'O diálogo surdo: Reflexões sobre a necessidade de um paradigma marxista para o PCB-RR' (Antonio FO)

Ao analisar a estrutura teórica, tanto do PCB quanto de nosso partido, fica evidente a inexistência de um paradigma compartilhado. Devido a diferenças na interpretação de textos de Lenin e Marx, e à adoção de diversos pensadores surgem compreensões radicalmente diferentes da teoria e sua aplicação.

'O diálogo surdo:  Reflexões sobre a necessidade de um paradigma marxista para o PCB-RR' (Antonio FO)
"Dois exemplos presentes no movimento são as discordâncias quanto ao papel histórico tanto de Stalin quanto de Trotsky. Elas se baseiam em diferenças fundamentais da concepção do que seria uma evidência aplicável. Pode-se também pensar no próprio conceito de “marxismo-leninismo”, que claramente é interpretado de maneira diferente entre os dois lados da cisão ocorrida no partido."

Por Antonio FO para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Este ensaio propõe uma estrutura teórico-metodológica para o PCB-RR baseada em noções apresentadas por Thomas Kuhn em seu livro “A estrutura das revoluções cíentificas”, publicado em 1962.

Primeiramente, ele introduzirá a versão adaptada do conceito de Kuhn[1] e por meio dela analisa algumas das dificuldades enfrentadas pelo partido durante o racha e pelo MCI (Movimento Comunista Internacional) ao longo de sua história.

A seguir,  detalha uma proposta teórico-metodológica mais similar ao centralismo teórico, e discute os benefícios de sua aplicação no Partido. 

1.0: Quem foi Thomas Kuhn e qual a definição de paradigma usada neste ensaio.

Thomas Kuhn foi um historiador da ciência e professor universitário, nascido nos Estados Unidos em 1922.Seu trabalho na historiografia da ciência surge de um interesse pela dinâmica da construção do conhecimento na área que estudava, a física. Sua principal inovação foi a construção de uma teoria da ciência, focada nos conceitos de ciência normal e revoluções científicas.

A ciência normal seria aquela que opera dentro de outro conceito chave do trabalho de Kuhn, o paradigma. Este conceito pode ser definido como uma base teórica para o entendimento específico da área estudada pela ciência, estabelecendo as características chaves dos fenômenos e fundando os alicerces das futuras compreensões desta ciência.

Além disso, do paradigma se deriva uma gama do que se pode chamar de “soluções adequadas” para os problemas científicos da época, pois dentro da operação da ciência normal, a solução de um cientista não só deve fazer sentido interno, mas também se encaixar ao modelo proposto pelo paradigma .

 É comum a comparação dos paradigmas com a imagem na capa de uma caixa de quebra cabeças, afinal ela contém os contornos do assunto, mas resta aos cientistas entenderem como cada elemento se encaixa. Além de precisar os elementos já criados, a comunidade científica também deve adaptar a teoria para diversas situações, entender suas consequências diretas e indiretas e outras tarefas que ocupam grande parte de seu tempo.

Do paradigma também derivam  um conjunto de simplificações, formulações e mesmo o que é aceito como evidência, que serve como normas de ação para simplificar o trabalho dos cientista.

Logo, para Kuhn a ciência normal é aquela que opera dentro dos moldes do paradigma.

Este paradigma é quebrado no momento da crise científica, quando a estrutura oferecida por ele não consegue mais fornecer respostas para alguma questão que se torna, por razões internas ou externas à ciência, essencial de ser resolvida.

Instaura-se o momento da revolução científica, onde os defensores do antigo paradigma e os do novo disputam pelo pensamento da comunidade científica. Quando o novo paradigma emerge vitorioso, ou seja, a crise foi grande o suficiente para instaurar uma nova maneira de pensar, a ciência passará a operar dentro dele, até que uma nova crise se instaure.

Também deve-se notar a existência de uma fase pré paradigmática das ciências. Nesta fase, diversas escolas com seus respectivos paradigmas disputam entre si o espaço central na ciência. Isso ocorre tanto em ciências exatas em suas primeiras fases, quanto em ciências humanas até os dias de hoje. 

