'O escudo do ‘tem contradições’ e a espada do ‘isso é idealismo’.' (Carlos P.)

Junto do escudo do tem suas contradições, os camaradas costumam brandir a espada do isso é idealismo toda vez que uma crítica é feita aos tais socialistas reais.

'O escudo do ‘tem contradições’ e a espada do ‘isso é idealismo’.' (Carlos P.)
"e um partido, por exemplo, adota posições homofóbicas, isto é porque a população de sua nação é também homofóbica, e tentar mudar isso “do dia para a noite” é idealismo."

Por Carlos P. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Muitas vezes, quando apontam-se as falhas de alguma das chamadas ditaduras do proletariado, os defensores do socialismo real armam-se com um já famoso escudo, que por ser abençoado por forças divinas desvia qualquer flecha e que consiste em dizer algo como: 

“Sim, essa nação tem as suas contradições, mas elas serão superadas pelo materialismo histórico, assim como aconteceu com a questão dos direitos da comunidade LGBT em Cuba. Nenhuma crítica deve ser feita sem levar em conta as condições materiais que levaram a essa situação.”

Os problemas nessa defesa são:

  1. Distorcer o materialismo histórico, lhe retirando o caráter de método crítico em favor do de divindade defensora do “nosso campo”. 
  2. Habilitar, em última instância, qualquer posição, por mais reacionária que seja, desde que haja uma foice e um martelo na camisa do reacionário, acompanhada - por parte do espectador de tal posição - de uma fé cega nas supostas capacidades de transformação automáticas da luta de classes que no momento certo, depois de nossas provações, se tivermos muita fé, transformarão tais Estados capitalistas em comunismo.

De tal rebaixamento resultam comemorações frente os mais básicos avanços, muitos dos quais já existem em países do centro do capitalismo, mas que aparecem como grandes novidades para os comunistas que, ao que parece, precisam de uma âncora nas areias do século XX para não se perderem na deriva da desesperança e do realismo capitalista, mesmo que essa areia não seja nada além de uma bandeira (de um partido ou de uma nação), mesmo que o socialismo que tal bandeira represente já tenha sido revisado de volta ao capitalismo, isso se algum dia tiver existido.

Junto do escudo do tem suas contradições, os camaradas costumam brandir a espada do isso é idealismo toda vez que uma crítica é feita aos tais socialistas reais. Se um partido, por exemplo, adota posições homofóbicas, isto é porque a população de sua nação é também homofóbica, e tentar mudar isso “do dia para a noite” é idealismo. Afinal, com muita fé nos fatores subjetivos da luta de classes os elementos reacionários serão superados automaticamente durante o processo revolucionário. Outro exemplo: se uma nação como a China possui uma numerosa burguesia para quem os trabalhadores produzem mais-valor, onde as tentativas de organização dos trabalhadores é respondida com repressão, isto é porque as condições materiais a impuseram tal destino, e isto não é passível de crítica radical (no máximo de indignação), pois se os governantes portam a foice e o martelo a análise deles é necessariamente marxista; e, afinal, a burguesia não possui poder político.

É importante notar, no parágrafo anterior, que a separação mecânica entre prática da luta de classes e teoria revolucionária, no primeiro exemplo, e entre poder político e poder econômico no segundo, não são consideradas idealismo, mas expressões fundamentadas na teoria marxista.

Em oposição à crítica radical, à transformação do mundo, os críticos reformistas apresentam sua boa vontade indignada, em cujo interior está sempre alojada a tolerância com o estado atual das coisas. Para os empunhadores desta espada e escudo, apenas aquilo que é ou que já foi é o verdadeiro socialismo, e qualquer investida pelo avanço das teses fundamentais do programa comunista (o fim do Estado, a abolição da família) é, por não ter ainda acontecido, uma previsão idealista, não importando quantos parágrafos de Marx o tal idealista use para sustentar sua tese. 

Vejamos o que Lenin tem a dizer sobre as deduções de Marx sobre a sociedade socialista:

“Marx deduziu de toda a história do socialismo e da luta política que o Estado deverá desaparecer e que a forma transitória do seu desaparecimento (passagem do Estado para o não-Estado) será «o proletariado organizado como classe dominante». Mas Marx não se propunha descobrir as formas políticas deste futuro. [...]

E quando o movimento revolucionário de massas do proletariado eclodiu, Marx, apesar do fracasso deste movimento, apesar da sua curta duração e da sua fraqueza evidente, entregou-se ao estudo das formas que ele tinha descoberto. 

A Comuna é a forma, «finalmente descoberta» pela revolução proletária, na qual se pode realizar a libertação econômica do trabalho. 

