirmos.

Já sobre a distância do centro, creio que isso é de certa forma inevitável em uma organização ampla, se quisermos ligar diretamente as bases ao CC apenas pelas assistências. Porém, o CC possui a melhor forma de se ligar a qualquer base, não importa a quantos “Comitês” de distância elas estiverem: o Jornal partidário, que deve transmitir as orientações gerais do Partido, garantir um trabalho uniforme, socializar experiências, etc. Com esse jornal, e em contato com um corpo móvel e bem organizado de propagandistas em contato com o CC, é bem mais difícil que os organismos locais fiquem afastados demais do Centro. Também é importante aproximar as organizações mais estratégicas do Comitê Central (Portos, refinarias, grandes centros proletários, etc.), o que, na prática, demanda a flexibilidade organizativa para manter mais afastadas organizações de pequenas cidades que, mesmo sendo essenciais para nossa organização, têm mais margem para errar e menos urgência de atenção do Centro.

4. Autonomia

O Estatuto estabelece um importante artigo sobre a autonomia das organizações, o que em princípio parece bastante correto.

Porém, creio que a atual formulação do art. 9º[2] gera mais confusões do que melhora nosso trabalho, pois falha em descrever algumas condições básicas do centralismo democrático, como a obrigatoriedade do cumprimento das decisões de organismos superiores, a limitação da autonomia das organizações locais.

A própria frase “competem autonomamente” pode dar a entender que uma organização superior estaria impedida de intervir em uma organização inferior, mesmo quando ela estiver agindo contra as diretrizes partidárias ou estiver se omitindo perante questões que o Centro considerar essencial. Se, por exemplo, a organização local do ABC omitir-se no apoio de uma greve operária de grande porte na região, o Comitê Central estaria impedido de intervir e orientar a direção do movimento? Creio que não pode haver espaço para dúvidas quanto a essas questões em nosso estatuto.

Além disso, esse artigo é uma tradução direta de dispositivo idêntico do Estatuto do POSDR aprovado no III Congresso (1905). Porém, essa disposição não foi reeditada no IV Congresso (1906, no qual, mesmo com maioria menchevique, os bolcheviques conseguiram vitórias importantes no Estatuto, como a formulação leninista do conceito de membros do partido), nem na reescrita realizada no V Congresso do POSRD (1907, de maioria bolchevique). Nesses Congressos, esse dispositivo é substituído pela fórmula: “Todas as organizações partidárias são autônomas em relação a suas atividades internas”. Ou seja, autônomas em suas formas de organização: estabelecimento dos próprios Estatutos, Conferências, etc. Mas não autônomas nas decisões tomadas sobre assuntos de sua circunscrição.

Essa disposição só voltou à fórmula da autonomia de cada organização após a tomada do poder, no Estatuto de 1919, ou seja, a maior parte da atividade bolchevique foi regida pela fórmula “autonomia nos seus assuntos internos”, e não pela “competência autônoma de todos os assuntos (...)”.

Não sou inimigo de um bom nível de autonomia das organizações locais, o que caminha em conjunto com seu espírito de iniciativa e com uma boa repartição de competências entre as diversas organizações partidárias. Porém, creio que estabelecê-la no Estatuto, com essa fórmula, pode abrir brechas para confusões e o uso oportunista dessa disposição para impedir as intervenções dos organismos superiores.

Dessa forma, tomei algumas disposições dos Estatutos aprovados no IV Congresso do PCB e no V Congresso do POSDR como base para reescrever esse parágrafo:

Art. 9º A todos os organismos competem autonomamente todos os assuntos relacionados específica e exclusivamente com o local de inserção para o qual foram criados; o grau de autonomia das células que desempenham tarefas específicas é determinado pelos Comitês que as criaram.
Art. 9º O organismo partidário que desenvolve a sua atividade em determinada circunscrição é considerado superior a todos os organismos partidários que limitam sua atividade a parte dessa circunscrição; o limite da circunscrição de cada organismo é definido pelo organismo superior; cada organismo goza de plena autonomia para dirigir o trabalho em sua circunscrição, mas deve implementar as decisões dos organismos superiores.

5. Dirigentes

Uma última coisa que creio que faltou no Estatuto proposto é a regra que determina que todos os dirigentes são destituíveis de suas posições de direção. Adicionei essa disposição ao Art. 10, como Parágrafo Único:

Art. 10 (...)

Parágrafo único: todos os dirigentes do Partido podem ser removidos de suas posições por decisão da maioria dos militantes de sua circunscrição.

Essa fórmula não estabelece métodos rigorosos, mas registra de forma firme esse que é um dos princípios da organização leninista. Sou da opinião que, mesmo quando não for possível utilizar de eleições para escolher as direções, em momentos de rígida clandestinidade, essa regra pode e deve ser mantida no Estatuto, que garante que qualquer organização de base destitua seu Secretário quando necessário, e que qualquer número de organismos imponha suas críticas a uma determinada direção para destituí-la, quando necessário.


[1] “Naturalmente, nos grandes países, o Partido tem necessidade de alguns órgãos de ligação entre a direção central e as diferentes direções regionais (direção provincial, direção departamental etc.) (...). De modo geral, esse tipo de descentralização deve ser evitado.”
https://emdefesadocomunismo.com.br/a-estrutura-os-metodos-e-a-acao-dos-partidos-comunistas/

[2] Art. 9ºA todos os organismos competem autonomamente todos os assuntos relacionados específica e exclusivamente com o local de inserção para o qual foram criados; o grau de autonomia das células que desempenham tarefas específicas é determinado pelos Comitês que as criaram.