'O Espectro do "Identitarismo"' (Gabi Syderas)
A tese aponta para a desorganização do movimento, e não estimula essa leitora trans de nenhuma maneira receptiva para além de "se sobrar tempo, lutaremos pelos seus direitos também (lembrando que o fim da LGBTfobia só será atingido com o fim do capitalismo, veja bem...)".
Por Gabi Syderas para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Como alguém que está acompanhando as discussões e levantamentos do movimento, li as pré-testes com alguma animação e curiosidade, apenas para ficar com uma pulga atrás da orelha que não saiu de lá desde sua publicação. Gostaria de usar essa tribuna para tentar refletir sobre três pontos que são conectados na maneira em que as teses falam sobre o Movimento Feminista e o Movimento LGBTQ+, e o que percebo como limitações (que, embora visíveis, não são completamente impossíveis de se resolver).
Antes de adentrar o texto em si, gostaria de clarificar que a linguagem das teses, por definição de sua função como agregador de postulados, tem que ser relativamente breve e, sendo assim, não consegue entrar com toda a nuança que outras formas de escrita podem ter. Não culpo a organização ou quem escreveu as teses por elas não desenvolverem toda a complexidade que a vida em sociedade ou a história de uma militância tem. Envio essa tribuna como uma tentativa de apontar para essas ambiguidades e gerar um debate sobre elas, para que, no futuro, certas coisas fiquem menos ambíguas, que certas colocações sejam menos nebulosas e vagas. Contudo, gostaria de deixar claro que o fato de eu sentir a necessidade de me justificar, apaziguar e clarificar antes mesmo de qualquer palavra ter sido escrita sobre a percepção e postura do movimento Comunista perante ao movimento Feminista e LGBTQ+, ao meu ver, diz sobre o receio, frustração e falta de vontade de contribuir (que, ao menos em minha experiencia, é compartilhado por outras pessoas trans, gays e feministas em meus círculos) que sentimos perante a uma organização que as vezes parece monolítica e despreocupada com o acolhimento de sessões de suas fileiras.
(gostaria também de deixar claro que não sou uma pesquisadora sobre esses assuntos, e minhas reflexões vem de minha voracidade de leitura como historiadora e ao fato de que sou uma mulher trans, e como todo outro grupo minoritário, sentimos a necessidade de nos politizar como base de nossa existência.)
1 - Feminismo e Contradições
Nesse sentido, apontamos que nossa tática não se baseia na separação e oposição entre os interesses das mulheres proletárias e dos homens proletários: buscamos unir a classe trabalhadora para uma luta comum contra o modo de produção capitalista e contra todas as formas de opressões utilizadas, inauguradas e aprofundadas pelo capitalismo (entre elas o machismo) a fim de manter um maior nível de dominação e exploração da classe trabalhadora. Nosso objetivo não consiste em alcançar uma mera igualdade formal entre mulheres e homens dentro dos limites da sociedade burguesa: nossas formulações sobre o feminismo classista coincidem com as principais formulações da vertente conhecida como feminista marxista, que surgiu a partir da década de 70, inspiradas nas formulações de Marx e Engels.
Há um truque retórico sutil porem contumaz nesse paragrafo, que creio ser extremamente sintomático dos problemas presentes com relação a questão feminista (e, em desdobramento, da questão queer). Ao dizer que a tática não é baseada na oposição entre os interesses de mulheres proletárias e de homens proletários, uma posição históricamente coerente (que a luta feminista não implica em perdas de direitos para homens, e em certos aspectos, abarca questões que afetam a população masculina) obfusca uma verdade inconveniente: a de que em uma sociedade profundamente sexista, a reivindicação de uma posição feminista revela, de maneira imediata, interesses opostos entre homens e mulheres. A definição do trabalho doméstico, como um exemplo, é uma extremamente calcada no patriarcado, e, a nivel imediato, a posição feminista eleva sim uma contradição; mulheres querem a liberdade dessas tarefas (como uma divisão igualitária dentro da casa), enquanto homens (que são socialmente criados a não se importar com os afazeres domésticos) não gostariam de ter que ganhar esses afazeres novos.
