O Desenvolvimento leninista do marxismo
O que é inaceitável é que, sob o pretexto do combate ao burocratismo e ao mecanicismo filosófico de Stálin, se reduza o leninismo a uma teoria organizativa. Sob um tal entendimento, estaríamos fazendo andar para trás o estado de nossa teoria coletiva, em vez de fazê-la avançar [...].
Gabriel Landi Fazzio
Publicado em Lavrapalavra em 16 de Janeiro de 2023
Transcrito a partir de lavrapalavra.com
“Fazer um paralelo entre Marx e Ilitch [Lenin] para se chegar a uma hierarquia é tolo e ocioso. […] O cristianismo poderia chamar-se, historicamente, cristianismo-paulinismo, e seria a expressão mais exata.” (Gramsci, Cadernos do Cárcere).
Em meio ao marxistas, uma polêmica surge com alguma frequência: uma questão que opõe, de um lado, os defensores do “marxismo-leninismo” como expressão que sintetiza a teoria revolucionária contemporânea; e, de outro lado, aqueles que acusam essa terminologia de “dogmática”, “manualesca” (para não dizer “stalinista”), apresentando como alternativa formulações que caminham no sentido de: “marxismo e leninismo”, “marxismo + teoria organizativa leninista” etc.
Essa polêmica sequer mereceria atenção, não fossem os problemas práticos e teóricos que emergem dela, perigando disseminar uma série de compreensões equivocadas a militância comunista. Nesse sentido, há dois graves problemas teóricos que atravessam as formulações “anti-hífen”. Em primeiro lugar, essa defesa vem associada a uma historiografia bastante rasa do termo, estabelecendo uma afinidade exclusiva entre o “marxismo-leninismo” e o “stalinismo” – como é geralmente identificada, em termos amplos e imprecisos, uma determinada postura teórica diante das experiências socialistas do século passado. Em segundo lugar, e ainda mais preocupante, observamos nessas formulações uma apreciação limitada e precária do significado do leninismo para a teoria marxista, como mera “teoria da organização”. Vejamos.
As origens do marxismo-leninismo
Tornou-se lugar-comum atribuir a Stálin a formulação original do termo “marxismo-leninismo” – um termo, é verdade, amplamente difundido pela literatura soviética. Mas basta que façamos uma pesquisa rápida para que surjam dúvidas sobre a “paternidade” desta expressão.
Quando, em 1924, Stálin publicou seu Fundamentos do leninismo, a denominação composta, com o hífen, não figurou uma vez sequer. Em seu Trotskismo ou leninismo, do mesmo ano, não encontramos nem sinal da expressão. O mesmo ocorre (ou melhor, não ocorre) com sua obra posterior, de 1926, Em torno dos problemas do leninismo.
Em 1922, dois anos antes da morte de Lênin, a própria juventude comunista (Komsomol) já modificara seu nome oficial para “Liga Comunista Leninista da Juventude de Toda a União”. Quando, em 24, Lênin morre, o termo leninismo se generaliza nos escritos comunistas, não só nos de Stálin. Ainda em 1924, August Thalheimer fazia uso da denominação[1] ,bem como Kamenev[2], Bukhárin[3], Pachukanis[4] e Lukács[5]. Em 1925, Zinoviev escreve sua Introdução ao estudo do leninismo. Em 1926 é a vez de Kalinin. Preobrajenski também faz uso da fórmula, ao longo das polêmicas de 1927[6]. Trótski passa a se utilizar desta expressão progressivamente: após sua expulsão da URSS, em 1927, passa a denominar o grupo internacional da Oposição de Esquerda (já chamada por vezes de Oposição Leninista), que daria origem à IV Internacional, como “fração Bolchevique-Leninista”. Em 1930, redige o prefácio ao panfleto Leninismo versus stalinismo, preparado pelo alemão Oskar Fischer.
De fato, era comum acordo entre os bolcheviques que o leninismo era a mais precisa designação do marxismo revolucionário, em oposição às tendências revisionistas e reformistas que reivindicavam e dilaceravam o legado do socialismo científico de Marx e Engels.
Quando, então, o “marxismo-leninismo” passou a ser utilizado?[7]
Com efeito, é bastante difícil encontrar nos textos disponíveis de Stálin (nos acervos virtuais em português e inglês) a sua primeira menção ao termo. Em um artigo de 1928 (“Industrialização do país e o desvio de direita no PCUS(B)”)[8], o velho bolchevique faz menção, aparentemente pela primeira vez, ao “marxismo-leninismo”. Ainda assim, salta aos olhos que a expressão aparece poucas vezes em sua obra – Stálin se valia, no mais das vezes, simplesmente da designação “leninismo”, em favor da qual sua inclinação é evidenciada pelo uso sistemático.
Mas, a essa época, é perceptível que o “marxismo-leninismo” já circulava amplamente. Em 1925, Antonio Gramsci já se utiliza por diversas vezes dessa denominação composta[9]. Em 1926, o termo figura talvez pela primeira vez em território brasileiro, no título do livro do comunista Octávio Brandão: Agrarismo e industrialismo – ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil. Em 1929, em Sobre a Eliminação das Concepções Erradas no Seio do Partido, vemos Mao Tsé-Tung valer-se da expressão pela primeira vez. Em 1932, a Editorial “Soviet”, do Rio de Janeiro, publica em nosso país o panfleto A Luta pelo Marxismo-Leninismo na América Latina.
Parece bastante duvidoso, portanto, crer que Stálin, que tanto tardou a se valer dessa expressão, seja o principal responsável por sua difusão – ainda que, é verdade, tenha tentado em 1938 marcar decisivamente o significado da fórmula através de seu artigo Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico (reivindicado por intelectuais do calibre de Althusser, na medida em que compartilha com Stálin uma visão que separa rigidamente filosofia e ciência – separação que, a meu ver, simplifica demasiadamente o problema de uma teoria do conhecimento marxista, como veremos no momento oportuno).
