Nova política de controle de armas do Governo Federal ainda é insuficiente

“Armas nas mãos certas”, é o que disse o Presidente Lula sobre a nova política de segurança pública, ignorando o aumento de quase 200% da letalidade policial durante a última década.

Nova política de controle de armas do Governo Federal ainda é insuficiente
Luís Inácio Lula da Silva, Presidente da República, e Roberto Lewandowski, Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Reprodução/Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Por Redação

O Ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski anunciou, no início da última fase do processo, o adiamento e flexibilização da nova política de controle de armas que seria implementada a partir de 1º de janeiro deste ano. Correspondente ao Decreto nº 11.615 assinado por Lula em julho de 2023, a nova política de armamento transfere do Exército Brasileiro (EB) para a Polícia Federal (PF) as competências referentes ao controle das armas e munições dos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC) e modifica critérios para a aquisição, transporte e atividade dos CACs.

Elaborada durante a gestão de Flávio Dino, a medida tinha como objetivo, segundo o então Ministro da Justiça, “pôr fim, definitivamente, ao armamentismo irresponsável”, editando dispositivos flexibilizados no Governo Bolsonaro. A mudança, que passaria a valer a partir de 1º de janeiro de 2025, torna a PF responsável pelo registro de pessoas físicas e jurídicas, autorização de compra e venda de armas, concessão de guias de tráfego, fiscalização das atividades dos CACs e fiscalização e controle do comércio para pessoa física.

Já nos primeiros dias de governo, Lula assinou decreto estancando a liberalização de armas e munições. Naquela ocasião, foram suspensas as concessões de novos registros de clubes e escolas de tiro, os registros para aquisição e transferência de armas e munições dos CACs, além de restringir seus quantitativos até que uma nova  regulamentação ao Estatuto do Desarmamento fosse apresentada pelo grupo de trabalho instituído em janeiro de 2023.

A nova regulamentação foi feita por meio do decreto de julho do ano passado, que inclui critérios mínimos como a necessidade, para os caçadores, de apresentação de autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA); a restrição de apenas uma arma por modelo para colecionadores (antes eram cinco); e a divisão dos atiradores em três categorias a partir de critérios de participação em treinamentos e competições. Outros avanços importantes, também baseados em critérios básicos de civilidade, são a obrigatoriedade de que a localização dos clubes de tiro seja distante de escolas, o impedimento de seu funcionamento 24 horas e a proibição de porte municiado para CACs – que ainda poderão solicitar o trânsito desmuniciado, desde que indicando previamente trajeto e período registrado em guia de tráfego. O decreto também reduziu significativamente a quantidade de armas e munições autorizadas.

A falta de recursos para efetivar a transferência – que exige o treinamento e capacitação da Polícia Federal – é um dos argumentos para adiar a implementação das novas regras, mas o que está em jogo, na verdade, é a sua flexibilização. Anunciado no último dia do ano, o Decreto nº 12.345/2024, que edita as diretrizes anteriores, foi construído em um acordo entre Governo e Bancada da Bala. A nova redação cria a categoria de Atiradores de Alto Rendimento, a ser regulamentada pelos Ministérios da Justiça e do Esporte, aumentando o número de armas e munições permitidas – inclusive de uso restrito. Além disso, estabelece novas normas para os clubes de tiro, autorizando a manutenção do funcionamento daqueles já existentes que estão localizados há menos de um quilômetro de escolas, desde que com horário reduzido.

A nova legislação não resolve o problema do armamento, fortemente impulsionado pelo governo anterior. Carro-chefe da política reacionária de segurança pública de Bolsonaro, a facilitação do acesso às armas fez crescer em quase sete vezes as licenças expedidas no período de seu governo, com 904.858 novos registros de armas para os CACs entre 2019 e 2022. Esses dados, entretanto, são apenas parte do problema. Segundo informações mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, só no SINARM (Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal) estavam ativos, em 2023, 2.088.048 registros de posse – um crescimento de 227,3% em relação a 2017. Os números são referentes à posse de armas para a defesa pessoal e não incluem os CACs, registrados no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), sobre o qual o Exército Brasileiro não publicou dados atualizados.

