'O espaço kids e além dele: maternidade e trabalho de cuidado na militância' (Isadora Maria)
Falamos, muitas e muitas vezes, que tínhamos que dar condições concretas pras nossas militantes mães poderem militar. Mas nunca saía do pleno da abstração; hoje podemos olhar pra trás e ver que era, assim como inúmeras outras coisas, um problema nacional que tentávamos resolver localmente.
Por Isadora Maria para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Essa tribuna não se pretende a dar todas as respostas relativas ao trabalho de cuidado para es militantes das nossas fileiras, mas um ponto de partida para desenvolvermos uma política nacional concreta para militantes que exercem trabalho de cuidado.
Patinando na divisão do trabalho
Há algum tempo dentro do velho PCB vínhamos debatendo acerca da necessidade de cuidado com as crianças filhes des nosses camaradas e das condições que o trabalho de cuidado, em especial a maternidade, coloca para a militância - especialmente das mulheres. Entretanto, nunca conseguimos avançar para além de termos, esporadicamente, espaço kids em alguns eventos abertos. Em alguns (na verdade, ouso dizer na maioria) das células, nbs e cbs da organização, isso sequer era pautado; quando muito, em eventos grandes.
Pela experiência local, era extremamente difícil organizar o espaço kids, mesmo em eventos abertos; geralmente, mandávamos uma mensagem à todos os nbs/cbs da cidade, pedindo que es militantes se voluntariassem. Havia uma preocupação que não fossem apenas mulheres ficando no espaço kids dos eventos, então incentivamos (por meio do discurso, apenas) que militantes homens participassem ativamente. Em um evento político interno, discutimos muito a divisão sexual do trabalho e a necessidade de camaradas homens se colocarem pra tarefas de organização, operação e cuidado. No geral, conseguimos aumentar a frequência de espaços kids na maioria dos eventos, mas ainda predominantemente do CFCAM (e caso militantes do CFCAM não lembrassem, ninguém lembrava). As vezes as militantes do CFCAM tinham que explicar, timtim por timtim, todas as questões logísticas e operacionais pra montar um espaço kids.
Esbarramos em outras questões, como a necessidade de cuidar des filhes de camaradas mulheres para que estas pudessem participar de tarefas e reuniões; com militantes homens, até o momento, isso não aparecia muito, porque eles sempre tiveram as mães das crianças e outras redes de apoio para cuidar, o que não acontecia com as mulheres na maioria das vezes - mesmo quando era um casal de militantes, a impressão que ficava era que era uma mãe solo. Quando as militantes manifestaram essa necessidade, novamente mandávamos mensagens nos grupos pedindo pra militância; em alguns casos, desistimos, e aí era sempre uma militante mulher apoiando outra militante mulher a cuidar de uma criança - ficando com a criança pra ela participar de uma tarefa, buscando na escola, dormindo junto, etc.
Primeiro, tratamos como uma questão de cultura política: nossos militantes não fazem isso porque a divisão sexual do trabalho nos é ensinada desde muito cedo (como se a divisão sexual do trabalho fosse exclusivamente um fator ideológico). Falar e falar repetidas vezes sobre a importância de superar essa dinâmica não gerou um grande resultado concreto. Depois, tratamos (ou melhor, não tratamos) como uma questão que cada instância tinha que resolver: dar condição pra militante daquela instância militar e cuidar de uma criança. No geral, só nos isolamos em instâncias pequenas que obviamente nunca davam conta de fazer isso.
Falamos, muitas e muitas vezes, que tínhamos que dar condições concretas pras nossas militantes mães poderem militar. Mas nunca saía do pleno da abstração; hoje podemos olhar pra trás e ver que era, assim como inúmeras outras coisas, um problema nacional que tentávamos resolver localmente. Que era estrutural, da sociedade de classes, não tínhamos dúvida; mas não cogitamos exigir de uma instância nacional que nunca dava as caras para ter políticas nacionais diretivas sequer em temas como finanças e agit&prop, algo que seria tão além das necessidades políticas imediatas como cuidado de crianças e suporte para mães militantes.