Mas, ainda que Stálin tivesse sido efetivamente o primeiro a se referir a um “marxismo-leninismo”, isso significaria que não existe marxismo-leninismo que não se confunda com Stálin e com seus erros teóricos e políticos? Se fôssemos seguir essa linha de raciocínio, o próprio leninismo, tendo sido uma denominação definida e sistematizada pela primeira vez por Koba, estaria “marcado pelo burocratismo” ou qualquer coisa do tipo. Nem mesmo Trótski, contudo, colocava nestes marcos a questão, travando uma intensa disputa com Stálin em torno do legado do leninismo.
É notório que, desde a cisão internacional da tendência maoísta, o termo “marxismo-leninismo” passou a ser disputado entre estes e a direção revisionista do PCUS; entre esquerdistas e revisionistas. Isso, por si só, deveria ser suficiente para demonstrar que tal denominação não pode ser concebida de modo unívoco. Mas não apenas: até mesmo alguns trotskistas chegaram, por diversas vezes, a fazer uso da expressão. Alguns exemplos:
“Para os trotskistas, incorporar em sua estratégia o revisionismo sobre a liderança proletária na revolução é uma profunda negação do marxismo-leninismo, independentemente do pio desejo que possa ser expresso simultaneamente em favor da ‘construção de partidos marxistas revolucionários nos países coloniais’.”[10]
“Mais importante ainda, o marxismo-leninismo não permaneceu uma mera teoria, um conjunto de fórmulas e estudos confinados às prateleiras das bibliotecas. Ajudou a dirigir a revolução de outubro, a estabelecer um estado pós-capitalista e a defender com êxito essa revolução e o estado operário contra um mar de inimigos. Este continua sendo um exemplo imperecível da verificação da teoria pela prática real.”[11]
“Você aceita esta oferta? Duvido, porque, apesar de todas as referências demagógicas ao ‘marxismo-leninismo’, nossos críticos stalinistas estão, no fundo, bastante conscientes de que o stalinismo e o bolchevique-leninismo são mutuamente contraditórios e bastante incompatíveis.”[12]
Portanto, torna-se evidente que, embora parte dos trotskistas rechace a “fórmula do hífen” como sendo “congenitamente stalinista”, há também uma série de outros que a reivindicam, acusando os stalinistas de serem “marxistas-leninistas demagógicos”, ou seja, insuficiente e falsamente marxistas-leninistas, etc.
Outras organizações revolucionárias insuspeitas de “stalinismo” também utilizaram o termo ao longo de suas trajetórias. É o caso da POLOP brasileira que, em documento público de 1963, fazia referência ao “instrumento teórico fundamental para essa revolução, que é o marxismo-leninismo”[13]. Também Huey Newton, dirigente do Partido dos Panteras Negras, afirmava, em 1970, em uma conferência no Boston College, que sua organização era “um partido marxista-leninista porque nós seguimos o método dialético e também integramos teoria e prática”.
Em suma: reduzir o marxismo-leninismo a uma fórmula de extração stalinista é uma falácia não apenas em termos historiográficos, mas políticos. Ainda que Stálin e outros teóricos soviéticos tenham, após os anos 30, difundindo uma série de posições anti-leninistas sob esta bandeira, também é verdade que o mesmo foi feito com inúmeras outras fórmulas de nossa teoria revolucionária: socialismo, imperialismo, pequena burguesia, proletariado, materialismo dialético, materialismo histórico, centralismo democrático, etc. Quem deseja renegar uma denominação apenas por conta de um mau uso seu poderia muito bem ser levado também, sob a pressão da ampla maré revisionista, a abandonar o próprio termo marxismo, em nome do qual um sem número de vulgaridades já foram escritas…
Não: a questão não pode ser limitada a uma “história das ideias” (ainda mais uma tão pouco fundamentada), mas deve responder à própria pertinência ou não do termo “marxismo-leninismo” no próprio terreno da teoria.
O leninismo como marxismo verdadeiro
“No mesmo sentido em que Lênin confessou ser um marxista ortodoxo, confessamos nossa fé no leninismo; no sentido da teoria revolucionária viva, não no sentido da letra morta. O leninismo tornou-se a palavra de ordem e o apelo dos nossos camaradas no Partido Russo. Por essa razão, toda a Internacional Comunista marcha sob a bandeira do leninismo.
Que estejamos sempre conscientes da verdade de que o leninismo, como o marxismo, é essencialmente um método criativo vivo que combina a maior ousadia revolucionária com a análise realista mais apurada.” (August Thalheimer, em Lênin como teórico)[14]
Seria o leninismo, como desenvolvimento consequente do marxismo, apenas uma teoria da organização ou, como dirão alguns, uma prática política, apenas “concretizando” o marxismo? É verdade que a defesa do partido de revolucionários profissionais, organizados sob o centralismo democrático, é a dimensão mais conhecida e valorizada do leninismo. Mas essa definição seria absolutamente insuficiente.
Em 1924, em seu Fundamentos do Leninismo, Stálin oferecia uma explicação muito mais satisfatória.
“O leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária, ou mais exatamente: o leninismo é a teoria e a tática da revolução proletária em geral e a teoria e a tática da ditadura do proletariado em particular.”
Além de definir o leninismo em oposição ao “marxismo” reformista, a formulação de Stálin ilumina um aspecto fundamental do desenvolvimento leninista do marxismo: a complementação da teoria de Marx e Engels em conformidade com as novas formas monopolista-imperialistas do modo de produção capitalista. Este ponto sequer mereceria maiores defesas, tendo sido amplamente abordado pela literatura leninista.
