'Notas sobre organização' (J. C.)

Esta tribuna não foi escrita como um tratamento exaustivo do tema em questão. Não intencionamos a reconstrução, mas a ruptura com o espírito de gangue que sobrevive às custas desse passado que ainda nos assombra.

'Notas sobre organização' (J. C.)

Nota editorial: o presente escrito parafraseia o artigo "Sobre Organização", de Jacques Camatte. Embora reprovemos a sintomática omissão da referência direta, consideramos pertinente a manutenção da publicação, a título de exemplo das concepções antileninistas sustentadas por alguns camaradas em matéria de organização


Por J. C. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Nós dois [Marx e Engels] não damos um tostão furado pela popularidade. Prova disso é, por exemplo, que, por aversão contra todo o culto da pessoa, durante o tempo da Internacional, nunca deixei que passassem para o domínio da publicidade as numerosas manobras de reconhecimento com que de diversos países fui molestado e também nunca lhes respondi, a não ser aqui e além com admoestações. A primeira entrada de Engels e minha para a sociedade secreta dos comunistas aconteceu apenas na condição de que seria afastado dos estatutos tudo o que aproveitasse a superstição da autoridade. Mais tarde, Lassalle atuou precisamente na direção oposta.

Carta de Marx a Wilhelm Blos, 1877 [1] 

No processo de consolidação do capital como uma entidade material e autônoma, assistimos ao desaparecimento da figura tradicional do capitalista, à diminuição relativa (ou às vezes absoluta) do proletariado e ao alargamento das novas classes médias. Ora, todas as comunidades humanas, mesmo as menores e informais, são condicionadas pelo modo de existência da comunidade material. 

A valorização, o desenvolvimento e a autonomização do capital só pode ocorrer através do confronto entre seus elementos e o conjunto da sociedade; o capital precisa desse enfrentamento (espírito de rivalidade), pois existe somente por diferenciação. A partir disso, uma estrutura social se constitui com base na concorrência entre organizações e gangues rivais.

Esse processo produz uma nova aristocracia financeira, uma nova classe de parasitas sob a forma de projetistas, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de especulação e de fraude no que diz respeito à fundação de sociedades por ações e ao lançamento e comércio de ações. É produção privada, sem o controle da propriedade privada. (...) A expropriação se estende, então, desde os produtores diretos até os próprios capitalistas pequenos e médios. Tal expropriação forma o ponto de partida do modo de produção capitalista; realizá-la é seu objetivo; o que se busca, em última instância, é expropriar todos os indivíduos de seus meios de produção, que, ao desenvolver-se a produção social, deixam de ser meios e produtos da produção privada para se converter em meios de produção nas mãos dos produtores associados, portanto, em propriedade social destes últimos, uma vez que já são seu produto social. No interior do próprio sistema capitalista, porém, essa expropriação se apresenta como figura antagônica, como apropriação da propriedade social por poucos, e o crédito confere a esses poucos indivíduos cada vez mais o caráter de simples aventureiros. [2]

O Estado capitalista formou-se na época de florescimento da lei do valor, no período da produção mercantil simples. Na fase de dominação formal do capital, o Estado consistia em um mediador entre a lei do valor, o remanescente de modos de produção subsistentes e o proletariado. O sistema de crédito ainda era pouco desenvolvido e não havia engendrado, em larga escala, o capital fictício. O capital ainda necessitava de um rígido padrão ouro. 

Com a passagem à fase de dominação real, o capital criou seu próprio equivalente geral, que não mais poderia ser tão rígido como em seu período de circulação simples. O próprio Estado teve que perder sua rigidez, tornando-se uma gangue mediadora entre gangues distintas, assim como entre a totalidade do capital e os capitais particulares. 

Não só o Estado vende-se às gangues, mas ele mesmo se torna uma gangue, exercendo também um papel mediador.

Observamos um fenômeno similar na esfera política. O Órgão Central de um partido, ou núcleo dirigente de uma organização, exerce um papel análogo ao do Estado. O assim chamado centralismo democrático simula a forma parlamentar que corresponde à dominação formal do Capital, reproduzindo a mística da organização. É assim que o partido se torna uma gangue.

Essa tendência do capital passou a se reproduzir com máxima eficiência, sem se deparar com uma oposição real na sociedade, a partir do processo de destruição do proletariado, que teve sua existência disruptiva negada. A teoria do proletariado, o marxismo, também foi destruída: primeiramente com a obra revisionista de Kautsky, depois com o liquidacionismo de Bernstein… e então com o retorno triunfante desses velhos oportunismos sobre os escombros da III Internacional. Isso também expressa como o capital conseguiu consolidar sua dominação real. 

Ao se consolidar, o capital teve que absorver o movimento que o nega (o proletariado), constituindo uma unidade na qual o proletariado apenas existe como seu objeto; essa unidade só pode ser destruída em um momento de crise revolucionária, tal como descreveu Marx. Disso decorre a destruição de toda forma de organização política da classe. Em seu lugar, formam-se gangues que se enfrentam em uma competição obscena, rivais em suas verborragias, mas idênticas em essência.