A Comuna é a primeira tentativa da revolução proletária para quebrar a máquina de Estado burguesa e a forma política «finalmente descoberta» pela qual se pode e se deve substituir o que foi quebrado.” (P. 30, 31) [1]

E que descrição Marx faz da forma política que, na Comuna de Paris, apareceu enquanto substituta do Estado burguês? Vejamos em A Guerra Civil na França:

“E se Paris pôde resistir foi unicamente porque, em consequência do assédio, desfizera o exército, substituindo-o por uma Guarda Nacional, cujo principal contingente era formado pelos operários. Trata-se agora de transformar esse fato numa instituição duradoura. Por isso, o primeiro decreto da Comuna foi no sentido de suprimir o exército permanente e substituí-lo pelo povo armado. [...]

Uma vez suprimidos o exército permanente e a polícia, que eram os elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava impaciente por destruir a força espiritual de repressão, o ‘poder dos padres’, decretando a separação da Igreja do Estado e a expropriação de todas as Igrejas como corporações possuidoras. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida privada, a viver dos óbulos dos fiéis, como seus antecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado. Assim, não somente se punha o ensino ao alcance de todos, mas a própria ciência se redimia dos entraves criados pelos preconceitos de classe e o poder do governo.” [2]

Seriam então Marx e Lenin idealistas por, baseando-se na análise histórica dos eventos que transcorreram na França em 1871, deduzir a forma política que irá superar o capitalismo?

Não. A ideia de que o comunismo é apenas uma abstração da qual só conhecemos o nome é falsa, e campo propício para o cultivo de oportunismo social-democrata. Sabemos, acima de tudo, o que queremos superar, as montanhas que temos de transpor, as muralhas que temos de derrubar. Sabemos que esses obstáculos não são insuperáveis pois conhecemos suas origens históricas. O que nos resta é não nos deixar enganar pelas seduções da suficiência, a ideia de que, talvez, parar no caminho e ocupar a muralha, ao invés de a demolir e avançar, seja o máximo que conseguiremos. 

Seríamos então nós, que não consideramos o socialismo real como socialismo de fato, idealistas por não aceitarmos as atualizações e retificações ao termo ‘socialismo’ e consequentemente ao seu programa? 

Não, pois o marxismo é invariante. Da mesma forma que “não existe progresso gradual e contínuo da história (especialmente) no que diz respeito à organização das forças produtivas, mas sim uma série de longos saltos adiantes que revolucionaram profundamente o aparato socioeconômico por inteiro”, também a doutrina da classe cuja missão histórica é trazer tais mudanças não progride gradualmente, não se atualiza conforme o resultado de seus conflitos, mas à  “representa, em forma monolítica e firme, no curso de uma série de lutas e conflitos até o próximo estágio crítico é atingido, até a próxima revolução histórica.” [3]

Não sejamos, camaradas, tolerantes com o estado atual das coisas de algumas nações capitalistas simplesmente por terem uma bandeira vermelha, ou críticos somente ao capitalismo que assim se auto-declara. 

O crítico marxista deve, nas condições atuais de nosso movimento, combater toda e qualquer linha política que tenha o que se conveio a chamar “socialismo real” como objetivo final, seja esse socialismo simbolizado por trens de última geração, alojamento gratuito para trabalhadores alienados, ou por desenvolvimento (ao invés de abolição) da economia e de seu domínio sob as relações sociais.

Portanto, nos elementos propositivos desta tribuna, deixo o seguinte:

  • Que zarpemos das margens do século XX, deixando de nos imaginarmos “como as reencarnações dos Bolcheviques, de Fidel, Che e seu exército revolucionário, dos Vietcongues, de Ho Chi Min, de Mao, até de Marighella.” como bem coloca a camarada Bérnie em sua tribuna 'Chega de Cosplays de Bolcheviques!' [4], deixando também de amarrarmos nossas esperanças a essas experiências dissolvidas ou revisionistas, colocando-as ao invés disso na invariância da doutrina marxista e em nossa capacidade de construir o movimento real.
  • Que deixemos, junto a isso, de gastar esforços propagandísticos na defesa de tais experiências frente aos ataques burgueses e pequeno-burgueses que as igualam ao socialismo. 
  • Que combatamos a dicotomia entre o pensar e o agir, implícita no chamado pelo “debate pragmático/do aqui-agora” em oposição ao “grande debate teórico”, pois a conclusão de tal dicotomia é de que a investigação teórica invalidaria a prática do partido, ou seja, de que a prática deve ser irrefletida [5]. Da prática irrefletida resulta, por exemplo, a linha política - e de nossa parte o apoio - do KKE, um partido com inserção mas que nega o marxismo com posicionamentos extremamente reacionários.  
  • Que incluamos nas nossas prioridades, junto das diversas lutas da classe trabalhadora em que tentamos nos inserir, a luta pela educação da vanguarda, de combate às tentativas de atualização do marxismo e às tentativas de disfarce de novas configurações do capitalismo como forças anticapitalistas, como é feito com o capitalismo Chinês. 
  • Que o materialismo dialético não seja mais distorcido para a defesa das condições materiais, independente de quais sejam, mas manejado, como uma lança afiadíssima, para seu propósito original e verdadeiro: a crítica de tais condições.