Mas o primeiro ponto, ainda que aparentemente óbvio, merece atenção detida. Lênin, ao longo de toda a sua trajetória publicística, lutou teoricamente em favor daquilo que julgava ser (e, ao meu ver, com precisão) o verdadeiro marxismo. Em uma época em que proliferavam as revisões neo-kantianas e democráticas de Marx, bem como o garimpo de citações a fim de justificar todo tipo de reboquismo frente à burguesia e conformismo mecânico, Ilitch marchou na contramão desta tendência. Estudou minuciosamente os escritos de Marx e Engels – não apenas suas obras publicadas, mas também uma infinidade de cartas, de grande importância para a compreensão das opiniões de Marx e Engels em matéria de organização, tática e, ademais, da relação entre o “novo materialismo” e as ciências naturais, etc. – a fim de apreender com a maior precisão o seu método e seus ensinamentos[15]. Assim, Lênin combinava a ortodoxia metodológica à aplicação criadora. Para ele, o marxismo consequente era, como afirmou inúmeras vezes, um guia para a ação revolucionária, em constante desenvolvimento sobre a base de princípios filosóficos, econômicos e políticos cientificamente definidos.
De 1893 a 1899, Lênin combateu, em uma série de artigos e brochuras, as críticas aos espantalhos anti-marxistas levantados pelos radicais burgueses russos – os populistas narodnik e os liberais do chamado “marxismo legal”. Mas, a partir de 1899 (principalmente a partir de sua resenha do livro de Kautsky sobre Bernstein, “Bernstein und das sozialdemokratische Programm. Eine Antikritik”[16]), Lênin empreendeu também um intenso combate ao “marxismo vulgar” – ou, como o designaria mais tarde, ao revisionismo.
Isso é evidenciado em uma série de obras suas. Em Que fazer?, Lênin não poupa de críticas o marxismo vulgar no geral e sua variante russa predominante, o economicismo, em particular. “A política sindical da classe operária é precisamente a política burguesa da classe operária”, afirma nesta ocasião, para o escândalo daqueles que tomavam por marxismo diversas concepções liberais da luta de classes.[17]
Em O Estado e a Revolução esse trabalho de “resgate do marxismo verdadeiro” é ainda mais evidente. Também sua obra filosófica, Materialismo e Empirocriticismo opera esse mesmo movimento teórico.
Mas há três artigos de Lênin que são, em especial, representativos da luta do bolchevique pela verdade revolucionária do marxismo: Marxismo e Revisionismo, de 1908[18]; As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo, de 1913[19] e Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo), de 1914[20].
Nestes textos, com progressiva riqueza de detalhes, Lênin busca compreender quais as teses irrenunciáveis do marxismo: no campo da filosofia, o materialismo, a dialética (e, decorrente desses dois, a chamada teoria do reflexo, tão superficialmente compreendida por seus detratores tanto quanto por seus defensores) e a concepção da história humana como história da luta de classes; na economia, a teoria do valor e, por conseguinte, a descoberta da mais-valia (e, associada a isto, a descoberta de uma série de categorias da economia política como o capital constante, o capital variável, uma particular teoria da renda da terra, etc.); e, na política, não apenas a tática da luta de classes do proletariado (em oposição aos socialismos utópicos ou reformadores), como a concepção do socialismo como tendência histórica objetiva, lançada pela contradição entre a socialização da produção e a acumulação privada – contradição resolvida, na política, pela ditadura do proletariado, como ponto de partida para sua solução econômica efetiva. Eis, segundo Lênin, as verdades fundamentais do marxismo.
É nesse sentido que Lukács pode afirmar, em 1924, a unidade do pensamento de Lênin e, ademais, sua condição de desenvolvimento consequente do marxismo:
“É plenamente justificado falar do leninismo como uma nova fase na evolução do materialismo dialético. Lênin não apenas recuperou a pureza da teoria marxiana após décadas de simplificação e desfiguração promovidas pelo marxismo vulgar, como também aperfeiçoou esse método, tornando-o mais concreto e mais maduro.”[21]
Irredutível a uma mera teoria da organização, o leninismo é o resgate da essência do marxismo, posto em movimento para responder aos novos problemas que o desenvolvimento capitalista e as lutas de classes punham na ordem do dia. Não apenas é plenamente coerente com o método e a teoria de Marx, como é seu desenvolvimento necessário e consequente. Portanto, como Gramsci, considero ociosa e tola qualquer hierarquização entre Marx e Lênin, tão ao gosto dos críticos deste último , que vem em Ilitch um “intelectual menor”, um mero homem de ação, etc. Ou, como Stálin coloca a questão:
“Antes de tudo, uma breve observação sobre o marxismo e o leninismo. Tal formulação da questão pode levar a pensar que o marxismo é uma coisa e o leninismo outra, que se pode ser leninista sem ser marxista. Tal ideia não pode ser considerada correta. Leninismo não são os ensinamentos de Lênin menos o marxismo. O leninismo é o marxismo da época do imperialismo e das revoluções proletárias. Em outras palavras, o leninismo inclui tudo o que foi ensinado por Marx mais a nova contribuição de Lênin para o tesouro do marxismo, e aquilo que necessariamente decorre de tudo o que foi ensinado por Marx (ensinamentos sobre a ditadura do proletariado, a questão camponesa, a questão nacional, o Partido, a questão das raízes sociais do reformismo, a questão dos principais desvios do comunismo e assim por diante). Seria melhor, portanto, formular a questão de maneira a falar do marxismo ou do leninismo (que são fundamentalmente os mesmos) e não do marxismo e do leninismo.” [22]
É evidente que não pode existir leninismo sem marxismo, mas não apenas isso. O contrário é também verdade: sem o seu desenvolvimento leninista, o “marxianismo” de nossa época não cansa de fornecer provas de sua tendência ao diletantismo, aos balanços idealistas das experiências de transição socialista do último século e da sua incapacidade de oferecer respostas revolucionárias ao movimento dos trabalhadores – quando não se volta abertamente contra a classe trabalhadora como sujeito revolucionário, como tão emblematicamente fez Jacob Gorender (que termina a vida buscando afirmar-se marxista e, ao mesmo tempo, afirmando o caráter “ontologicamente reformista” do proletariado), Robert Kurz e Moishe Postone[23]. Sem o leninismo, o “marxismo” de nossa época retrocede para abaixo do próprio Marx, soterrando suas próprias concepções estratégicas, táticas e organizativas, que decorrem necessariamente de suas concepções filosóficas. Fossiliza-se em uma exegese marxológica, em revisionismo “esotérico”[24] e definha enquanto práxis revolucionária.