A questão que se coloca, agora, é conseguir transformar a fraseologia vazia de “temos que dar condições” em uma política nacional com tarefas efetivas, construída e efetivada pelas bases, tratada com tanta seriedade e disciplina quanto formação e agit&prop. Muitas vezes, por não oferecermos suporte, não conseguimos manter militando na nossa organização homens brancos cisgênero. Conseguimos manter e desenvolver enquanto quadros mulheres pretas mães solo? Se a resposta for não, então não faremos a revolução no Brasil - e isso não é indagação, é um fato. O Brasil pode estar maduro para o socialismo, mas o Partido Comunista Brasileiro com certeza não está.
O espaço kids
Se apresentam algumas questões sobre o espaço kids. De início, pensamos que qualquer um e todes deveriam se engajar no cuidado de crianças, porque nenhuma mulher nasceu sabendo, portanto, homens devem aprender. Mas isso não é a mesma coisa que deixar uma tarefa no pleno autonomismo - quem quer, vai, e todo mundo tem que ir de forma individual. Em reunião de núcleo, uma militante mãe trouxe o alerta que é perigoso um espaço kids sem procedimentos de segurança, como por exemplo não deixar crianças sozinhas com um único adulto. Então, precisamos de soluções coletivas pra esse cuidado - que sejam coletivas de fato e disciplinadas. O que se faz num espaço kids com cada faixa etária? O que se faz em caso de acidentes? Como se realiza, integralmente, o trabalho de cuidado?
O espaço kids é um local temporário; sem ilusões que é através dele que alcançaremos a emancipação do trabalho reprodutivo. Mas sem esse minúsculo passo, os outros não acontecem e estaremos andando pra trás. Algumas contradições nós não vamos superar com um documento de elaboração política nacional, nem sequer com a ampliação do nosso trabalho entre as mulheres; de fato temos que ter noção das nossas limitações concretas. Mas não podemos deixar que essas limitações sejam as nossas desculpas para não atuar na realidade; elas devem ser o nosso ponto de estudo, de formulação, de ação para o que for possível superar dentro delas.
Para além dele
O que são as tais condições concretas de militância de quem é mãe? Para algumas, vai ser cuidar da criança para um momento de lazer, não só para tarefas, e isso tem que ser encarado também. Para outras, vai ser um apoio sistêmico de busca e financiamento de creche, de transporte, de trabalho - um apoio que construa a autonomia, não a dependência. No geral, o que existe de necessário é um senso de comunidade.
O senso de comunidade não é algo secundário na atuação comunista e diz tanto respeito à construção política quanto o espírito de corpo para estrutura organizativa leninista. Na prática, o senso de comunidade é um passo importante para a territorialização e massificação da nossa atuação enquanto comunistas. Se queremos organizar vilas e favelas ou mesmo manter trabalhadores e estudantes organizados em uma ocupação sindical ou estudantil ou em períodos de repressão, é de comunidade que estamos falando. Comunidade é um elemento político da vida comunista, não é transformar as instâncias em grupos despolitizados de eterna autoajuda e terapia. Comunidade é cuidado com as crianças - mas também é reconstrução de escolas, de teatros, de postos de saúde, são brigadas populares. Comunidade é ser reconhecido enquanto comunista em uma quebrada sem hostilidade. Comunidade é formar e projetar quadros que, sem essa comunidade, não seriam formados nem projetados, ou iriam passar longos períodos de sofrimento psíquico.
Pensar em comunidade é necessário; mas para nós, a comunidade é uma construção particular de uma organização política nacional. Assim, acredito que todos os nbs/células devem sistematizar acúmulos (teóricos e práticos) acerca de cuidado com crianças e da formação e projeção de quadros que são mães (ou que realizam outros trabalhos constantes de cuidado); acredito que isso deve nortear uma política nacional tanto para projeção desses quadros quanto de diretrizes efetivas de cuidado com crianças (no quesito de segurança, disponibilidade des camaradas, protocolos, etc) no espaço kids e para além dele. O que pensavam os Panteras Negras sobre comunidade e cuidado? O que pensam as populações quilombolas sobre comunidade e cuidado? O que pensam as populações indígenas sobre comunidade e cuidado?
E o que pensamos nós?