Novas enchentes: desastres não têm nada de natural e se repetem anualmente
As chuvas do início dos anos afetam a classe trabalhadora e municípios enfrentam severas consequências de desastres que, mesmo sendo anunciados, não são devidamente enfrentados pelo Poder Público.
Por Redação
Semanalmente são noticiados os impactos das grandes chuvas que marcam o começo dos anos. No Estado do Rio de Janeiro, em fevereiro, as cidades de Paracambi e Barra do Piraí foram severamente afetadas pelo descaso do Poder Público frente ao recorrente problema das fortes chuvas do período, que acabaram por acelerar os processos das enchentes e dos transbordamentos dos rios. Em Paracambi, quatro horas de chuvas, que chegaram a marca de 134,4 mm, fez com que o transbordamento dos rios chegasse a marcar mais de 2 metros de enchentes que soterrou casas e lojas. Em Barra do Piraí, uma família inteira morreu soterrada por conta de deslizamentos. A baixada fluminense e outros municípios do interior sofreram com as enchentes que carregaram os automóveis pelas ruas e afetaram toda a circulação e mobilidade urbana por dias. A consequência do descaso do Poder Público frentes às recorrentes chuvas, enchentes, transbordamentos e deslizamentos são famílias e mais famílias desalojadas, que perdem tudo, e seguem sem perspectiva de resposta efetiva dos órgãos competentes para a solução dessas graves ameaças à vida e à dignidade dos trabalhadores.
As enchentes têm se tornado eventos cada vez mais devastadores para as populações periféricas, principalmente nas grandes cidades. Muito distante do que a mídia hegemônica noticia, os impactos do exponencial aumento das chuvas não são meros eventos climáticos. Os resultados catastróficos das enchentes estão diretamente relacionados aos processos desorganizados e desiguais de ocupação urbana, à lógica predatória da especulação imobiliária e à falta de investimentos públicos em infraestrutura para escoamento adequado das águas e para a prevenção de desastres.
Se por um lado, o efeito estufa é gerado pela utilização indiscriminada da natureza para a produção capitalista, levando a modificação dos índices pluviométricos, por outro, os principais impactos dessa devastação são sofridos pela classe trabalhadora, que ocupa as áreas de maiores riscos.
Deslizamentos de terras, transbordamentos de rios e enchentes causam, anualmente, um número assustador de mortes e frequentemente são associados e catalogados como Desastres Naturais. A título de exemplo, em 2023, no Brasil, registrou-se a maior quantidade desses ditos desastres naturais na história: o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) somou 1.161 eventos dessa categoria, sendo 716 de origem hidrológica e 716 de origem geológica.
Entre o final do último ano e o início de 2024 pelo menos cinco estados sofreram novos eventos: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Uma característica comum entre todos eles são as características das zonas mais acometidas, em geral bairros ocupados majoritariamente por pessoas negras e mais empobrecidas. As enchentes revelam a lógica desigual e racista das cidades, nas quais a falta de investimentos ou as obras mais precárias estão localizadas nas regiões periféricas.
Racismo Ambiental
Um depoimento dado no início do ano pela a atual Ministra da Desigualdade Racial, Anielle Franco, diante das consequências dos desastres gerados pelas chuvas no Rio de Janeiro, deu visibilidade ao conceito de racismo ambiental, um termo antigo, mas pouco utilizado em análises sociológicas dos desastres climáticos. O termo expressa as ações, obras ou mesmo descaso, que levam ao maior acometimento de populações racializadas ou outros grupos historicamente oprimidos, como as populações negras, povos indígenas e a classe trabalhadora imigrante e mais empobrecida.
