'O Campo e a Reforma Agrária Popular' (Raul Orcy)

A luta pela reforma agrária também avança para a defesa de demarcação de terras indígenas e quilombolas, como parte do projeto de distribuição de terras, sendo a forma de concessão diferente da trazida acima, nesta o local é cedido aos moradores de tal território, sem titulação individual.

'O Campo e a Reforma Agrária Popular' (Raul Orcy)

Por Raul Orcy para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas ultimamente percebi em nossa militância um anseio em debater a luta pela terra, e as contradições e condições do campesinato brasileiro, logo, como militante e estudante da educação do campo não posso ficar de fora desta discussão, por isso pretendo trazer alguns pontos, debates, e apontamentos que devem ser feitos sobre as seguintes questões:

  • Povos do campo;
  • Educação do campo; 
  • Reforma Agrária Popular.

Vou tentar seguir em tópicos o texto, fazendo uma conexão entre os assuntos e posteriormente uma conclusão sobre o que abordei aqui.

POVOS DO CAMPO  

Para discutirmos estes temas propostos de forma qualitativa precisamos inicialmente definir quem são os povos do campo. Para o estudo de educação do campo, que irei abordar no próximo tópico, os povos do campo são definidos pelo DECRETO Nº 7.352, DE 4 DE NOVEMBRO DE 2010 do MEC sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA, como: 

“os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural;”(MEC, 2010. p 01) 

Entende-se a partir desta definição que são povos do campo, as comunidades não urbanas e/ou que tem seu trabalho a partir do meio rural, como os pescadores. 

Percebe-se então que os povos do campo são definidos para além da questão geográfica, mas por suas práticas ou relações com o território, por exemplo o pescador artesanal que mora em um local urbano, apesar de estar sujeito às contradições do comércio e do sistema de relações de um centro urbano, ele tem uma conexão com a natureza e o território que o diferencia dos demais trabalhadores de sua cidade, inclusive dos comerciantes que praticam a pesca industrial. Outra boa relação para exemplificar esta afirmação são os quilombolas moradores de quilombos urbanos, que estão inseridos em uma realidade totalmente diferente de um quilombo rural, nas relações sociais, econômicas e organizativas, porém a culturalidade e a conexão holística com o território diferencia o quilombo do meio urbano, mesmo ele estando geograficamente afastado do “campo”. O território carrega a cultura, diversos saberes, significados e valores e esta relação da vida e do trabalho em comunhão com o espaço que caracterizam a territorialidade. 

Entendendo então que a luta pela terra e a valorização da territorialidade está para além de definições geográficas e não é exclusiva apenas de agricultores e assalariados do campo, partimos para o entendimento de educação do campo.

EDUCAÇÃO DO CAMPO

A educação do campo se diferencia da educação rural. A educação rural existia no Brasil com o intuito de manter a exploração das pessoas do campo, porém com um treinamento técnico para as tecnologias do meio produtivo, ou seja, ela não tinha um viés humanizador e libertador, pelo contrário, ela era precária e seguia a lógica educacional urbana desconsiderando as diversas especificidades do campo. Há um avanço considerável na educação brasileira num geral com a LDB de 1996, é nesta que a educação rural é reformulada, como por exemplo o seguinte artigo: 

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

I- conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; 

II- organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; 

III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.

Claro que estas mudanças não vieram do nada, na verdade foram forjadas através da luta e organização dos trabalhadores do campo. Nas décadas de 80 e 90 o movimento camponês estava em crescente ascensão, com destaque para o MST que neste contexto em 1985 realizou a sua primeira ocupação, e em 1993 esta ocupação se concretizou como assentamento da reforma agrária. É a partir deste início de vitórias da classe que se fortalece a luta por uma educação nos assentamentos e acampamentos para os camponeses. 

