O agronegócio deve ser responsabilizado pelas queimadas
Uma política de enfrentamento às mudanças climáticas deve não somente responsabilizar os proprietários de terra, mas ir além e acabar com o domínio privado sobre a terra e a natureza, a fim de garantir condições de vida saudável para a atual e as futuras gerações.
Por Redação
As queimadas são usadas amplamente pelo agronegócio para a expansão de pastagem e lavoura sobre a vegetação natural em terras públicas, áreas de conservação, em territórios indígenas e de populações tradicionais. Esta atividade, a mudança de uso do solo, é a que mais emite gases de efeito estufa (GEE) no Brasil. O fato é conhecido, mas os proprietários de terra ficam quase sempre impunes ou até são premiados. Mesmo quando as consequências para a sociedade são graves, como as nuvens de fumaça tóxica neste ano. Uma política de enfrentamento às mudanças climáticas deve não somente responsabilizar os proprietários de terra, mas ir além e acabar com o domínio privado sobre a terra e a natureza, a fim de garantir condições de vida saudável para a atual e as futuras gerações.
A expansão permanente da fronteira agropecuária é um elemento estrutural da formação econômica brasileira, cuja origem remonta ao período colonial. Ainda assim, é notável como foi extremamente intensificada nos últimos 40 anos, com o desenvolvimento da agricultura capitalista no Brasil, popularmente conhecida como agronegócio. Desde 1985, 110 milhões de hectares (ha) de áreas naturais foram destruídos para dar lugar a pastagens e lavouras, segundo pesquisa do MapBiomas. Isto é equivalente a 13% de todo o território nacional ou duas vezes a área da França. Neste período, os biomas mais afetados foram a Amazônia, com perda de 55 milhões de ha de vegetação nativa, e o Cerrado, com perda de 38 milhões de ha.
O pico de incêndios em curso neste ano é favorecido pelas condições ambientais para o alastramento do fogo: altas temperaturas e secas extremas. São consequências das mudanças climáticas, portanto, contam com contribuição direta do agronegócio, devido às emissões de GEE pela mudança do uso do solo e pelas práticas agropecuárias predominantes. De acordo com o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, a temperatura da Terra esteve pelo menos 1,5ºC acima da média do período pré-industrial entre julho de 2023 e junho de 2024. E, segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil enfrenta a pior seca da história, desde o início do monitoramento em 1950.
A temperatura elevada, a estiagem e a baixa umidade do ar tornam a vegetação seca, um material inflamável para o rápido alastramento do fogo. Essa condição é ideal para que mesmo pequenas ações irresponsáveis como queimar o lixo, limpar uma pequena área de “mato” com fogo ou qualquer ação que gere faísca converta-se em um incêndio de maiores proporções.
No entanto, os casos acidentais não podem ocultar as ações deliberadas de incêndio para expansão de áreas de pastagem e de lavouras. Uma das áreas mais afetadas pelos incêndios e que mais contribuiu para a produção da fumaça tóxica em agosto foi o Arco do Desmatamento, área que vai do leste e sul do Pará em direção ao oeste, passando por Mato Grosso, sul do Amazonas, Rondônia e Acre.
As Terras Indígenas (TI) invadidas pelo garimpo também estão sendo fortemente atacadas com incêndios criminosos. Os territórios Kayapó (PA), Munduruku (PA) e Sararé (MT), que são os mais afetados pelo garimpo na atualidade, sofreram com 1.111 focos de incêndio entre os dias 1º e 28 de agosto. Número quase sete vezes superior aos 163 focos de incêndio registrados nestes territórios em 2023. Nestes casos, é determinante a inação do governo Lula por não ter realizado a desintrusão do garimpo das TI. Ainda, segundo a plataforma Indimap, foram identificados 3.469 pontos com chamas em TI no Brasil somente na semana entre 19 e 26 de agosto.
No caso das lavouras de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, é preciso lembrar que o uso do fogo foi predominante na colheita até a safra de 2008/2009. Na safra de 2010/2011, 2,1 milhões de hectares de cana-de-açúcar foram queimados nas terras paulistas. Uma área 26 vezes maior que os 80 mil hectares queimados em agosto de 2024. Há uma série de pesquisas que apontaram a piora no quadro de saúde de parcela da população nas regiões produtoras devido à queima da cana.
Como não há ineditismo na queima da cana, as céleres ações propostas pelo governo de São Paulo e pelo governo federal em favor dos usineiros e dos proprietários de lavouras têm um caráter principalmente político e ideológico. No sentido de colocar o agronegócio como vítima das queimadas, camuflando a responsabilidade pelas mudanças climáticas e por grande parte dos incêndios deliberadamente provocados. A medida que mais chama a atenção é o denominado termo emergencial, que impede que o proprietário de terra seja multado ou sancionado pelos órgãos ambientais. É um cheque em branco para praticar queimadas, pois basta comparecer à Casa da Agricultura do município e autodeclarar-se vítima.
Além disso, as medidas incluem a transferência de mais uma parcela do fundo público para o agronegócio. O ruralista e bolsonarista Guilherme Piai, secretário de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo, anunciou crédito com juro de 0% e carência de dois anos para os proprietários de terra afetados pelos incêndios. Carlos Fávaro, Ministro da Agricultura, afirmou que o governo federal também estuda propostas no mesmo sentido.
Estas ações de vitimização e oferta de crédito ao agronegócio relacionado com queimadas, ocorrem no momento em que os ruralistas pressionam contra a restrição de crédito para propriedades com embargo e irregularidades ambientais. No primeiro semestre de 2024, o Banco Central (BC) cancelou mais de 30 mil operações financeiras para proprietários rurais com inconsistências no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e com áreas embargadas. O impacto foi de 6,2 bilhões de reais.
O agronegócio precisa ser responsabilizado, não pode ficar impune pela degradação ambiental e pelas mudanças climáticas. O desmatamento e as queimadas impactam toda a sociedade e representam a piora das condições ambientais para as futuras gerações. Não é admissível que quem desmata e queima tenha acesso a crédito público. Neste sentido, manter e aprofundar as restrições de financiamento impostas pelo BC é fundamental, ainda que insuficiente.
A propriedade privada da terra e, consequentemente, da natureza, não é a única forma de estrutura fundiária. A imposição do lucro como prioridade absoluta faz com que a produção capitalista de commodities de exportação se sobreponha às áreas de preservação permanente, às reservas legais, às florestas públicas, aos territórios indígenas e de populações tradicionais. Além disso, a parte principal do valor produzido é destinado para grandes monopólios internacionais, devido a dependência científico-tecnológica de insumos (sementes, fertilizantes e agrotóxicos), máquinas e implementos agrícolas.
Uma das formas de responsabilização dos proprietários de terra que praticarem crimes ambientais, como as queimadas, pode ser a expropriação das terras. Afinal, o cuidado com a natureza deve ser prioritário para a sociedade, com o objetivo de enfrentar as mudanças climáticas. As terras expropriadas, tornadas públicas, somadas às que já pertencem à União, podem ser desenvolvidas compatibilizando a produção agropecuária para o mercado interno e priorizando o desenvolvimento científico-tecnológico agroecológico. Com a vantagem de facilitar zoneamentos econômicos-ecológicos (ZEE) e a gestão territorial por bacias hidrográficas, uma vez que a segmentação em propriedades privadas será menor.
A privatização dos serviços fundamentais, como o transporte, energia, água e esgoto têm demonstrado como causam prejuízos à população. Para a terra, para a estrutura fundiária não é diferente. Não é possível compatibilizar lucro privado com bem-estar público e conservação da natureza.