A recente descoberta de planos de ação golpistas datados de 2022 põe em evidência o fundamento por trás da política bolsonarista de armamento: nunca se tratou de reduzir a criminalidade, mas de garantir a ampliação de base de apoio armada para uma escalada golpista. Há também uma correlação direta entre o aumento da circulação de armas, supostamente para a legítima defesa, e o aumento dos crimes cometidos com armas de fogo. Ainda em 2013, o IPEA publicou estudo demonstrando que um aumento de 1% na circulação de armas representaria, proporcionalmente, um aumento de até 2% nos homicídios. Isso porque, independente da Presidência, a última palavra sobre a política de armamento sempre foi dada pela Bancada da Bala no Congresso Nacional, cujo objetivo é fortalecer a burguesia da indústria armamentista e da segurança privada e armar setores reacionários para a defesa da propriedade burguesa.

Impossível negar que a política bolsonarista de armamento implementada a partir de 2019 era, no mínimo, irresponsável ao fomentar o descontrole na fiscalização de armas e munições em circulação no país. Mas, mais do que isso, foi a que melhor correspondeu aos interesses paramilitares das milícias, do latifúndio e dos grandes empresários do setor, tendo assim nítidos interesses de classe. Nas mãos do Exército, a distribuição de armas para o crime organizado se deu tanto por vias legais quanto ilegais. Durante os quatro anos de governo, foram concedidos mais de 5 mil certificados de registro de armas de fogo para pessoas condenadas por homicídio, lesão corporal dolosa, ameaça, direção sob efeito de álcool e outros crimes, aumentando não apenas as chances de reincidência, mas o agravamento dos casos.

O Exército não tem controle sobre suas próprias armas e munições, e perde equipamentos de alto poder de fogo – que chegam a ser capazes de atingir aeronaves ou perfurar blindados – sem sequer perceber, como prova o caso de 21 metralhadoras furtadas em 2023 do Arsenal de Guerra de São Paulo, em Barueri, notado apenas um mês e meio depois. Via de regra, as armas só são recuperadas após serem usadas em crimes violentos – o que às vezes leva menos de 24h para acontecer. Em vários casos, o equipamento permanece em circulação por anos: do mesmo lote contendo 2,5 milhões de munições desviado da Polícia Federal, saíram as balas que assassinaram, em 2011, a juíza Patrícia Acioli e, em 2018, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. Não surpreendentemente, muitas vezes são as próprias chefias dos órgãos de Fiscalização de Produtos Controlados os responsáveis pelos desvios.

Vítima da violência, a maioria da população brasileira não apoia o armamento, pois entende que, na prática, a facilitação do acesso às armas abastece o crime organizado – seja para facções do tráfico de drogas, seja para grupos armados milicianos – contribui para a ampliação do tráfico internacional nas fronteiras brasileiras e alimenta a guerra de pobres contra pobres, aumentando a letalidade policial e a violência nas periferias e no campo. Os grandes interessados na tática armamentista de Bolsonaro eram, na verdade, os grandes empresários, latifundiários, garimpeiros e suas milícias rurais, assim como setores da classe média e pequenos proprietários da cidade e do campo com poder aquisitivo suficiente para adquirir os equipamentos.

“Armas nas mãos certas”, é o que disse o Presidente Lula sobre a nova política, ignorando o aumento de quase 200% da letalidade policial durante a última década. A classe trabalhadora tampouco confia na polícia, cuja estrutura se prova, dia após dia, servir apenas para a repressão de movimentos sociais, criminalização da pobreza e defesa das grandes propriedades da burguesia. Organizadas enquanto braço armado do Estado, as forças de segurança pública são ineficientes na proteção da classe trabalhadora, pois não se destinam a isso, mas à defesa militar dos donos do dinheiro.

Desarmar os setores que Bolsonaro armou não é mero “revanchismo”, como afirma o Secretário Nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, mesmo porque é insuficiente para impedir um golpe de estado ou para alterar o quadro de violência vivido pelas brasileiras e pelos brasileiros. Uma nova política de segurança pública e de defesa só será possível na luta por uma nova sociedade, garantindo o controle comunitário e democrático direto do povo trabalhador, organizado, treinado e armado para defender seus próprios interesses de forma coletiva. Enquanto a política de armamento estiver a serviço da classe dominante, a posse e o porte de armas será exclusividade dos setores que defendem os interesses da mesma, armados individualmente para proteger seus próprios privilégios, e não refletirá o controle social do aparato policial e a participação direta do povo na segurança pública.