Esse “marxismo” anti-leninista – ou, o que dá no mesmo, o “marxianismo” que “retorna a Marx” com a declarada intenção de assumir teoricamente uma postura anti-engelsiana e anti-leninista – tem se disseminado significativamente no meio universitário em nosso país. Originado em torno da MEGA 2 alemã (tendo em Ingo Elbe[25] seu maior expoente, mas compartilhado por todas as escolas que orbitam essas releituras de Marx, como o Grupo Krisis da Nova Crítica do Valor, a tendência da Nova Leitura e o círculo do chamado Debate Derivacionista do Estado), esse “marxianismo” filológico tem encontrado largo espaço entre os marxistas estudiosos do Direito, em particular, mas também entre diversos outros grupos acadêmicos.
Mas não apenas: esse anti-leninismo pode ser encontrado, em sua forma mais discreta, mesmo entre as fileiras comunistas. É o caso, entre outros, do camarada José Paulo Netto:
“Essa concepção – vulgarizada sob a designação de marxismo-leninismo e que encontra os seus embriões nas intervenções (discursos e conferências) stalinianas ulteriormente reunidas no volume ‘As bases do leninismo’ – procura distinguir-se daquela da Segunda Internacional na escala em que se pretende apoiada no pensamento de Lênin. Ora, a ruptura que afasta Lênin da Segunda Internacional é sobretudo [grifo meu] uma ruptura política – e o que se coloca como determinante, aqui, ultrapassa de longe a questão da política: antes, é uma questão concernente à teoria como um todo. E o contributo lenineano, no que é pertinente a esse todo, é limitado [grifo meu]: componentes filosóficos muito significativos da obra de Lênin são exemplos do molde de pensamento da Segunda Internacional (que se pense, à guisa de ilustração, em Materialismo e Empirocriticismo). Dadas as condições de trabalho e de estudo, apenas no início da Primeira Guerra Mundial é que Lênin pôde esboçar uma reação teórica contra o marxismo da Segunda Internacional (documentada nas suas anotações acerca da Ciência da Lógica de Hegel); ele careceu, porém, de tempo e de circunstâncias favoráveis para aprofundar essa crítica. Pois é exatamente a partir do Lênin que se mostra congruente com a concepção da Segunda Internacional, herdeiro dos seus pressupostos teóricos, que se vai articular o marxismo-leninismo: um sistema global científico-filosófico que integra o movimento e a legalidade da natureza e da história na convergência de duas disciplinas, o materialismo dialético e o materialismo histórico”.[26]
Um leitor desatento poderia concluir que, em resumo, o marxismo-leninismo seria uma vulgarização do leninismo. A questão é mais delicada, porém. Como se desenvolve a argumentação do camarada Netto?
1. Até seus estudos aprofundados de Hegel (1914), Lênin não rompera filosoficamente, mas apenas politicamente com a leitura predominante de Marx. Sua obra Materialismo e Empirocriticismo seria um “molde de pensamento da Segunda Internacional”.
2. Após 1914, Lênin esboçou “uma reação teórica contra o marxismo da Segunda Internacional”, mas “careceu, porém, de tempo e de circunstâncias favoráveis para aprofundar essa crítica”.
3. Diante dessa falta de desenvolvimento, o pensamento filosófico primeiro de Lênin teria sido assumido como base teórica do marxismo-leninismo, marcando-o com os pressupostos teóricos da II Internacional.
Posta nesses termos, a argumentação do camarada Netto revela toda sua confusão. Fica evidente, em primeiro lugar, que o camarada mira no marxismo-leninismo, mas acerta o leninismo como um todo. Falha, contudo, em explicar em que medida a separação staliniana rígida entre “materialismo histórico” e “materialismo dialético” estaria contida em Materialismo e Empirocriticismo.
Estudando o chamado “lysenkoismo”, em sua obra Ciências proletárias? O caso de Lysenko, o marxista Dominique Lecourt chega a uma conclusão bastante distinta. Em sua opinião, as ideias mecânicas de uma “ciência proletária” advogadas pelas universidades soviéticas a partir dos anos 30-40, e associadas ao texto de Stálin de 1938 (Materialismo Histórico e Materialismo Dialético) teriam a ver, ao contrário do que afirma o camarada José Paulo Netto, com as teorias empiromonistas de Alexander Bogdánov – precisamente as ideias que são o alvo principal de Lênin em Materialismo e Empirocríticismo![27]
Em segundo lugar, também o argumento sobre a falta “de tempo e de circunstâncias favoráveis para aprofundar essa crítica” (após 1914) é completamente precário. O exato mesmo argumento poderia ser usado contra o termo “marxismo”: em 1844, Marx criticava Hegel de modo ainda superficial, e jamais teve tempo de desenvolver sua crítica de modo sistemático. Tanto isso é verdade que, até hoje, há enorme polêmica entre os marxistas sobre a relação entre Hegel e Marx (polêmica bastante cristalizada pela oposição entre a escola lukacsiana e a althusseriana). Mas isso significa que Marx deixou de desenvolver sua concepção materialista da dialética? Em termos manualescos, sim. Em termos teóricos, não: é exatamente essa sua concepção que se revela ao longo de toda sua obra teórica e política, desde suas cartas, passando por seu jornalismo e chegando a “O Capital”. E a exata mesma coisa pode ser dita de Lênin, que expressa em luta ideológica constante as suas concepções filosóficas, contidas em infinitas polêmicas dentro do movimento comunista (veja-se, por exemplo, sua menção a Hegel no bojo da polêmica com Trótski e Bukharin a respeito dos sindicatos)[28].