Essa contradição revela uma série de contradições - a dupla jornada que a maior parte das mulheres trabalhadoras casadas executam (e, caso tenham filhos, uma tripla jornada, em que a mulher normalmente é responsável pelo cuidado emocional da criança); o fato de que mulheres são, historicamente, desestimuladas a trabalhar horários regulares justamente por "terem que cuidar da casa"; a percepção de que "não é justo" que, nesse caso, o homem não só trabalhe, mas também não possa esperar uma casa limpa sem ter que por o esforço nisso. E, mesmo que essas questões sejam resolvidas, as chances de que o estímulo tenha que vir da mulher, em si, é algo que adiciona o cansaço. Esse pequeno exemplo, em seu caráter a princípio corriqueiro, demonstra como interesses podem ser, a longo prazo, resolvíveis, mas no curto prazo, geradores de conflito e contradição, contradição essa que os homens devem estar dispostos a lidar com honestidade. Como um processo de transformação, ele passa por desconforto, e acho que a escrita da tese ofusca um pouco a ideia de que militantes teriam que trabalhar para mudar hábitos e expectativas. Acho que o conflito interno deveria estar melhor exposto.
Como dois pequenos adendos, primeiro diria que a tese §92 aponta para essa resolução dos afazeres domésticos ao mencionar creches e outras formas de acolher a demanda de uma forma mais socializada do cuidado emocional do jovem. Em contrapartida, acredito ser um erro as teses colocarem a ideia de "feminismo marxista" e a tese mencionar mais Marx e Engels (como um ponto de partida de uma teoria marxista do feminismo) do que qualquer autora que possa ser um norte para essas concepções; da forma que estão, a tese é vaga em dizer a verdadeira história desse feminismo.
2 - Sobre O “Identitarismo”
Na tese, é usado o termo "Identitário" como uma das formas de feminismo que o Feminismo Marxista rejeita, algo que revela uma certa vulgaridade no uso de certos termos no que diz respeito as teses feministas e do movimento queer - o termo "Identitário" (ou, em sua forma anterior, "politicas de identidade") no contexto feminista foi abertamente usado por grupos como o Combahee River Collective em 1977, importante grupo de ativistas socialistas, lesbicas e negras (no momento especifico em que a tese aponta para o surgimento do Feminismo Marxista), em um de seus manifestos.
Como Angela Davis aponta em "Reflexões sobre o papel da mulher negra na comunidade de escravos", as mulheres negras sempre incorporaram, mesmo que apenas em sua manifestação física, uma postura adversária ao domínio do homem branco e resistiram ativamente às suas invasões sobre elas e suas comunidades de maneira dramática e sutil. Sempre houve mulheres ativistas negras – algumas conhecidas, como Sojourner Truth, Harriet Tubman, Francês E. W. Harper, Ida B. Wells Barnett e Mary Church Terrell, mais milhares e milhares desconhecidas – que partilharam a consciência de como a sua identidade sexual combinada com a sua identidade racial para tornar única a sua situação de vida e o foco das suas lutas políticas. (em http://circuitous.org/scraps/combahee.html)
Audre Lorde, famosa poeta e pensadora do feminismo negro americano (que se auto-descrevia como "negra, lesbica, feminista, socialista, mãe, guerreira, poeta"), diz em um de seus textos que a percepção de sua identidade era, em si, um grande empecilho para sua existencia social.
Referindo-se às lésbicas negras e aos gays, o reitor estudantil da Howard University diz, por ocasião da Carta dos Estudantes Gays no campus: "A comunidade negra não tem nada a ver com tal sujeira - teremos que abandonar essas pessoas." Abandono? Muitas vezes, sem perceber, absorvemos a crença racista de que os negros são alvos adequados para a raiva de todos. Estamos mais próximos uns dos outros e é mais fácil descarregar a fúria uns sobre os outros do que sobre os nossos inimigos. É claro que o jovem da Howard estava historicamente incorreto. Como parte da comunidade negra, ele tem muito a ver “conosco”. Alguns dos nossos melhores escritores, organizadores, artistas e académicos dos anos 60, bem como de hoje, foram lésbicas e gays, e a história irá confirmar-me. Repetidas vezes, nos anos 60, pediram-me que justificasse a minha existência e o meu trabalho, porque era mulher, porque era lésbica, porque não era separatista, porque uma parte de mim não era aceitável. Não por causa do meu trabalho, mas por causa da minha identidade. (Learning From The 60s por Audre Lorde, em Zami Sister Undersong)
O termo "Identidade" no que diz respeito a luta feminista é um que tem uma propria historicidade, por muitas vezes convergindo e se distanciando do que poderia ser descrito como Marxismo (mais um dos problemas em não mencionar que autoras estão sendo utilizadas para conceitualizar a tese - simplesmente não sabemos quais são suas posições, analises e criticas do termo e sua carga histórica). Porém, o termo provavelmente está sendo utilizado na sua maneira mais moderna e polêmica, o que em si é parte do problema. Acredito que faz muito pouco sentido, no contexto social e midiático em que estamos, reivindicar a leitura negativa, polemista que o termo "identitário" é utilizado, um "apito de cachorro" para pensamentos reacionários (demonstrados na fórmula de que existem dois gêneros, homem e "identitário"; duas sexualidades, hetero e "identitário"; duas cores, branco e "identitário"). Me perdoem, mas não vejo a vantagem tática ou discursiva do uso do termo que, atualmente, é a mais nova manifestação de uma série de termos como "Politicamente Correto", "Cultura Woke" "SJW (Social Justice Warrior = Guerreiro da Justiça Social)", termos que por sua polissemia (podendo significar tanto as "políticas de respeitabilidade" sob o capitalismo que ofuscam a materialidade da luta de classes e outras opressões, ou um pânico moral reacionário contra a "auto-censura", a destruição de tradições, o "Patrulhamento ideológico" e afins) só pendem em vantagens para a direita e seus canais de comunicação.