A existência de gangues deriva da tendência do capital em absorver suas contradições, de seu movimento de negação e de suas formas de reprodução fictícias. O capital tende a negar os elementos sobre os quais ele mesmo se edifica (o indivíduo e a corporação), para então revivê-los sob formas fictícias.

Como a gangue política deve convencer para recrutar, em suas relações externas ela tende a mascarar sua existência, com um véu de modéstia para alargar seu poder. Quando apela a elementos externos por meio de jornais, panfletos e conteúdos nas redes sociais, a gangue pensa que, para ser compreendida, deve falar pretensamente ao nível das massas.

A gangue se limita a comentar e reproduzir o imediato, porque quer mediatizar. Ao considerar que as pessoas externas ao grupo são idiotas,  ela se obriga a reproduzir banalidades e mentiras. Então a gangue se apaixona por suas próprias mentiras e acaba sendo absorvida pelo meio a sua volta. Quando outra gangue tomar seu lugar, seu ato fundante será a atribuição de todos os erros e crimes àqueles que a precederam, procurando assim uma nova linguagem, a fim de reconstruir a grande prática do convencimento; para convencer, ela deve parecer diferente das outras.

Uma vez dentro da gangue (o mesmo vale para outros tipos de corporação), seu membro é amarrado a ela mediante as pulsões existentes no capitalismo. Se demonstra alguma habilidade, esta é imediatamente explorada, sem que se permita o domínio da teoria. Assim se ganha posições no círculo dirigente. Mesmo nos grupos que querem escapar daquilo que está socialmente dado, tende a prevalecer um mecanismo de gangue, aproveitando-se dos distintos graus de domínio teórico entre seus membros.

A incapacidade de confrontar as questões teóricas com independência leva um membro a se refugiar atrás da autoridade de outros, que se tornam efetivamente seus chefes; ou então atrás da identidade do grupo, que se torna uma gangue. Nas relações com pessoas externas, o membro usa seu pertencimento ao grupo para se diferenciar e excluir os demais; em última análise, para se proteger contra seu próprio despreparo teórico. Pertencer para excluir: eis a dinâmica interna à gangue, fundada em uma oposição, admitida ou não, entre as ditas instâncias internas e externas. 

A adesão a uma gangue deriva da vontade de se identificar com um grupo dotado de certo grau de prestígios: prestígio teórico aos intelectuais, e prestígio organizacional às pessoas ditas comprometidas com a prática. Essa lógica comercial também intervém na formação teórica. Com uma massa de capital crescente e que deve ser realizada (mercadorias ideológicas a serem vendidas), é necessário criar uma profunda motivação para que as pessoas comprem suas ideias.

Ostentação de prestígio e exclusão são marcas da competição desenfreada do mercado. Daí se desenvolve o culto à organização e a glorificação das particularidades do grupo. Deste ponto em diante, a questão não é mais a defesa de uma teoria, mas a preservação de uma tradição organizacional.

A oposição entre interior e exterior e a estrutura de gangue levam o espírito de competição ao seu limite. Na prática, os níveis de domínio teórico tornam-se um eufemismo para a divisão do trabalho. Enquanto se teoriza sobre a sociedade existente, sob o pretexto de negá-la, inicia-se dentro do grupo uma competição desenfreada que leva à reprodução, de forma ainda mais rígida, de suas hierarquias; então se reproduz na própria gangue a oposição entre as ditas instâncias internas e externas, na divisão entre seu centro dirigente e os militantes da assim chamada base.

A gangue política atinge sua excelência nos grupos que dizem querer superar as formas sociais existentes (como o culto ao indivíduo, aos dirigentes e à democracia). A valorização do sacrifício pessoal e o anonimato passam a significar a exploração dos membros da gangue em benefício de seu círculo dirigente, e a acumulação de influência em cima de tudo que se produz em nome do grupo. Apesar de negarem, a hipocrisia faz com que se operem os golpes mais baixos nos grupos que se configuram reivindicando o centralismo democrático.

A aparência de unidade é mantida no interior da gangue por meio da ameaça de exclusão. Quem não respeita as normas deve ser expulso, calado e ter sua imagem destruída. Além disso, a ameaça também serve de chantagem psicológica aos que ficam. 

Esse fenômeno se manifesta de diversas maneiras em diversas gangues. Na gangue empresarial, por exemplo, o indivíduo é demitido e chutado para o olho da rua. Já na gangue política, o transgressor é expulso e caluniado. A calúnia justifica sua exclusão, ou é instrumentalizada para forçá-lo a sair “por livre e espontânea vontade".

O capitalismo vem se consolidando como o triunfo da organização (o triunfo do fascismo), e a gangue é sua forma modelo.