Em terceiro lugar, a própria ruptura radical que o camarada Netto demarca, em um período antes e um depois de 1914, é bastante questionável. Se, antes de 1914, Lênin não divergia filosoficamente, mas apenas politicamente dos bastiões da II Internacional, então porque seu Materialismo e Empirocriticismo está repleto de críticas metodológicas e filosóficas a Plekhanov? Se, após 1914, Lênin rompeu profundamente com os pressupostos filosóficos da II Internacional, porque encontramos em seu escrito de 1921 uma efusiva recomendação ao estudo filosófico de Plekhanov?
“A lógica dialética sustenta que ‘a verdade é sempre concreta, nunca abstrata’, como o velho Plekhanov gostava de dizer em coro com Hegel. (Deixe-me acrescentar em parêntese, para o benefício dos jovens membros do Partido, que não se pode esperar tornar-se um comunista real e inteligente sem fazer um estudo – e quero dizer, um estudo – de todos os escritos filosóficos de Plekhanov, porque nada melhor foi escrito sobre o marxismo em qualquer lugar no mundo).”[29]
Vê-se, então, que a questão da envergadura filosófica de Lênin é bastante mais complexa do que sustenta a crítica do camarada Netto.
Nós que, como Stálin e muitos outros (Lukács, Althusser, Gramsci, Thalheimer, Marini, Krupskaya, Zetkin, Mariátegui, Losurdo, Mao, Ho Chi Minh, Kim Il-Sun, Amílcar Cabral, Sankara, Marighella, Francisco Martins Rodrigues, Marta Harnecker, entre muitos mais, inclusive seus detratores) acreditamos que há uma acentuada unidade no pensamento de Lênin (a despeito de seus desenvolvimentos e aprofundamentos ao longo dos anos), não podemos nos contentar com essa apreciação superficial. E, em favor de um entendimento mais robusto, citamos dois intérpretes bastante divergentes de Lênin, que em comum partilham a defesa de sua profunda relevância filosófica: o bachelardiano Lecourt e o dialético Lefebvre:
“Os termos deste debate, que renasce incessantemente, são claros. Podem apresentar-se sob a forma crua de uma alternativa: na primeira parte de Materialismo e Empiriocriticismo, sustentando a teoria do reflexo [a ideia como sendo reflexo da matéria], Lênin defende, sim ou não, uma teoria empirista-sensualista do conhecimento? Em torno disso, não cessa argumentação: uns fazem valer que a única referência filosófica precisa e detalhada de Lênin é a Diderot contra Berkeley […] para provar que Lênin escolheu seu campo, o do sensualismo e, inclusive, para retomar seu próprio termo, o do ‘sensualismo objetivo’. Outros tratam de eliminar estes textos embaraçosos considerando-os como um ‘erro’ de Lênin, a enfermidade de um não-especialista, felizmente retificado e emendado, seis anos mais tarde, nos Cadernos Filosóficos, por uma leitura crítica da Ciência da Lógica de Hegel. Outros, enfim, rechaçam com justa razão ver em ‘Materialismo e Empiriocriticismo’ um pecado de juventude; atentos, ademais, a destacar a novidade radical que este texto introduz na história da filosofia, fazem do ‘sensualismo’ de Lênin uma questão de vocabulário e, mais profundamente, um problema de estratégia filosófica. Lênin empregaria um vocabulário inadequado posto que teria enfrentado seus adversários sobre seu terreno, e não o dele próprio. Liberado destas constrições, poderia, em seguida, só ante Hegel, abandonar – exceto por alguns detalhes sem importância – esta nefasta terminologia e desprender, esta vez sem contorções, a novidade de seus conceitos [Como nota o autor, essa é a posição de Althusser em Lênin e a Filosofia]. Ao que se pode objetar que este detalhe é precisamente, nos Cadernos, a re-aparição, palavra por palavra, dos desenvolvimentos anteriores acerca do ‘reflexo’, incluindo ambiguidades sensualistas. E a controvérsia recomeçaria encarniçadamente.
Para dizê-lo com clareza, uma leitura atenta da obra nos convenceu que este debate está destinado a permanecer sem saída, porque desconhece o objeto da primeira parte de Materialismo e Empiriocriticismo. Expomos, a seguir, nossas conclusões, que tomam a forma de três paradoxos a resolver:
1. O reflexo que está em questão na teoria do reflexo é um reflexo sem espelho;
2. A despeito das aparências, Lênin não sustenta de nenhuma maneira uma teoria sensualista do conhecimento;
3. Não há nenhuma contradição entre as teses defendidas em Materialismo e Empiriocriticismo e as que mais tarde serão sustentadas nos Cadernos Filosóficos; em particular, a teoria do reflexo (sem espelho) será ali retomada e pensada na categoria de processo (sem sujeito).”[30]
Assim, na contramão do que versam os acadêmicos de esquerda, o pensamento filosófico de Lênin não se limitou ao manejo da filosofia para a luta política, mas contém ele próprio um vigoroso desenvolvimento da teoria marxista do conhecimento – a chamada teoria do reflexo.
“Ora, prossegue Lênin, entramos numa época ‘completamente diferente, em que a filosofia burguesa se especializou sobretudo na gnosiologia e, tendo assimilado de forma unilateral e deformada certas partes constituintes da dialética (o relativismo, por exemplo), presta o melhor da sua atenção à defesa e reconstituição do idealismo a partir de baixo [encarnando de forma idealista e metafísica a natureza e a ciência] e não a partir do alto [do ponto de vista moral e religioso]’ (Materialismo e Empiriocriticismo, p. 303).