3 - Sobre O “Estoicismo Queer”
Nesse contexto, os comunistas devem combater a centralidade da tática do advocacy e demais tipos de lobby no movimento LGBT. Precisamos apresentar os malefícios que essas práticas vêm trazendo ao movimento. São táticas como essas, por exemplo, que alimentam a um só tempo a privatização dos serviços públicos e a mobilização dos atores políticos em uma relação clientelista e refém do Estado e de grupos empresariais, desmobilizando as bases do movimento (...) Por fim, os comunistas devem ser propositivos na formulação, junto ao seio das LGBTs trabalhadoras e da classe como um todo, de estratégias e táticas que visam alcançar vitórias concretas nas bandeiras do movimento LGBT. Os comunistas precisam reconhecer que um salto de qualidade radical na realidade das LGBTs trabalhadoras, como o fim da LGBTfobia, apenas será alcançado com o fim do próprio capitalismo em uma revolução socialista. Mesmo assim, as demandas do movimento LGBT correspondem às necessidades de sobrevivência de pessoas LGBT e devem ter o início de sua superação no presente, não podendo ser ignoradas por nenhuma pessoa revolucionária.
Existe, nesses parágrafos sobre a questão LGBTQ+, uma crueldade sutil que se é esperada da comunidade ao adentrar a luta na esquerda radical. Se espera constantemente da comunidade LGBT uma renúncia de diversas coisas associadas as lutas mais liberais do movimento que, muitas vezes, não é esperada de outras sessões do movimento comunista (pense de volta a meu primeiro ponto, onde se gasta uma frase clarificando que não existe "oposição" entre homens e mulheres na concepção do "marxismo feminista" - uma frase que serve para apaziguar as inseguranças dos homens e sinalizar as mulheres a não causar "conflitos desnecessarios" por assim dizer). Enquanto a sessão sobre o movimento feminista ao menos tinha a menção do "marxismo feminista", mesmo sem autoras ou movimentos a ser referenciados, quando se fala do movimento LGBTQ+, nem isso existe. Temos a colocação contumaz de rejeitar o modelo de advocacy, não esperar as migalhas do estado burguês, criticar os aspectos mais liberais que desmobilizam o movimento, mas em nenhum momento (salvo uma menção ao "movimento" - não alguma organização específica, mas a massa amorfa do "movimento LGBT" - durante a crise da HIV-AIDS, que fez surgir o tão criticado modelo de "advocacy") temos referências as quais a comunidade possa se espelhar. Houve movimentos LGBT Socialistas? Pensadores do pensamento queer comunistas? Temos uma tradição? A tese aponta para a desorganização do movimento, e não estimula essa leitora trans de nenhuma maneira receptiva para além de "se sobrar tempo, lutaremos pelos seus direitos também (lembrando que o fim da LGBTfobia só será atingido com o fim do capitalismo, veja bem...)".
Como tenho certeza que já se cansaram de ouvir, política não é só um pensamento lógico e estratégico, também é a mobilização de afetos. E esses afetos tem uma dificuldade de serem gerados se tudo que ouvimos é que não só somos rotineiramente excluídas da sociedade, mas também que devemos criticar as pessoas que, de imediato, abertamente dizem lutar por nós. O que temos é uma total obliteração de perspectivas e formas de lutar - mesma falta de perspectiva que desorganiza o movimento, que faz com que manifestações passivas e domesticadas do movimento capturem esse desejo de radicalidade, e, com essa captura, cresce a necessidade de critica-los, em um ciclo aparentemente interminável que só contribui para o sentimento de solidão e isolamento que um jovem queer pode sentir.