O jornalismo da grande mídia, ao analisar os dados de forma mais genérica, mostram os impactos das chuvas, porém sem evidenciar, a origem social e étnica/ racial, dos bairros. Por exemplo, no final de janeiro, dados no portal G1 noticiaram que desde o começo do ano, 100 mil pessoas foram afetadas de alguma forma pela chuva no RJ, levando a 12 mortes. Desse total, 27 mil estavam desalojadas e outras 927 estavam desabrigadas. Esses números escondem a região acometida: os bairros atingidos estão localizados na zona norte, região mais pobre e de maioria negra e/ou nordestina.
Levantamento recente feito pela a Agência Pública, a partir dos dados da Defesa Civil de São Paulo, demonstraram que os dez distritos com mais ocorrências de inundações e alagamentos possuem população negra acima da média da cidade. Além disso, nove dos dez ficam nas periferias de São Paulo, enquanto apenas um, o distrito da Sé, está na Zona Central. Os distritos do Jardim Helena, Vila Jacuí e São Miguel Paulista são os com a maior média de ocorrências no período estudado, sendo que os mesmos possuem aproximadamente 55%, 49% e 44% da população de pessoas negras, respectivamente, o que está bem acima da média de 37% da cidade.
Além disso, segundo o Mapa da Desigualdade de 2023, 84% dos infectados por doenças de veiculação hídrica são pessoas negras.
A previsibilidade não muda a lógica governamental
Apesar de seu caráter de previsibilidade, medidas para mudar a organização urbana das cidades, com foco na prevenção desses desastres, não são planejadas e executadas pelos governos; mesmo os esforços científicos de pesquisadores não são utilizados para a realização de um projeto real que se preocupe em alterar as condições dos espaços urbanos que sofrem nesse período. Na cidade de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), não utilizou R$ 413 milhões de recursos que poderiam ser empenhados para a Gestão de Riscos e Promoção da Resiliência a Desastres e Eventos Críticos no ano de 2023. O órgão, responsável pela manutenção de sistemas de drenagem, monitoramento e alerta de enchentes, usou apenas R$1,6 bilhão dos R$2,1 bilhões empenhados, segundo pesquisa do G1 realizada com informações disponíveis no Portal da Transparência. Esse é o cenário quando não há qualquer esforço do poder público em promover políticas de prevenção e mitigação.
No Rio de Janeiro, o vereador Paulo Pinheiro (PSOL) denunciou que, antes dos temporais, Eduardo Paes (PSD) havia cortado R$281 milhões do Programa de Implantação de Sistemas de Manejo de Águas Pluviais e de Infraestrutura Urbana das Bacias Hidrográficas. Por outro lado, durante os temporais, ao invés de criar programas emergenciais para auxiliar os desassistidos, o prefeito simplesmente se deu o trabalho de solicitar o pedido, pelas redes sociais, para as pessoas não saírem de casa.
Anualmente, fica comprovado que esses desastres são fruto cada vez mais de uma escassa atuação do Poder Público em garantir as condições de moradia digna e infraestrutura urbana adequada para os bairros e favelas onde vivem parte significativa da classe trabalhadora.
Especulação imobiliária e as tragédias anunciadas
A tragédia que aconteceu há um ano em São Sebastião, cidade litorânea de São Paulo, deixou evidente a relação cabal entre a especulação imobiliária, a falta de estruturas das cidades e os desastres relacionados ao clima. O deslizamento de encostas no bairro que levou a 64 mortos e mais de mil desabrigados, ganhou visibilidade por estar a poucos metros de uma área de veraneio, com muitas casas luxuosas, pouco atingida com as enchentes. A maioria das pessoas acometidas em São Sebastião tem origem da imigração nordestina para a região, atraídas para o trabalho na construção civil e no setor turístico da cidade.
Como foi apontado por diversos especialistas, a tragédia crime, tem clara responsabilidade dos setores públicos, que direcionam os esforços técnicos e políticos para as áreas exploradas pela especulação imobiliária, em detrimento do investimento público na garantia de moradia digna para a classe trabalhadora do município e medidas sanitárias para evitar os deslizamentos de terra e prevenção de acidentes.