A dificuldade que emerge daí, é que, ao escrever um novo trabalho o pesquisador das ciências humanas tem a necessidade de esclarecer a interpretação de todos os conceitos base, justificá-la, e apenas após isso pode começar seu trabalho. 

Além disso, é dificultada a continuidade de trabalhos, pois diversas escolas atuam para resolver o mesmo problema, fragmentando o esforço. 

Não existe a possibilidade da unificação paradigmática nas ciências humanas, pelo menos neste momento, afinal é pouco provável que se encontre uma solução que agrade simultaneamente  economistas marxistas e liberais, filósofos aristotélicos e adornianos, etc.

2.0:-O diálogo surdo:

Ao analisar a estrutura teórica, tanto do PCB quanto  de nosso partido, fica evidente a inexistência de um paradigma compartilhado. Devido a diferenças na interpretação de textos de Lenin e Marx, e à adoção de diversos pensadores por diversas parcelas do movimento, surgem compreensões radicalmente diferentes da teoria comunista e sua aplicação.

Essa falta de método fica mais evidente pelo que Kuhn cunhou por diálogos surdos, situações onde escolas com pensamentos estruturalmente diferentes, tanto sobre o que cada conceito significa quanto sobre o que é uma evidência aceitável, tentam provar, entre elas, a validade de suas teorias. 

Nesses diálogos, a possibilidade de um consenso é altamente improvável, afinal, se cada um tem uma concepção de termos chave e evidências, sequer pode haver um entendimento, muito menos um consenso.

Dois exemplos presentes no movimento são as discordâncias quanto ao papel histórico tanto de Stalin quanto de Trotsky. Elas se baseiam em diferenças fundamentais da concepção  do que seria uma evidência aplicável. Pode-se também pensar no próprio conceito de “marxismo-leninismo”, que claramente é interpretado de maneira diferente entre os dois lados da cisão ocorrida no partido.

3.0- A proposta de uma teoria centralizada

Para Kuhn, um aspecto central da natureza eficiente da ciência normal é seu funcionamento por “quebra cabeça”. Enquanto o paradigma fornece o quadro geral para a interpretação da área específica, o trabalho dos cientistas é mais precisar, interpretar e adaptar o paradigma do que se pôr a inventar novas interpretações de mundo.

É necessário aplicar dentro do novo Partido um paradigma menos amplo que a ideia de marxismo-leninismo, sujeita a interpretações muito diversas.

Esse grande bloco teórico deveria compreender ao menos os movimentos gerais do capitalismo global, continental e brasileiro, por meio não só de uma literatura, mas também uma interpretação comum das obras dos autores selecionados.

Diferentemente da ciência normal, que visa apenas o encaixe no quebra cabeça, o paradigma do Partido deve ter como principal objetivo o avanço da prática revolucionária dentro dos moldes definidos pelo mesmo. 

Logo, a prática avançaria considerando o quadro teórico fornecido pelo paradigma. Não apenas isso, seria dever de cada núcleo fornecer interpretações de suas realidades. Mas também realizadas no molde teórico-metodológico definido pelo paradigma.

O trabalho de cada militante, núcleo e coordenação seria imensamente facilitado. Pois, com a base teórica bem estabelecida, só seria necessário articular um entendimento de como a realidade pode ser interpretada pela teoria.

Um paradigma comum permitiria ainda uma base de diálogo para todes es militantes, facilitaria o progresso teórico e a comunicação entre núcleos e, preveniria as infindáveis discussões quanto a interpretações específicas de um texto, ou mesmo sobre quais autores são aceitos para constituição da teoria.

3.1-Polêmica organizada e evidências aceitas

Dessa teoria deve derivar não apenas uma interpretação de mundo, mas que ferramentas são aceitas para esta interpretação. Isso implica uma interpretação do processo de análise histórico que permita o entendimento do que seria uma fonte legítima, e como objetivamente interpretá-la dentro de suas condições materiais.

Durante o período que se operar dentro da série de formalizações do paradigma, a polêmica pública também deve operar dentro de sua estrutura, discutindo dentro da interpretação proposta, e não trazendo novos ângulos de vista para a estrutura já definida. Se cada membro do partido interpretar o mundo de uma forma, sem um método definido, qualquer discussão fica exageradamente extensa. 