Após as diversas escolas abertas sob esta reformulação, que permite mais liberdade às escolas em áreas rurais, que no início dos anos 2000 aparece oficialmente o termo educação do campo no MEC, este já era muito aclamado pelos movimentos sociais, porém o MEC a partir daí reconhece e diferencia a educação do campo, fortalecendo a autonomia, e as especificidades das escolas do campo. Em 2006 e 2007 se iniciam os trabalhos das primeiras graduações em licenciatura educação do campo, com o intuito de formar professores que sejam qualificados para trabalhar nas escolas do campo. esta modalidade educativa, tem como intuito formar um tipo de sujeito, a educação do campo visa evidenciar as contradições da realidade dos educandos.

Nascida dos movimentos sociais e fortalecida por eles, a educação do campo só é possível com a práxis pedagógica, e hoje é considerada um dos símbolos mais fortes da luta pela terra e permanência da territorialidade.

Quero trazer uma citação da tribuna do camarada Lazari: 

Mas não devemos nem idealizar esses movimentos [MST E LCP] pelo seu peso de massas, nem repudiá-los por suas estratégias incorretas – devemos compreender e ativamente participar da luta camponesa, especialmente entre os militantes que residem fora dos grandes centros urbanos, e buscar sua unidade com a luta proletária no campo, a luta dos assalariados rurais. Ainda no seio dessa luta, não devemos repudiar assentados ou camponeses por suas visões estratégicas equivocadas. (LAZARI, 2024) 

“não devemos idealizar, nem repudiar”, acho fraco trazermos essas afirmações para algo tão grande como a resistência camponesa brasileira. Devemos analisar crítica e dialeticamente, como devemos fazer com qualquer situação político-social que seja objeto de análise. Apresentar essa dicotomia é algo negativo que deve ser evitado, devemos realizar críticas e buscar de maneira dialógica as respostas. 

Ainda sobre a citação do camarada, temos que ampliar o debate sobre o MST, por ser o maior movimento de massas da américa latina, é imprescindível que tenhamos maior conhecimento sobre suas estratégias antes de taxarmos como equivocadas, ou ineficazes. Sei que o MST tem diversas estratégias que perpassam por regionalismos e por diferentes comunidades camponesas, mas nacionalmente há alguns objetivos chaves: 

O MST se constituiu com base em três objetivos centrais que perduram até hoje: a luta pela terra, por reforma agrária e por transformação social. A primeira diz respeito à luta imediata, à necessidade do sujeito conquistar um pedação de chão; a segunda se refere a uma política de Estado, já que sem ela não se consegue manter nem realizar de forma massiva a conquista pela terra; e a terceira carrega em si o viés ideológico, como a necessidade de remodular as relações de poder na sociedade (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2020) 

Quando o MST realiza uma ocupação ou manifestação estamos falando da demanda imediata da luta pela terra, algo de caráter radical, que ataca o latifúndio através de suas posses, em nome de direitos aos camponeses sem terra. 

Quando entramos no polêmico assunto da Reforma Agrária popular estamos falando sobre uma política de estado que busca uma reforma na distribuição de terras, o MST lutou ativamente por esta política pública criando o CDRU: 

Concessão de Direito Real de Uso (CDRU): um título conjunto em nome do homem e da mulher que dá direito ao uso da terra e garante a herança as/os filhas/os e herdeiras/os, porém não permite que a terra seja vendida. É um título gratuito, com força de escritura pública que confere toda segurança jurídica necessária às famílias para desenvolver atividades produtivas no imóvel, ao mesmo tempo em que a UNIÃO preserva os princípios de reforma agrária, evitando que os lotes sejam objeto de negociatas e da especulação imobiliária. (MST) 

Seguindo a discussão do CDRU: 

O MST lutou na constituinte para a criação do título de CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO para proteger os interesses de todo o povo brasileiro, que por meio da União investiu recursos públicos para desapropriar os imóveis e assentar as famílias. Assim a terra não pode ser apenas uma mercadoria qualquer um para compra e venda. É também mecanismo que combate alguns oportunistas que estimulados por fazendeiros acabam vendendo a terra. (MST)

Há também o título de domínio (TD) e a concessão de uso (CDU), estes são ferramentas do sistema para desarticular os movimentos sociais, já que o TD permite a venda do lote e o CDU concede a terra temporariamente. Por isso o MST defende com unhas e dentes o CDRU para seus assentados e militantes. 