[…]
Assim, o pensamento marxista sofria de uma dupla fraqueza. Tendo insistido na dialética, Marx e Engels não tinham contudo deixado um tratado de lógica, de metodologia e de dialética, nem tinham prosseguido e aprofundado a exposição do materialismo. Ora, o pensamento burguês esforçava-se por se apoderar da dialética, por a incorporar, e dirigia os seus esforços precisamente contra o materialismo, para conseguir reconstituir ‘por baixo’ quer o idealismo clássico quer uma nova forma de idealismo ‘estimulando o materialismo’ (Lênin, na mesma página, a propósito do positivismo e empiriocriticismo, ou doutrina de Mach).” [E, em nota de rodapé, Lefebvre relaciona esta questão com uma crítica a Meleau-Ponty, que “muito logicamente, ataca Lênin por ter retomado e desenvolvido o ‘naturalismo’ de Engels e Marx”][31].
Vejam que modo distinto de raciocinar, em relação ao modo do camarada Netto! Para Lecourt, não há qualquer contradição entre a filosofia lenineana pré e pós 1914. Para Lefebvre, ainda que o estudo de Hegel leve Lênin a formular de modo mais rico suas questões, não há qualquer tentativa de limitar o significado de Materialismo e Empiriocriticismo a um “molde do pensamento da II Internacional” – um pensamento que, na verdade, buscava “revisar” o materialismo de Marx a golpes de neo-kantianismo.
Portanto, reduzir o leninismo a uma teoria da organização significaria perder de vista, como diria Gramsci, o “alcance gnosiológico” do “princípio teórico-prático da hegemonia” formulado por Lênin[32]. Por trás da formulação organizativa de Lênin reside uma teoria da hegemonia e uma concepção da relação entre a consciência espontânea e a consciência organizada; e, por trás desta, reside o próprio desenvolvimento leninista da teoria do conhecimento materialista dialética. É por isso que, segundo Gramsci, a contribuição de Lênin para o marxismo não é apenas uma no terreno da teoria política, mas no próprio terreno filosófico da gnoseologia. Na mesma toada Lefebvre afirma, no Prefácio ao seu O Pensamento de Lênin:
“Diga-se desde já que a palavra ‘leninismo’ raramente se emprega sozinha. Os que a utilizam isoladamente, de forma sistemática, fazem-no para separar o leninismo do marxismo. Regra geral, diz-se ‘o marxismo-leninismo’, e foi esta expressão que entrou tanto no vocabulário político corrente como no vocabulário filosófico. […]
Definiremos então com Stálin, no livro ‘Questões do Leninismo’, a doutrina de Lênin através da teoria e da prática, da estratégia e da tática da ditadura do proletariado? Sim, até um certo ponto, e só até um certo ponto. Com esta reserva: a teoria da ditadura do proletariado tem que ser tomada em toda a sua complexidade e na subordinação ao devir histórico, às situações concretas.
Acrescentemos expressamente que a obra de Lênin transborda deste aspecto político, que depende do método utilizado mas não se limita a ele. Lênin foi também um filósofo. E, na nossa opinião, o seu pensamento filosófico é o que nos dá o fio condutor que atravessa toda a obra e a torna compreensível”.
Seguindo o mesmo modelo pelo qual Lênin buscou diferenciar o marxismo consequente do revisionismo, Lefebvre busca desenvolver os elementos essenciais do leninismo nos marcos de suas “três fontes”:
No campo da filosofia, Lênin teria desenvolvido especialmente a gnosiologia marxista, a teoria do reflexo, em sua relação com a crise teórica experimentada à época pelas ciências naturais.
Na economia, Lênin teria desenvolvido a noção marxista de “formação econômico-social”; postulado a teoria do desenvolvimento desigual, em conexão com o estudo do estágio imperialista e do monopolismo capitalista; investigado as bases materiais do oportunismo, originado na aristocracia operária; bem como avançado na teoria econômica da transição socialista.
Na política, por fim, os ensinamentos de Lênin são inúmeros. Lênin nota que nos períodos revolucionários é a política que domina a economia; estuda a diversidade das camadas que compõem o proletariado e a pequena burguesia; critica a apologia do espontaneísmo, o economicismo, o esquerdismo e o oportunismo; aprofunda a teoria da hegemonia do proletariado sobre a massa pobre de pequenos proprietários; constata o declínio da burguesia revolucionária; avança na teoria da ditadura democrática necessária à transição socialista; desenvolve a noção da insurreição como arte e da política como a organização do exército do proletariado revolucionário; combate o internacionalismo abstrato através de uma rica reflexão sobre a questão nacional e a da autodeterminação dos povos; teoriza as condições históricas das crises revolucionárias, etc.
Tudo isso, diga-se de passagem, baseando-se no estudo sistemático de Marx e Engels; buscando desenvolver uma série de indicações dadas por estes que, infelizmente, careceram do tempo e das circunstâncias favoráveis para aprofundá-las…
Para muitos “marxistas” acadêmicos, como para a ampla maioria dos acadêmicos burgueses, há poucas coisas mais “totalitárias” que a afirmação, sem hesitações, da verdade. Por isso Lênin causa tantos incômodos. O “marxismo” acadêmico, que há muito esqueceu-se da relação dialética entre os fenômenos e suas verdades objetivas, pode muito bem satisfazer-se com esse “marxismo de compadres” que prega que todas interpretações de Marx têm igual validade e importância; que tratam-se apenas de divergências de “pontos de vista”, sem certo ou errado. Da nossa parte, não hesitamos em afirmar: fora do leninismo não há marxismo verdadeiro. Há apenas retalhos de Marx, manuseados em favor de concepções burguesas da sociologia, da economia, e assim por diante. Por isso, não raro, vemos emergir esses marxistas-weberianos, marxistas-keynesianos, etc. “Marxistas” que há muito se esqueceram da busca por uma concepção totalizante da realidade; “marxistas” que há muito esqueceram que a verdadeira questão filosófica maior da humanidade não consiste em interpretar de modos inovadores a realidade, e sim transformá-la.