Essa primazia da crítica, em si, é um dedo na ferida de uma manifestação infeliz de homofobia que às vezes aparece no seio do movimento. Existe um infeliz estereotipo, o do jovem viado vapido e iludido - uma pessoa que é facilmente seduzida por palavras de ordem liberais, que mantem uma militancia muito sutil e despolitizada, que importa pautas futeis do coração da cultura americana, e que por isso deve dolorosamente, doa a quem doer, romper com o veu ilusório da representatividade. Esse jovem deve dar o salto qualitativo de meramente afirmar sua "identidade" para lidar de maneira radical e precisa nas diversas estruturas de opressão que desembocam na homofobia, mas que tem como fonte verdadeira o capitalismo. É um processo desconfortável, mas creio que todo militante comunista passa, em qualquer contexto social no qual está inserido. Contudo, esse rompimento violento, por exemplo, como apontei, não é esperado dos homens na luta feminista. A comunidade LGBT, em muito já alienada de qualquer companheirismo que não seja de seus pares, ainda é esperado um estoicismo que é, francamente, injusto.
Eu acho que as resoluções falam bastante das coisas das quais nós temos que nos livrar, e muito pouco do que aliados podem e devem fazer para nos acolher. Ser mulher e LGBT é muito assustador. As migalhas que recebemos às vezes são as únicas coisas que acreditamos poder pedir. Esses movimentos burgueses e liberais atraem essas minorias por um motivo, e o estereótipo torpe, injusto e imbecil de que o comunismo não liga para mulheres e gays é um deles. Eu, como mulher trans comunista, me senti menos acolhida e mais responsabilizada pela linguagem das teses. Da mesma forma que existe o estereótipo desse jovem gay, vapido e despolitizado, existe o estereótipo infeliz do comunista que ignora as "pautas de identidade" em detrimento das pautas "de classe" (que se manifestariam na forma de um trabalhador, operario, homem, heterossexual, branco e pai). Como uma mulher trans e comunista, sei que esse estereótipo é, na maior parte das vezes, um espantalho levantado contra comunistas que simplesmente querem complexificar as questões "minoritárias" com uma análise de classe. Mas ainda é um estereótipo que causa receio, confusão e, em última instância, desmobiliza um potencial militante de dar o passo além.
Termino esse texto com uma reflexão na forma de anedota: como uma mulher trans que está em comunidade com muitas outras pessoas trans (e pessoas não-heterossexuais num geral). Conheço pessoas mais velhas, mais novas, mais ricas, mais pobres, brasileiras e estrangeiras. Dentre todas essas pessoas diferentes, contudo, vejo às vezes uma excitação, uma duvida quando eu me digo abertamente comunista. Às vezes é simplesmente o fato de que não somos a maioria, um estranhamento de novidade; às vezes é só um reflexo da despolitização dessas pessoas, uma sensação de que é fútil se classificar politicamente ou ligar para essas coisas. Mas a maior parte das vezes, o estranhamento se dá através de meias verdades, espantalhos ou histórias infelizes do socialismo real - "a União Soviética não criminalizou a homossexualidade?", "a China não dizia que a homossexualidade era produto da decadencia burguesa?" "Che Guevara não matava gays por serem 'anti-revolucionários"', etc. Para além dessas perguntas, existe um sentimento: "você se sente acolhida dentro do Movimento Comunista?". Eu tento ser pragmática, dizer que todo movimento tem contradições mas que acredito que o capitalismo é a raiz dessa forma de opressão. Mas me pergunto o porque de quando essas pessoas pensarem em "movimento LGBTQ+ e Comunismo", ou "Feminismo e Comunismo", não pensarem em Huey Newton argumentando que os Panteras Negras devem aceitar os militantes do movimento gay e se opor veementemente contra qualquer homofobia no seio do partido; não pensam em Audre Lorde ou em Combahee River Collective; não pensam em Nina Simone ou James Baldwin; no Movimento Negro Unificado que, conforme Lelia Gonzales conta, discutia sobre questões da Homossexualidade no seio do partido.
É essa a tradição da qual abrimos mão em favor de uma difusa crítica ao "Liberalismo" e "Identitarismo" nos movimentos minoritários? Para apaziguar os supostos "aliados" ao invés de ativamente acolher essas comunidades? Pois se sim, dou o braço a torcer porque estranham algo que eles veem como uma contradição. Deixo aqui o pedido, então, para que não deixemos essas pessoas se sentirem sozinhas, ou como se não tivessem o direito de se colocar, questionar e afirmar no meio de seus colegas de militância ou em sua organização.