A luta pela reforma agrária também avança para a defesa de demarcação de terras indígenas e quilombolas, como parte do projeto de distribuição democrática de terras, sendo a forma de concessão diferente da trazida acima, nesta o local é cedido aos moradores de tal território, sem titulação individual.

Entende-se que estas conquistas constitucionais estão longe de seus fins, mas são os meios para que os camponeses possam se organizar e fortalecer. Lênin, no contexto do campesinato russo, trazia: “Mas para se unir é necessário ter a liberdade de se unir, o direito de se unir, é necessário ter a liberdade política.“ (LENIN, 1903). Compreendemos que a liberdade política só é possível com a revolução, porém camaradas o que os assentados conquistam é a liberdade para existirem, e com isso avançarem para o terceiro ponto trazido acima, a “transformação social”. 

O MST por meio de seus assentamentos consegue produzir alimento de qualidade contrapondo a falácia do agronegócio desenvolvimentista de que é necessário veneno e monocultura para que haja produção, e o movimento ainda lucra com esta produção tanto financeiramente como através da expansão de suas ideias pela propaganda da agroecologia. 

O MST educa os jovens e adultos do campo através de suas escolas e institutos espalhados pelos acampamentos e assentamentos de reforma agrária. Camaradas quero atentar a devida grandeza deste ponto, a escola do MST é uma escola que forma militantes, tive o prazer de conhecer duas escolas de assentamento e para além de suas estruturas físicas impecáveis a organização é participativa e democrática, os conteúdos são pautados nas necessidades atuais e os problemas resolvidos através de plenárias e assembleias. As bibliotecas são ricas em um amplo acervo revolucionário que deixaria qualquer um de nossos militantes de queixo caído, e o mais chocante comparado a realidade urbana, é a lotação das bibliotecas que está sempre cheia de jovens e adultos lendo e debatendo sobre as leituras. Há também a presença das figuras históricas revolucionárias em toda a escola, através de fotos, nomes de salas e espaços de convivência. 

É através da educação, do alimento e da terra que MST constrói condições para a transformação social, e a reforma agrária é o processo que possibilitou para que este trabalho seja ampliado e possibilite a união do proletariado urbano e o camponês. Temos hoje a facilidade de olhar de fora os movimentos sociais e organizações trabalhistas e sindicais, este é um dos privilégios de não estar inserido neles, porém este privilégio recai sobre a dificuldade de criticar de forma legítima estes, por falta de dialogicidade com os participantes e compreensão dos seus motivos e ambições. 

Esta escrita foi realizada para contribuir a este importante debate no qual estou inserido por ser um dos militantes da educação do campo, não pretendeu-se idealizar o MST ou exaltar a reforma agrária, mas apenas trazer alguns “porquês” para perguntas que acredito que estavam sendo atropeladas pelo nossa mania de imediatismo nas discussões. Por fim conclui-se que o MST, que se declara marxista-leninista e é símbolo de luta pela terra, tem fortes contribuições para a transformação social brasileira, e a reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais para esta proposta de transformação. 


REFERÊNCIAS: 

MST CDRU: https://mst.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Titulacao-nos-Assentamentos.pdf

LENIN AOS POBRES DO CAMPO: 

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1903/03/pobres.htm

REFORMA AGRÁRIA POPULAR: 

https://thetricontinental.org/wp-content/uploads/2020/04/20200328_Dossier-27_PT_Web.pdf

TRIBUNA LAZZARI: 

https://emdefesadocomunismo.com.br/quais-sao-as-principais-questoes-que-devemos-resolver-no-xvii-congresso/

MEC PRONERA: 

http://portal.mec.gov.br/docman/marco-2012-pdf/10199-8-decreto-7352-de4-de-novembro-de-2010/file