Conclusão
Neste artigo, cuja parte teórica certamente mereceria uma série de desenvolvimentos (que podem ser parcialmente encontrados na bibliografia citada), busquei desmontar as falsas concepções historiográficas que remetem a fórmula do “marxismo-leninismo” particularmente a Stálin, bem como defender o leninismo como algo mais do que uma “complementação organizativa” do marxismo: como o legítimo desenvolvimento teórico do marxismo, tanto na filosofia quanto na economia e na política.
De todo o exposto, é possível deduzir qual a minha posição acerca da “querela do hífen”. Em primeiro lugar, critico a precariedade de fórmulas a la “marxismo e leninismo”. Em segundo lugar, defendo a suficiência teórica da designação “leninismo” – uma vez que não há leninismo que não seja marxista, nem marxismo consequente que não seja leninista. Por fim, sustento a plena viabilidade política da denominação “marxismo-leninismo”, mas apenas na medida em que é desejável apresentar o leninismo não como uma teoria nova, oposta ao marxismo (como sustentam os “marxianos” acadêmicos já mencionados), e sim como seu desenvolvimento consequente e necessário. Assim sendo, se do ponto de vista teórico a fórmula “leninismo” bastaria, do ponto de vista da luta teórica, a fórmula do “marxismo-leninismo” pode, com efeito, evitar confusões e servir melhor ao combate do “marxianismo” anti-engelsiano e anti-leninista.
Qualquer uma dessas duas últimas opções parece aceitável. O que é inaceitável é que, sob o pretexto do combate ao burocratismo e ao mecanicismo filosófico de Stálin, se reduza o leninismo a uma teoria organizativa. Sob um tal entendimento, estaríamos fazendo andar para trás o estado de nossa teoria coletiva, em vez de fazê-la avançar, no sentido do desenvolvimento consequente do marxismo para nossa época. Se é o burocratismo que se deseja combater, que este seja combatido como tal – e não com o recurso a uma insatisfatória polêmica em torno de um hífen, que apresenta mais debilidades que vantagens teóricas.
Apêndice: os problemas do “anti-stalinismo”
Uma questão que não poderei abordar com qualidade suficiente no espaço deste texto consiste no tema do stalinismo – mas que merece, ao menos, algum comentário. Pessoalmente, sempre me considerei um “anti-stalinistas”, no sentido de que acumulo mais divergências do que acordos com as concepções teóricas e políticas de Stálin. Sem condenar o terror por princípio (uma vez que todo marxista admite a necessidade de algum grau de coerção no enfrentamento à contrarrevolução), ao mesmo tempo, nunca fui destes que naturalizam os excessos cometidos nos anos 30. Se é verdade que as revoluções, como Saturno, tendem a devorar seus filhos; também é verdade que essa autofagia revolucionária é precisamente a expressão de que uma revolução chega aos seus limites dramáticos, e prepara caminho para grandes retrocessos (mais cedo ou mais tarde). Combatendo mistificações da história, não nos cabe, contudo, aplaudir a coerção como método de solução de conflitos políticos entre revolucionários.
Mas, bem como o camarada Jones Manoel gosta de insistir [33], não me parece razoável atribuir a Stálin a exclusiva responsabilidade pelas desventuras da Revolução Russa – que, como já sabiam os bolcheviques, estava em péssimas condições de desenvolvimento, na ausência de uma revolução proletária no Ocidente, situando-se em um país de imensa maioria pequeno-burguesa rural. Ao mesmo tempo, considero (como Franscisco Martins Rodrigues [34] e outros leninistas) que Stálin representava a solução centrista para os impasses da Revolução Russa, sendo passível, portanto, de inúmeras críticas enquanto dirigente.
Seja como for, o grande problema com o “anti-stalinismo” vigente e predominante na esquerda consiste em seu caráter historicamente obscurantista e politicamente liberal-democrático. Atribuindo a Stálin a responsabilidade por cada um dos mortos do Terror russo; criando o espantalho de um monstro sedento por sangue e poder (imagem que pode ser dissipada facilmente, pelo estudo das diversas tentativas de renúncia de Stálin a seu posto de Secretário Geral), esse “anti-stalinismo” obscurece a verdadeira apreciação marxista da história como história da luta de classes, e a substitui por uma concepção moralista e personalista da história. Explica as desventuras da revolução russa em função da ascensão de Stálin, e não o contrário.
Mas, ainda pior: esse “anti-stalinismo” que se limita à crítica ao Terror e aos Processos de Moscou, e põe de lado os problemas econômicos e geopolíticos da construção do socialismo, apenas deseduca o proletariado em sua luta pelo poder. Ora, em uma época na qual predominam sobre o movimento operário concepções reformistas e gradualistas da luta de classes, uma das principais tarefas da propaganda revolucionária consiste na legitimação dos métodos coercitivos que o proletariado deve empregar, necessariamente, na sua luta pela reorganização socialista da sociedade. É precisamente o contrário disso que faz esse anti-stalinismo predominante, indiferenciado da crítica liberal ao totalitarismo; incapaz de relacionar a autocrítica dos excessos coercitivos dos comunistas com uma análise científica dos dramas materiais da sociabilidade soviética – reduzindo, assim, todo problema à moral e à psicologia particulares de Stálin.