A formação da gangue é a constituição de uma comunidade ilusória, mas a gangue política procura vender sua comunidade ilusória como modelo para toda a sociedade. Trata-se de um comportamento idealista: os socialistas utópicos esperavam que, através dessa emulação, toda a humanidade seria finalmente incluída em suas comunidades, mas todas acabaram absorvidas pelo capital. Hoje, a afirmação que abre os estatutos gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores é mais válida do que nunca: "a emancipação das classes operárias tem de ser conquistada pelas próprias classes operárias" [3].

No mundo atual, ou o proletariado realiza sua teoria e prefigura a sociedade comunista, ou está condenado a permanecer parte da sociedade existente. 

Na época de Marx, a superação das gangues encontrava-se na unidade do movimento operário. Hoje, as gangues não apenas manifestam uma falta de unidade, mas sobretudo a ausência da luta de classes. Elas teorizam sobre a realidade tal como ela está dada, falando em nome da sobrevivência imediata do proletariado, no sentido oposto ao seu movimento. Desse modo, as gangues cumprem as exigências de estabilização do capital. O proletariado, mais que superá-las, precisa destruir as gangues e tudo que elas representam.

Portanto, a crítica ao capital deve ser a crítica à gangue em todas as suas formas, ao capital como organismo social; o capital que se tornou a vida real do indivíduo e seu modo de ser em comunidade. A teoria que critica a gangue não deve jogar a favor de sua reprodução, como produto espontâneo da sociedade burguesa. Esse deve ser o fio condutor da crítica a nosso modo de existência, a partir da ruptura com a lógica de gangue.

O revolucionário não deve se identificar em última instância com um grupo, mas se reconhecer numa teoria que não depende de um grupo ou de uma sigla, porque sua teoria é a expressão de uma luta de classes real:

o comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o atual estado de coisas. As condições desse movimento resultam da premissa atualmente existente. [3]

A atividade de Marx sempre foi a de distinguir o movimento real que tende ao comunismo, defendendo as conquistas do proletariado em sua luta contra o capital. Daí a posição de Marx em 1871, ao descrever que “a Associação Internacional dos Trabalhadores não foi idealizada por uma seita ou por uma teoria. Ela foi formada pelo crescimento espontâneo do movimento proletário, resultando das tendências naturais e imparáveis da sociedade moderna” [5]. 

Precisamos retomar essa postura de Marx, desenvolvendo uma crítica à concepção de "programa" das esquerdas. Para o proletariado, no sentido de Marx, a luta de classes é simultaneamente a produção e a radicalização da consciência. A crítica ao capital expressa uma consciência já produzida pelas lutas de classes, antecipando seu futuro.

Desde que deixamos o PCB, temos tentado superar essa ambiguidade, nos esforçando ao máximo para revelar os aspectos positivos do partido. Resultou que nos tornamos adoradores do partido, caindo novamente na prática do partidismo.

As tempestades, sem dúvida, levantam lama, nenhum período revolucionário cheira a água de rosas, em certos momentos apanha-se toda a espécie de dejetos. (...) É possível evitar a lama no mundo e nos negócios da burguesia? A lama tem aí seu lugar de eleição. (...) A meu ver, a infâmia honesta ou a honestidade infame da moral solvente (e ainda, como o demonstra cada crise comercial, com reservas muito equívocas) em nada é superior à infâmia abjeta que nem as comunidades cristãs primitivas, nem o Clube dos Jacobinos, nem a nossa “Liga” defunta conseguiram eliminar do seu seio. Só quando se vive no meio burguês é que se costuma perder a noção da infâmia respeitável ou da infame respeitabilidade. (...) Manifestei sem reservas a minha opinião e espero ver-te aderir a ela no essencial. Tentei, por outro lado, dissipar o equívoco quanto ao “partido”, como se esta palavra significasse para mim uma “Liga” desaparecida há oito anos ou uma redação de jornal dissolvida há doze. Por partido eu entendia o grande sentido histórico que a palavra contém.

Carta de Marx a Freiligrath, 1860 [6]

Esta tribuna não foi escrita como um tratamento exaustivo do tema em questão. Não intencionamos a reconstrução, mas a ruptura com o espírito de gangue que sobrevive às custas desse passado que ainda nos assombra.


Notas

[1] MARX, K. “Carta a Wilhelm Blos (em Hamburgo)”, 10 de novembro de 1877, disponível em marxists.org.

[2] MARX, K; O Capital, volume III. Boitempo editorial, 2017. E-book.

[3] MARX, K; ENGELS, F. "Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista (Capitulo Primeiro de A Ideologia Alemã)". Disponível em www.marxists.org

[4] MARX, K. "Estatutos Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores", 24 de outubro de 1871, disponível em www.marxists.org

[5] MARX, K. Traduzido de "The Fourth Annual Report of the General Council", The International Workingmen's Association, 01 de setembro  de 1868. Disponível em www.marxists.org

[6] MARX, K. “Carta a Freiligrath”, 29 de fevereiro de 1860. Disponível em criticadesapiedada.com.br.