3.2- Em relação ao manifesto do PCB-RR

Este texto amplia ainda mais o conceito de evolução teórica em termos positivos colocado no manifesto do PCB-RR: “Forjar dialeticamente, por meio de uma “literatura” comum, a unidade ideológica partidária.” Sua sugestão é a formalização das interpretações da literatura e inclusão destas na própria estrutura de ação do partido. 

Um exemplo da utilidade se encontra no uso do termo “ideológico”  no trecho acima, afinal, para alguns marxistas ideologia é uma maneira de pensamento imposta pelas classes dominantes, e por consequência, que vai contra os interesses da classe trabalhadora.

Logo, para dois camaradas com fundos de estudo um pouco diferentes, o uso do termo poderia mudar completamente o entendimento da frase; 

3.3- Centralismo de método

O “centralismo de método” aqui proposto não significa que o Partido não deve aceitar camaradas com interpretações diferentes da realidade, ou mesmo que discordem da estrutura teórica implantada, afinal quanto mais centralidade, mais discordâncias. Apenas que dentro da estrutura partidária todos os camaradas devem operar utilizando este método. 

4.0-Revoluções científicas e a mudança no método.

No livro de Kuhn, revoluções científicas são a maneira pela qual uma ciência muda de paradigma. São um movimento natural da ciência, que é iniciado com a consciência da existência de um problema que não pode ser resolvido pelos métodos da ciência normal. Mais importante que isso, este problema deve, por motivos internos ou externos, ser de importância fundamental para o bom andamento do progresso científico. Quando isso ocorre, a ciência divide-se em frações, daqueles a favor de uma das novas teorias que surgem, e os que desejam manter a teoria antiga.

É impossível simular uma revolução científica com a organicidade posta no processo científico, não é claro nem se isto seria desejável, mas o conceito central, o de um problema que não pode ser resolvido e que, por meio de uma nova concepção proposta passa a ser visto de um novo ângulo, pode permanecer. Neste caso, a troca do paradigma teria de ser votada em congresso. 

5.0-Alguns benefícios da implantação do sistema proposto:

Ao pensar nos benefícios proporcionados pela implantação do que pode ser chamado de “centralismo teórico-metodológico”[2] imediatamente vem à mente a maior facilidade com a qual poderia ocorrer a comunicação entre vozes dissidentes no partido. 

Afinal, no momento em que os interlocutores e os ouvintes partissem todos de um mesmo pressuposto, cada argumento poderia ser muito melhor articulado, e a discussão seria decidida pela maneira que cada tese se alinharia com a base teórica previamente definida e também articularia as evidências aceitas. 

Além disso, o novo partido se iniciaria de maneira muito mais propositiva e positiva do que o velho, ainda no espírito de diálogo das tribunas de debate, a pergunta feita seria “O que pode-se concordar sobre os assuntos definidos como importantes”. A partir desse consenso iniciaria-se a construção de uma nova base teórica. 

Uma base de entendimento comum também possibilitaria a realização de análises muito mais rapidamente, sem a necessidade de cada núcleo aplicar uma base comum de construção para o entendimento geral do capitalismo.

Isso pode parecer limitante, mas é importante lembrar que o paradigma não seria definido por uma elite academicista mas construído conjuntamente pelos membros do partido[3]. E, uma teoria-metodologia de análise da realidade interna conjunta, que possibilita que todos consigam se comunicar claramente, se apresenta como um passo importante na missão de construir um partido mais democrático.


[1]  É importante lembrar que o ensaio é baseado no trabalho de Kuhn, mas não o representa em sua integridade. A explicação da noção de paradigma neste ensaio exclui todos os meandros detalhados pelo historiador, além de excluir elementos do pensamento do autor que embora relevantes para a descrição da prática científica, não teriam utilidade ou seriam contraproducentes na proposta aqui delimitada.

[2]  Não me refiro apenas ao centralismo na teoria, mas também no método de análise da realidade dela derivado.

[3] Mais uma diferença chave entre a concepção de Kuhn do progresso científico e a proposta para o Partido. Pois as teorias científicas que se transformam em paradigmas muito bem podem ser realizadas por um único indivíduo.