Quando debatemos os excessos soviéticos, não podemos permitir abordagens superficiais, sob risco de que nossa crítica descambe em liberalismo. Ou, como colocava o camarada Engels:
“A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação.”[35]
Notas
[1]https://www.marxists.org/archive/thalheimer/works/lenin.htm
[2]https://www.marxists.org/archive/kamenev/1924/11/trotskyism.htm
[3]https://www.marxists.org/archive/bukharin/works/1924/permanent-revolution/index.htm
[4]https://www.marxists.org/portugues/pashukanis/1925/mes/lenin.htm
[5]“Lenin: Um Estudo Sobre a Unidade de Seu Pensamento”, de Gyorgy Lukács.
[6]Que, distanciando-se da oposição, afirmou: “A capacidade da maioria da liderança de encontrar uma maneira de retornar a uma política leninista foi demonstrada na realidade por sua luta contra os kulaks.”.
[7]Parece provável que a “luta pelo hífen” esteja ligada à luta de Kamenev, Ivan Skvortsov-Stepanov e, após sua morte em 1928, Maximilian Savelev, todos dirigentes do Instituto Lênin; contra Riazanov e Rubin, do Instituto Marx-Engels. Em 1931, ambas instituições viriam a se fundir no Instituto Marx-Engels-Lênin.
[8]https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1928/11/19.htm
[9]https://www.marxists.org/espanol/gramsci/mayo1925.htme https://www.marxists.org/espanol/gramsci/congre.htm
[10]“Toward Rebirth of the Fourth International,” 1963. https://www.marxists.org/history/etol/document/icl-spartacists/1997/trotskyisminchina.html
[11]Joseph Hansen, 1967. https://www.marxists.org/archive/hansen/1967/07/marx-len.htm
[12]Celia Hart, 2005. https://www.marxist.com/celia-hart-stalinism-leninism1010904.htm
[13]POLOP: “Pela união dos Marxistas Revolucionários”. In: Revista Política Operária nº5, 1963, p. 51. Em: http://wwws.fclar.unesp.br/agenda-pos/ciencias_sociais/1291.pdf
[14]https://www.marxists.org/archive/thalheimer/works/lenin.htm
[15]Vide: “Como Lênin estudava Marx”, de Krupskaya. Em: www.marxists.org/portugues/krupskaia/1933/mes/estudava.htm
[16]https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1899/dec/kautsky.htm
[17]https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/05/05.htm
[18]https://www.marxists.org/portugues/lenin/1908/04/16.htm
[19]https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm
[20]https://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/11/marx-avante.htm
[21]“Lenin: Um Estudo Sobre a Unidade de Seu Pensamento”, de Gyorgy Lukács, p. 100.
[22]“The Tasks of the Young Communist League: Answer to Questions Submitted by the Editorial Board of Komsomolskaya Pravda”, em: https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1925/10/29.htm
[23]Entre os alemães contemporâneos, Karl Reitter é uma louvável exceção: https://18.118.106.12/2019/04/03/ha-uma-tendencia-a-fetichizar-o-fetiche-entrevista-com-karl-reitter/
[24]A chamada “leitura esotérica” de Marx busca opor o Marx cientista crítico do valor ao Marx exotérico, militante do movimento operário.
[25]Para a crítica de Elbe, vide: https://18.118.106.12/2018/08/22/o-anarquismo-juridico-lenin-e-pachukanis-versus-ingo-elbe/
[26]José Paulo Netto, em “Capitalismo e Reificação”, Instituto Caio Prado Jr., 2015, p. 42-3.
[27]https://www.versobooks.com/books/2370-proletarian-science
[28]“Mais uma vez sobre os sindicatos: a situação atual e os erros de Trótski e Bukharin”. Em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1921/jan/25.htm
[29]“Mais uma vez sobre os sindicatos: a situação atual e os erros de Trótski e Bukharin”. Em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1921/jan/25.htm
[30]Dominique Lecourt, “Ensayo sobre la posición de Lenin en filosofía”, tradução livre, p.18-20.
[31]Henri Lefebvre, “O Pensamento de Lênin”, p. 115.
[32]Vide: https://18.118.106.12/2015/11/09/gramsci-contra-o-marxismo-cultural/
[33]https://pcb.org.br/portal2/24370/autocritica-ou-anticomunismo/
[34] Ainda que não concorde integralmente com a apreciação que FMR faz da experiência russa, seu modo de abordar a “questão Stálin” me parece preciso e satisfatório:
“-Foste, portanto, stalinista até há pouco?
-Eu ainda não estou bem desestalinizado, porque reabilitar as democracias burguesas à pala de criticar Stálin não me serve.
-Mas o que é que criticas no stalinismo?
-Critico o facto de Stálin ter pretendido manter na URSS um compromisso entre os interesses da classe operária e da pequena burguesia, através de um poder burocrático e ditatorial. Isto não significa nenhuma adesão às baboseiras que o pretendem equiparar a Hitler, e a URSS dos anos 30 à Alemanha nazi.
-Não criticas a repressão sobre os camponeses e os processos de Moscou?
-Geralmente, essas críticas esquecem que a URSS foi obrigada — com todos os custos que isso implicou — a defender-se dos ataques do nazismo e da política das democracias ocidentais, que favoreciam aquele ataque. Os julgamentos de Moscou parecem-me ter sido uma reação histórica, de pânico, de um poder afinal frágil que ‘descobria’ espiões em toda a parte, devido a essa pressão de uma ameaça militar.
-Em conclusão: Stálin foi ou não um revolucionário?
-Foi um revolucionário até que o esgotamento da revolução proletária na URSS, ainda nos anos 20, o levou a bloquear o desenvolvimento da luta de classes, através de um poder pretensamente socialista.” [Nota do autor: neste “pretensamente”, começam minhas divergências com FMR sobre a apreciação da experiência soviética no quadro da transição ao socialismo.] Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1988/03/05.htm
[35] https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridade-pt.htm